LIPIS

JOGAR, AMAR E CONSUMIR: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES OBJETAIS NA CONTEMPORANEIDADE

 

FABIANE NATALIA DE SOUZA PINTO:
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio, Graduada em Psicologia pela PUC-Rio, Membro iniciante da Formação em Psicanálise da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisa sobre a Infância – SOBEPI. Psicóloga Clínica na empresa Metta Psicologia.



JOANA V. NOVAES:
Professora do Programa de Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida. Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio). Pós-doutora em Psicologia Médica (UERJ). Pós-Doutora em Psicologia Social (UERJ). Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio. Pesquisadora e psicoterapeuta do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS) da PUC-Rio. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine- Université Denis-Diderot Paris 7 CRPM-Pandora. Membro do Conselho Consultivo da Fundação Dove para Auto-estima. Autora dos livros: O Intolerável peso da feiúra. Sobre as mulheres e seus corpos. Ed.PUC/Garamond (2006). Com que corpo eu vou? Sociabilidades e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e populares. Ed.PUC/Pallas (2010). Corpo para que te quero? Usos, abusos e desusos. Vilhena, J. & Novaes, J. (orgs.) Ed.PUC/Appris (2012).


Resumo: Esse artigo tem como objetivo refletir acerca de um aplicativo, amplamente difundido nas redes sociais, no qual a performance de parceiros amorosos é classificada de acordo com o desempenho sexual do indivíduo, além de aspectos diversos de sua personalidade que são, igualmente, expostos na rede. Buscou-se problematizar o modo como os vínculos afetivos são estabelecidos na atualidade, partindo-se da premissa de que determinados agenciamentos subjetivos associados à forma como o sujeito lida com seus objetos amorosos, são análogos à relação que o mesmo estabelece com os bens de consumo.
Palavras-chave: relações objetais, contemporaneidade, redes sociais, internet, consumo, relações amorosas.

Abstract: This article aims to analyze an application for mobile, widely circulated on the internet, in which the performance of romantic partners is classified according to an individual's sexual performance, in addition to various aspects of his/her personality that are also exposed on the web. We sought to discuss how the affective bonds are established at the present time, starting from the premise that the subjective arrangements associated with how the individual deals with their love objects, are analogous to the relationship established with the consumer goods.
Key-words: Object relation, contemporaneity, social media, internet, consumer, amorous relationships

Introdução

Uma das características culturais produzidas na pós-modernidade é a circulação da informação, das pessoas e do capital. As distâncias são encurtadas e o tempo é otimizado em favor de uma economia global que requer a produtividade constante e a fluidez das relações. Esta é a lógica do consumo que pressupõe a apropriação daquilo que se coloca como objeto de desejo, capaz de promover satisfação, e o descarte do que não é mais útil por não suprir a falta existente ou ainda por haver outro objeto que, imaginariamente, cumpra melhor este papel.

As transformações ideológicas da década de 60 e a fragilização das grandes instituições provocaram mudanças estruturais na vida sujeito contemporâneo: os lugares onde trabalha mais se parecem com estações ferroviárias do que com aldeias, a vida familiar se viu desorientada pelas exigências do trabalho e a migração tornou-se o verdadeiro ícone da era global, afirma Sennett (2006).

A vida comunitária se tornou um espaço caracterizado pela individualidade, bem como pela mobilidade, agora transformadas em novas palavras de ordem, sobretudo quando comparadas à fixidez e a permanência características do paradigma de organização social e subjetiva, anteriormente observado.

Segundo Sennett, (op.cit) esse novo paradigma de organização da vida social instaurou, igualmente, uma nova condição cultural, capaz de superar três aspectos, absolutamente disruptivos segundo o autor, no que tange à subjetividade.

A primeira mudança a ser percebida é no tempo, enquanto variável organizadora. Demanda-se do sujeito que concilie um amplo rol de interações sociais com os cuidados de si, de modo a exigir uma administração hábil e competente na performance e  de tarefas bastante diversificadas. Paralelamente, os laços são cada vez mais frouxos e os vínculos menos densos. Substituídas, gradualmente, por conexões, as relações interpessoais perdem a sua dimensão de compromisso, tornando-se, paulatinamente, mais superficiais.

O segundo fator refere-se à constante especialização, renovação e invenção das habilidades individuais, denominadas, pelo autor, de talento. Os atuais modelos econômicos e culturais requerem múltiplas competências técnicas e comportamentais, o que, por sua vez, demandam atualizações constantes.

Por fim, o terceiro aspecto, composto pela subjetividade ideal, estaria associado ao desapego do indivíduo em relação ao passado. Trata-se de uma atitude que descarta o que foi vivenciado, tornando o aqui e agora, mais relevante do que a experiência e a história pregressa. Sennett compara este perfil psicológico ao de um consumidor, uma vez que o interesse refere-se, exclusivamente, a tudo que é novo, desconsiderando, dessa maneira, a utilidade do que já existe, - fenômeno também conhecido como “obsolescência programada”.

A tecnologia é uma importante ferramenta que possibilita a legitimação e propagação desta lógica, visto que, a partir de sua utilização, conseguimos alcançar diversos espaços, produzindo e consumindo informações, serviços e discursos. Os recursos tecnológicos, especialmente a internet, marcam uma nova forma de interação que se caracteriza pela instantaneidade, pela multiplicação da informação, como também pela diminuição das distâncias físicas.

As redes sociais são evidências dessa nova subjetividade, explicitando um modo novo de relacionamento interpessoal, característico da chamada cultura contemporânea. Neste espaço virtual são promovidos encontros e reencontros, sentimentos são expressos, reflexões e saberes são compartilhados. Trata-se, muitas vezes, do compartilhamento da individualidade presente nos momentos de interação familiar, de atividades produtivas, de lazer, mas, sobretudo, da expressão de pensamentos e sentimentos diversos. O espaço privado é tornado público, evidenciando o que Bauman, (1998) definiu como liquidez, em seu tratado sobre a pós-modernidade, no qual já denunciava o esgarçamento das fronteiras organizadoras da vida social. É o paradoxo do particular que se afirma através da publicação no espaço público! A identidade pessoal, gradativamente, vai se constituindo, reforçada através dos múltiplos olhares virtuais que são direcionados ao sujeito.

Paulatinamente, as vivências pessoais vão sendo significadas a partir da avaliação dos outros internautas, na qual o principal balizador de popularidade e pertencimento são as chamadas curtidas, - em outras palavras, é a existência que vai ganhando substância e contorno através do atual dispositivo de avaliação: uma nova espécie de espelho contemporâneo, que definirá o grau de inclusão ou exclusão social de uma determinada comunidade.

No âmbito dessa enxurrada de universos particulares expostos, cada ausência é vivida como abandono e a intimidade percebida como invasão! Laços são feitos e desfeitos na velocidade de um clique, sem, contudo, haver o tempo necessário para viabilizar a construção de vínculos sólidos, - uma categoria incompatível com a velocidade na qual navegamos pelas tramas desses mares digitais.

As redes sociais são assim: um espaço de virtualidades onde se estabelecem relações de identificação com o outro e as comunidades, instrumentos para o registro desse pertencimento através das inúmeras afinidades eletivas entre seus usuários- consumidores. Entretanto, cabe ressaltar que há também o efeito de controle e regulação presente nesta exposição. Se partirmos da premissa que ao submeter à individualidade a um universo ilimitado de sujeitos, estamos também reproduzindo uma lógica da sociedade disciplinar, que controla os sujeitos através da patrulha do olhar (FOUCAULT, 1999). Entenderemos como um recurso que foi, inicialmente, projetado para a interação social, pode também ser apropriado para excluir e isolar. Sendo assim, a exposição pode, igualmente, encarnar uma forma de desqualificar o outro, conferindo-lhe sofrimento, operando como um fator aprisionante e punitivo, observado através dos mesmos olhares que outrora admiraram.

Tomando como ponto de partida dois aspectos, simultaneamente, do cenário contemporâneo: o primeiro relacionado à super exposição de imagens, denominada por Guy Debbord, (1997) como sociedade do espetáculo, e o segundo, uma vertente do calvinismo revisitado, observado na responsabilização do sujeito em relação ao próprio sucesso, alcançado através de características de personalidade como disciplina, obstinação e boas estratégias. De acordo com o discurso dominante atual, adotando esse perfil (psicológico), qualquer um seria capaz de superar as adversidades da vida! A tão propalada cultura da performance individual, anteriormente associada aos universos corporativo, esportivo e do culto ao corpo, se espraiou pela sociedade contemporânea, assumindo um caráter normatizador, atualmente, observado em diversas instâncias e aspectos da vida cotidiana.

Tendo então definido a premissa da qual partiremos, buscar-se-á analisar um fato recente, propagado nas redes sociais brasileiras, em meados de novembro de 2013. Trata-se da avaliação do desempenho de homens e mulheres em suas relações sexuais e afetivas, através da utilização de aplicativos conectados à internet. Os aplicativos são vinculados aos perfis dos sujeitos em uma rede social e aqueles que fazem parte de seu ciclo de contatos podem registrar, de forma anônima, suas impressões sobre pontos positivos e negativos da experiência afetiva, incluindo sua performance sexual. Uma nota é atribuída ao indivíduo avaliado e as características mais recorrentes, dentre as opiniões expressas, são atribuídas publicamente ao seu perfil, sem que haja autorização para tal.

No aplicativo destinado às mulheres, a possibilidade de avaliar o desempenho masculino também se apresenta como uma forma de afirmar a nova postura feminina em meio à histórica opressão feminina. Além disso, a idealizadora do sistema o define como um instrumento que permite o conhecimento prévio acerca de alguém com quem se deseja iniciar um relacionamento. O aplicativo utilizado pelos homens é uma resposta ao movimento iniciado pelas mulheres e, por ter um caráter de vingança, se estrutura de modo mais agressivo e hostil, posto as categorias de avaliação retratarem a postura da mulher em função das práticas sexuais que realiza.

A utilização do aplicativo foi tema muito discutido no meio social, havendo inclusive intervenção judicial para coibir a utilização dos softwares. Identificamos nos discursos sobre o tema o medo da exposição, a indignação dos avaliados, o receio de que a produção sobre si repercuta negativamente no relacionamento amoroso atual, no contexto profissional e nos demais ambientes que os sujeitos ocupam. Observamos, igualmente, que algumas pessoas compreenderam o fenômeno como uma brincadeira, que não deve ser levada a sério. Motivo de divertimento para uns e de angústia para outros.

A reflexão sobre a criação dos referidos aplicativos suscitou alguns apontamentos sobre certos aspectos que tratam das atuais representações acerca das relações amorosas e dos relacionamentos enquanto um espaço de trocas afetivas. A partir daí, algumas questões nos pareceram norteadoras como eixo para a análise do fenômeno. Qual o significado destas práticas no tocante ao desenvolvimento emocional e a possibilidade de lidar com os objetos reais? Qual a repercussão deste acontecimento no meio social? De que forma é encarado por seus usuários: como entretenimento ou uma ferramenta para desqualificar o outro?

Elegemos a teoria Winnicottiana, como ponto de partida para as reflexões pertinentes à temática escolhida. Buscamos, com isso, compreender a forma como as relações entre o eu e o não-eu são construídas e reproduzidas pelos sujeitos para que, então, possamos desenvolver algumas considerações acerca de como se estruturam as relações amorosas na sociedade pós-moderna. Por fim, é nossa intenção abordar a difusão destas práticas pelo viés das funções que lhes são atribuídas.

O Desenvolvimento Emocional e as Primeiras Relações Objetam:

O desenvolvimento emocional dos indivíduos é compreendido como um processo que tem início em um estado de dependência absoluta e se direciona para a independência. Os estágios iniciais da vida são marcados pela relação com aquele que cuida do bebê e se ocupa em atender suas necessidades, na maior parte das vezes, a mãe. Esta dependência absoluta inicial é correspondida por uma condição chamada por Winnicott, (2006) de preocupação materna primária, na qual a mãe se direciona ao bebê dedicando-se, exclusivamente, a prover um ambiente acolhedor onde ele não experimente frustrações que ameacem sua existência. As mães então se conectam ao bebê respondendo aos estados de fome, sede, frio, calor e também propiciando um padrão de estímulos e acolhimento que lhes possibilite ter contato com a vida, através do toque, da fala ou do silêncio. O bebê pode então experimentar sua existência em um mundo subjetivo ou ainda se movimentar espontaneamente de modo a explorar o ambiente, conforme Dias (2003).

Este estágio favorece o que Winnicott, (op.cit) denomina de integração, estabelecida na troca de identificações entre o bebê e sua mãe ao experimentarem a harmonia e a unidade oriunda desta ligação. A amamentação é um elemento importante neste processo e não se limita à prática meramente mecânica, para fins de sobrevivência. Na chamada primeira infância, a alimentação representa um período significativo de atividade do bebê, sendo também um canal de comunicação com sua mãe.  Nesta ocasião ele adquire elementos para a formação de seu psiquismo, a partir das trocas afetivas, sensações e representações decorrentes desta interação.

A amamentação permite também ao bebê desenvolver seus impulsos agressivos quando na experiência de destruição do seio materno a mãe atua de modo a “sobreviver” aos ataques de raiva e frustração do bebê. Ao se proteger dos ataques de maneira adequada, sem retornar a agressividade sofrida, a mãe permite que o bebê reconheça seu objeto como algo distinto de si.

As relações objetais têm, portanto, seu início no processo de alimentação, conforme apresentado. Trata-se do exercício da interação, exploração e ainda da capacidade de criar um objeto de satisfação. Este objeto, com o qual o bebê vive a ilusão de um estado de onipotência, precisa estar disponível para que esta condição se configure. Cabe destacar que o estado de onipotência é gradualmente desfeito, na medida em que a mãe se ocupa de outros aspectos de sua vida e não se apresenta mais integralmente em unidade com o bebê. Esta separação possibilita, simultaneamente, a vivência e resistência à frustração que acompanharão os indivíduos, em toda a sua existência.

Se Encontrar no Outro para Encontrar a Si Mesmo

Feitas as devidas considerações, problematizaremos a questão dos relacionamentos amorosos a partir dos conceitos apresentados. Quando o processo de desenvolvimento acima descrito ocorre adequadamente, o objeto de amor é compreendido como algo distinto do eu, se fazendo presente, mas também se ausentando. Este objeto satisfaz e também pode frustrar. Se a frustração do outro implica em uma ruptura do eu, é possível que não se tenha elaborado a integração entre a realidade externa e o mundo interior. O objeto que frustra tende então a ser atacado e destruído, como uma forma de projeção do sentimento interno experimentado.

Utilizar-se de um aplicativo para desqualificar o outro, com quem se teve uma relação interrompida, retrata a incapacidade de suportar a separação tal como um bebê que não encontra sua mãe à disposição de suas necessidades. O sujeito ainda se afirma como ser onipotente que pode criar os objetos para sua satisfação e também pode destruir imprimindo – e publicando - marcas neste outro, como se fosse sua propriedade. O que temos é, portanto, um movimento de retaliação e vingança ao ataque sofrido. Um ciclo de agressões e sofrimento se inicia.

A falta de organização psíquica para lidar com as separações e perdas do objeto de amor implica em uma falta de espaço para a solidão, ou seja, não se elaborou a ausência do objeto enquanto uma possibilidade de entrar em contato com a própria existência. Nesta situação o eu não se reconhece e o pensamento é paralisado. De acordo com Santos, (1999) “essa estagnação tem sua origem na falência precoce da organização de um espaço de intimidade psíquica, que serviria de continente para abrigar os pensamentos e a própria atividade do pensar.” É interessante notar que a experiência da solidão como um momento de intimidade psíquica é substituída por seu oposto: a exposição do que há de mais íntimo para lidar com o luto.

Apenas a partir da elaboração do processo de separação, pode-se reconhecer o outro e a si mesmo. Isso resulta na interação adequada com o meio social, visto que o eu, uma vez integrado, não se apresentaria inflacionado, funcionando dentro do registro de projeções narcísicas, sendo então capaz de fazer a distinção entre o eu-real; não-eu/Outro. Neste caso, haveria, portanto, a possibilidade de identificar-se com os demais e de experimentar o pertencimento em um meio de trocas e de satisfações parciais, ao invés de onipotentes. A relação com os objetos, marcada por sua presença/ausência, sem que, contudo, haja rupturas abruptas, representa o movimento necessário para a manutenção da vida e da experiência de continuidade ser, - vital no desenvolvimento da saúde psíquica e emocional do sujeito.  A interação entre os sujeitos e o meio, é um processo que os acompanha ao longo de seu ciclo vital, possibilitando a organização emocional e a constituição da identidade.

Quando as primeiras relações do bebê com o mundo são bem sucedidas, entre o eu e o não-eu, se estrutura uma área intermediária importante para a saúde e o bem estar dos indivíduos. Esta área, chamada por Winnicott, (1975) de transicional, compreende as atividades lúdicas e as experiências culturais. Os processos transicionais, assim como os objetos, possibilitam a experiência subjetiva da fantasia sem que haja uma cisão com a realidade, de maneira disruptiva, o que, por conseguinte, leva o sujeito a ser capaz de se conectar com o real e também com aquilo que é imaginário, de forma adequada.

Tal fato contribui para que a vivência do fenômeno de realidade psíquica pessoal, traduzida através da capacidade de acreditar e confiar no mundo externo, aconteça a partir do acúmulo de situações, sentimentos e sensações vivenciadas, satisfatoriamente.

A experiência no espaço transicional também faz parte das relações amorosas. Segundo Nicoló: “o espaço do casal também é um espaço misterioso em que, num processo de oscilação contínua, o outro é agora uma extensão de mim, mas ao mesmo tempo é um não eu” (1995, p.80).  Quando se alcança a independência e a diferenciação do eu, é possível construir uma relação saudável que contemple os sujeitos em sua individualidade e, paradoxalmente, em um estado de fusão com o objeto de amor.   O amor, vivido a partir do processo de integração, significa o reconhecimento da falta e da insatisfação e, sobretudo, da incompletude. Esse processo permite o afastamento do narcisismo primário e a entrada em um estado de menor indiferenciação e clivagem entre o sujeito e o mundo externo. Compreendemos, portanto, que é possível desenvolver nas relações objetais um espaço no qual os indivíduos se apropriem de sua identidade, estabelecendo essa ligação com o outro sem perder a realidade da incompletude, na qual as frustrações possam ser elaboradas e a ausência do objeto não seja devastadora ou tampouco leve o sujeito à vivência de aniquilamento.

Brincar de Amar: Um Jogo Diferente?

A prática sobre a qual promovemos estas reflexões nos traz algumas indagações: Seria uma simples brincadeira? Um inocente instrumento de divertimento? Um jogo entre homens e mulheres? Analisando a dinâmica do jogo infantil, Freud (1920/1969) aponta para a possibilidade de se reviver uma experiência negativa, assumindo o protagonismo em uma situação frustrante. Há uma inversão dos papéis, na qual a passividade vivida na perda de um objeto é transformada no seu inverso, ou seja, uma postura ativa, como forma de assumir o controle da situação, e, portanto, atribuindo a si a autoria do desejo de não querer a presença do outro.

Assim, diante de uma situação de rejeição, o jogo seria um mecanismo para o ataque ao objeto, de modo a reverter a condição adversa experimentada no real. Vive-se a retaliação ao objeto acima de alguma possibilidade de divertimento.

Tomando de empréstimo a obra de Huzinga, (2005) faremos uso de alguns elementos característicos do jogo para compreender não somente a sua lógica, como também a correlação deste processo com o objeto de nosso estudo. O autor afirma estar o jogo, intrinsecamente, ligado à liberdade de seus participantes. Através do livre consentimento, seus participantes entram no jogo, o que, portanto, possibilita a imersão na brincadeira. Um dos integrantes, contudo, não participa, voluntariamente, lhe sendo concedido o direito a sair, - muito embora seja alvo de retaliação ao ter que assumir o papel social de covarde. Fato observado através de mensagem hostil enviada quando da exclusão do perfil do referido membro.

Outro ponto relevante é a separação entre a realidade e o contexto vivido na atividade lúdica, posto que “o jogo não é vida corrente, nem vida real. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade com orientação própria” (HUZINGA, 2005, p.11) Este aspecto também excluiria os aplicativos da categoria do jogo, uma vez que o objetivo seria conferir, ao avaliado, marcas que espelhem, no ambiente virtual, a sua realidade, de modo que outros possam testemunhar, - tal qual em um tribunal onde são feitas acusações. Sendo assim, características do real seriam reproduzidas na virtualidade, na medida em que algumas informações acerca do sujeito são divulgadas.

Ainda segundo o autor, o jogo, enquanto categoria, também se caracterizaria por seu caráter desinteressado, sendo motivado pelo prazer do divertimento. Ou seja, a experiência entre os participantes deve ser despretensiosa. No tocante a esse ponto, acreditamos existirem alguns aspectos que contrariam essa afirmação, quer seja a busca pela satisfação de um desejo - ainda que direcionado à destruição do outro - ou a ausência do divertimento recíproco entre os envolvidos. Outros dois elementos que configuram o jogo, não reconhecidos em nosso objeto, é a delimitação tanto do tempo quanto do espaço para a sua realização. A localização virtual do fenômeno pode alcançar infinitos espaços devido ao seu aspecto fluido, tipicamente contemporâneo.
Além disso, a instantaneidade com que as informações são difundidas impede a demarcação do tempo de circulação e exposição do conteúdo, na medida em que esses registros são, facilmente, apropriados e compartilhados.

Os elementos descritos são estruturas fundamentais que alicerçam o jogo, de acordo com Huzinga (Ibidem). Sua existência, enquanto fenômeno cultural, está vinculada à presença destes componentes que, por sua vez, não estão contempladas na estrutura das práticas observadas. Não há também uma comunidade de jogadores envolvidos e encantados pela fantasia do jogo, mas apenas indivíduos anônimos, divididos por categorias de gênero, que talvez gozem de um prazer solitário, em torno da desqualificação do outro e da conseqüente exposição das suas fragilidades. Tampouco há, aqui, divertimento ou ganhador.

Do Amor Eterno ao Prazer Eterno: A Transformação do Amor Romântico em Amor Instantâneo

Relacionar-se e obter satisfação, por intermédio da troca afetiva entre duas pessoas, é um ponto central na discussão acerca da subjetividade do homem contemporâneo, acrescido pelo fato de não haver plenitude na realização das experiências amorosas, - pelo menos dentro do referencial teórico escolhido como alicerce das reflexões propostas nesse artigo. Como já nos informava Freud (1930), ao destacar as relações como o outro como uma das fontes de sofrimento e mal-estar psíquico, vivido de forma mais dolorosa por não ser passível de prevenção ou previsão. Em seu texto, o autor menciona uma tendência à redução das exigências de felicidade, em virtude da incapacidade de atendê-la, situando o isolamento, como uma das estratégias para evitar o desprazer oriundo desta fonte.

Se no contexto citado por Freud, os sujeitos abdicavam de um alto padrão de satisfação, apropriando-se do caráter faltoso e limitado de suas relações, na atualidade, parece ser possível afirmar que o sujeito demonstra não conseguir tolerar a impossibilidade da plena realização dos seus desejos, o que implicaria em abrir mão de uma visão inflacionada dos seus objetos amorosos.

O amor romântico se orientava pelo paradigma do amor único e eterno e trazia consigo a marca da espera. O príncipe encantado era esperado para salvar a princesa do perigo, resgatando-a e trazendo-lhe à vida. Além de esperado, o amor é conquistado, tal como uma guerra com suas batalhas. Sobre o estatuto de espera presente no amor,  Giddens (1993) pontificou: “a busca é uma odisséia em que a auto-identidade espera a sua validação a partir da descoberta do outro”. São novos e instantâneos tempos: eternidade, espera e busca são palavras estranhas – e quase desconhecidas - aos indivíduos contemporâneos, que direcionam as suas expectativas na busca do prazer imediato. Seus “encontros” e também os desencontros são orientados por esta lógica.

Para Giddens (op.cit.), o relacionamento contemporâneo é então conceituado como uma associação entre indivíduos, mantida enquanto cada um obtém prazer. Nesse sentido, acreditamos ser pertinente afirmar que a forma contemporânea de se relacionar parece assumir uma configuração mais próxima ao imperativo do gozo e das relações narcísicas, na impossibilidade de aceitação das falhas, frustrações, incompletudes e objetos parciais, e porque não dizer, em última análise, da própria castração, esse sujeito contemporâneo tem a vivência do abandono, do aniquilamento e do desamparo.

Tal como a morte, o encontro pessoal com o amor se apresenta como um fato único que não pode ser apreendido, a despeito da tentativa de assimilação de um conhecimento que evitasse o sofrimento advindo de uma relação, afirma Bauman, (2004). A impotência humana diante da morte é negada quando nos deparamos com os avanços científicos que postergam os efeitos do envelhecimento. Verificamos que o fenômeno apresentado é também uma destas tentativas de se conquistar a onipotência através do aprendizado sobre o amor. Acredita-se que é possível a preservação contra o sofrimento amoroso e a obtenção de resultados satisfatórios ao se utilizar de tais classificações para avaliar a potencialidade de um relacionamento e, analogamente, devolver o sofrimento experimentado.

Esta tentativa de evitação da morte, na qual se busca fugir das vivências inerentes ao processo de perda, luto e dor, nos remete à figura mitológica de Sísifo, castigado com a eterna tarefa de levar uma pedra ao topo de uma montada, por tentar diversas vezes se livrar da morte e enganar aos deuses. A incapacidade de aceitação da perda, somada a não elaboração do luto, levam os indivíduos à busca, sintomática e incessante de algo que nunca será alcançado – a felicidade plena. Esse castigo, entretanto, não provém dos deuses transcendentais, mas do deus do prazer.

Há uma necessidade de apertar/adiantar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos para que possam ser desfeitos ao primeiro sinal de ameaça. Os atores desta trama são homens e mulheres que anseiam por um relacionamento para aplacar as angústias provenientes da solidão, embora, fobicamente, rejeitem qualquer forma de comprometimento. Se a lógica do amor romântico gera a promessa de um sentimento eterno, destinado a um único parceiro, a contemporaneidade traz a liberdade de múltiplas experiências amorosas. Contudo, ainda que as formas de se relacionar apresentem-se de forma bastante diversificada, contrariamente, essa miríade de opções parece traduzir uma banalização na forma como lidamos com nossos objetos amorosos.

Freud (1912/1969) nos traz elementos enriquecedores para essa discussão quando destaca uma tendência universal à depreciação dos objetos amorosos. A partir da proibição do incesto, não é permitido o encontro perfeito da ligação entre afeto e a satisfação sexual. Buscamos objetos substitutivos que jamais promovem a satisfação completa, tal qual experimentada na primeira e mítica mamada. Os objetos substitutivos são rebaixados a uma categoria que possibilite a experiência sexual sem o vínculo do amor. “quando amam, não desejam, e quando desejam, não podem amar. Procuram objetos que não precisem amar; de modo a manterem sua sensualidade afastada dos objetos que amam.” Esta depreciação emerge como uma resposta à impossibilidade de se apropriar do objeto primário e podemos identificá-la no processo de desqualificação do outro, presente nas práticas observadas.

A experiência sexual é então efetivada, mas não se alcança a satisfação completa e uma nova busca por novos objetos se inicia, ou seja, não se aprofunda a relação, mas adota-se a multiplicidade das experiências como forma de aprimoramento da habilidade em se relacionar. Essas experiências são, portanto, superficiais e vividas de forma descartável e porque, justamente, intensas, esgotam-se rapidamente. 

Desejar e Descartar: A Experiência do Amor Enquanto Consuma na Contemporaneidade.

A vida em função das atividades produtivas estabelece uma rotina a ser seguida, marcada por tarefas, obrigações, horários e comportamentos determinados. Somos capturados por ideologias que estimulam o consumo, a especialização e produção constantes, conforme elucida Sennett, (2006). A ordem é produzir mais em menos tempo. Dessa forma, construímos e reproduzimos práticas baseadas no paradigma da necessidade de consumir de modo a atingir um status que nos possibilite a satisfação individual. Partindo da premissa de que somos atravessados pelos discursos e pela lógica que organizam as relações sociais, políticas e econômicas, podemos constatar que a subjetividade também é forjada com base nesses valores.

As relações imersas nessa condição são marcadas pelo desejo, como forma de satisfação imediata e também de destruição. Nas palavras de Bauman: o “Desejo é a vontade de consumir. Absorver, devorar, ingerir, digerir – aniquilar.” (2004, p.23). Desejar, desta forma, pressupõe ainda uma exploração obstinada do que não se conhece até que o objeto se esgote e assim se torne desinteressante. Nesse sentido, vale lembrar a famosa música cantada por Simone, “Jura Secreta”, na qual transcreveremos aqui o fragmento com os versos mais relevantes para legitimar nosso argumento acerca da economia pulsional em torno do objeto amoroso:

 “Nada do que eu posso me alucina, tanto quanto o que não fiz, nada do que eu quero me suprime, de que por não saber ainda quis. Só uma palavra me devora, aquela que o meu coração não diz, só o que me cega, o que me faz infeliz, é o brilho do olhar que não sofri”. (Sueli Costa & Abel Silva)

 

 Trata-se, pois, de um impulso imaturo e de curta duração que orienta a busca pelos objetos amorosos. Em contrapartida ao desejo, Bauman refere-se ao amor enquanto cuidado dispensado ao outro, protegendo, preservando e promovendo crescimento. Busca-se através do amor a continuidade do objeto, enquanto, no desejo, o objetivo é a o descarte daquilo que outrora foi vorazmente consumido.

Considerando os escritos de Freud (op.cit) sobre a obtenção de prazer e evitação do desprazer, podemos traçar algumas considerações sobre a relação entre o amor e a destruição presentes no tocante ao uso dos aplicativos mencionados. Concomitantemente à existência de uma força pulsional, que se direciona para a manutenção e produção da vida, há outro aspecto inconsciente que deseja resgatar um estado de ausência de tensão externa, presente em uma condição anterior à experiência de estar vivo. Esta força, a pulsão de morte, é um movimento do próprio indivíduo visando à constância de um estado definido pela ausência de tensão. O descarte dos objetos amorosos pode ser compreendido no sentido de que ao esgotar a relação, se aniquila o outro e qualquer possibilidade produtiva.      

Há, entretanto, outra característica da Pulsão de Morte que cabe aqui destacar: apesar de a morte ser o destino de todos os seres, esta morte apenas é aceita e compreendida como ideal quando sua fonte é o próprio organismo. Nas palavras de Freud: “o organismo deseja morrer apenas de seu próprio modo”, não sendo aceitável que outro ameace a continuidade e a descontinuidade da vida. Quando isto ocorre, a resposta é o ataque àquele que tentou modificar a autoria da morte e a utilização dos recursos aqui abordados serve a esta finalidade. Acreditamos que o uso feito dos aplicativos mencionados visa à destruição de quem um dia interrompeu o curso de um relacionamento, de modo a reafirmar a onipotência quanto à possibilidade de destruir, controlar e produzir a morte.

Outra oposição entre amor e desejo é a liberdade em que se exercita o desejo contrapondo-se ao aprisionamento do amor. Devido à fragilidade dos vínculos nas relações orientadas pelo desejo, os sujeitos circulam livremente, assumindo a mobilidade típica do paradigma pós-moderno, tal qual analisado por Bauman (op.cit.). O amor requer comprometimento e entrega, além da constante abdicação de si em função do outro.

Práticas como a renúncia não figuram como um valor cultivado pela sociedade contemporânea. Tornando, dessa forma, o comprometimento um entrave aos múltiplos estímulos aos quais os indivíduos estão expostos. Na sociedade da performance individual, isso potencializa/reforça uma sensação constante de perda relacionada à crença que o sujeito tem de que o seu desempenho está intimamente ligado à mobilidade, bem como a sua capacidade de expansão e por isso, manter-se fixado em um só relacionamento traria como resultante o sentimento de se estar aquém do que deveria, algo que poderia ser analogamente comparado a uma perda da sua potência ou desempenho, caso livre estivesse, - quando consideramos a diversidade de contatos que deixam de ser estabelecidos.

À medida que as imperfeições e exigências do outro emergem, requerendo acolhimento e aceitação, o sujeito sentir-se-ia impelido a buscar a substituição do objeto amoroso, tal como os produtos que atualmente descartamos ainda com vida útil. Preferimos a aquisição de um novo à reparação daquilo que já conquistamos. Ainda contamos com os serviços de atendimento ao consumidor, às redes sociais e os aplicativos, para expor as queixas e reclamações daquilo que não nos atendeu a contento. Uma constatação deste fato pode ser observada através da mercantilização dos afetos e do tratamento conferido à vida amorosa, - a mesma foi, gradualmente, sendo reduzida e transformada em um grande mercado, com a referente venda de inúmeros produtos a serem consumidos. E é, justamente, na migração/simplificação do perfil de sujeito para simples consumidor, que é justificada a criação e a existência de sites e outros aplicativos semelhantes aos que avaliam as relações afetivas.

Enquanto consumidores: avaliamos produtos e empresas; registramos queixas, insatisfações e elogios, mas, sobretudo, nossas demandas têm a garantia de atendimento, nas filigranas de nossas preferências, posto que o não atendimento das mesmas implica no desrespeito da lógica intrínseca ao consumo – quem paga tem direito, dita as regras e não deve ser frustrado!

 Quando precisamos comprar algo recorremos a estes mecanismos para nos certificar de que o capital será investido adequadamente numa relação positiva entre custo e benefício. Dessa forma, fica claro que a exposição da intimidade também se propõe a reproduzir a lógica do consumo, posto servir de base para investimentos afetivos ou para o descarte daquilo que não tem valor entre um grupo social.

Uma analogia interessante sobre as frustrações vividas nos relacionamentos amorosos e o fracasso em transações comerciais é apresentada por Bauman (2004). Ao enfrentar o insucesso de um investimento, o investidor tenta se desfazer daquilo que não lhe traz lucro no momento mais oportuno. No relacionamento, tal como em uma negociação financeira, tenta-se eliminar o prejuízo sem a preocupação em consultar o objeto investido, - o par amoroso. Este também, um ponto ressaltado nas práticas por nós analisadas, se considerarmos que o discurso proferido pelos “desinvestidos” funciona como uma espécie de retaliação a esta descartabilidade não comunicada.

Se um dos parceiros não é compreendido como sujeito, mas como um título não rentável ou simplesmente um objeto descartável, o mesmo também conceberá o outro como mal investidor, explicitando, dessa forma, sua incapacidade de gerir a relação e obter dela resultados satisfatórios.

Outro aspecto complementar à descartabilidade é associado à urgência de querer viver um relacionamento pronto, tal como um produto a ser consumido no estilo takeaway – prêt à porter. Os dispositivos sobre os quais nos debruçamos, referem-se a uma espécie de vitrine ou prateleira na qual se escolhe um modelo de sujeito-produto e onde teríamos ingerência para definir o perfil do objeto a ser consumido como melhor aprouver, - qualidades, defeitos e até mesmo a forma como exerce sua sexualidade. Com isso, eliminamos os desconfortos inerentes ao processo de construção de uma relação, bem como o outro em sua complexidade e seus incômodos destoantes.

O preço pago para tamanha liberdade é a ausência de garantias, a insegurança apresentada em par constante para todos aqueles que experimentam a solidão decorrente da falta de comprometimento, fruto de relações passageiras, marcadas pelo consumo e o esvaziamento afetivo. Baumam, (op. cit.) afirma que os especialistas e os psicólogos atuam de modo a acolher as angústias provenientes da complexidade das relações afetivas. O que observamos, atualmente, é a utilização de mecanismos diversos para a solução de impasses e ambigüidades. Ao lançar mão de tais recursos, especialmente das redes sociais, não se vive o luto da perda como um processo de conhecimento e reestruturação interior, temos, portanto, a expressão do amor e do ódio sem elaboração, de maneira instantânea, líquida e destrutiva

Considerações Finais

As práticas culturais atuais são o resultado de uma série de transformações ideológicas que mudaram as formas do sujeito de se relacionar com as instituições e com os demais. Se antes a vida cotidiana era regulada e contida por outras instâncias balizadoras, hoje as palavras de ordem são: liberdade, felicidade, aqui-e-agora. Os paradigmas que nos orientam são a fluidez, a instantaneidade dos acontecimentos e a obtenção de prazer individual em detrimento de uma lógica que valorizava adiamento das satisfações e a coletividade.

Para ser livre é preciso estar solto e os laços afetivos também são afrouxados, como forma de se garantir sempre a mobilidade entre os espaços. Nada mais pode aprisionar: nem a dor, nem o amor. Os vínculos são mantidos, superficialmente, na medida em que proporcionam prazer. O tempo das relações parece obedecer à mesma lógica de uso dos bens de consumo. Quando surgem as frustrações, se esgota o interesse e é chegado o fim, não só da relação, mas do outro enquanto sujeito - quando falha em me servir, eu descarto e na condição de objeto de prazer, qualquer falta é intolerável. Dessa forma, as limitações emergem como parâmetro para o momento da troca e avaliação para um melhor desempenho daquilo que deve ser exposto tal qual nos serviços de atendimento ao consumidor, nos quais registramos e tornamos a sua desqualificação pública, reforçando, assim, a sua inutilidade.

Os aplicativos sobre os quais desenvolvemos nossa análise são recursos atuais reveladores da lógica da descartabilidade, da exacerbação do prazer imediato e do individualismo. As práticas aqui descritas refletem, sobretudo, a dificuldade de viver a falta e a incompletude, a partir das tentativas de afirmação da onipotência, ao criar e destruir objetos em detrimento da própria satisfação.

Quando o processo de elaboração das frustrações encontra-se comprometido, a negação através de ataques destrutivos ao objeto faltante parece ser um mecanismo psíquico bastante recorrente.

Além disso, o referido fenômeno parece apontar para um estado do desenvolvimento emocional bastante primitivo, no qual ainda não é possível ao aparato psíquico reconhecer o eu separado do outro e por isso a ansiedade da separação é experienciada de forma devastadora. Se projetarmos esse cenário, intra-psíquico, a um universo mais amplo, de forma que seja possível uma análise da subjetividade contemporânea, no que tange a forma como lidamos com a alteridade, compreenderemos a vivência da falta sentida como um grande vazio de si e por isso não podendo ser concebida em uma sociedade que demanda completude e respostas instantâneas, em todos os seus âmbitos. É preciso consumir vorazmente e sempre, para que sejamos bem sucedidos na evitação da nossa própria fragilidade, aquela que nos remete à vivencia da dor, da falta, do desaparecimento e da desqualificação.

Cabe a nós, cuja função é articular a teoria psicológica com os fenômenos culturais, a promoção de reflexões acerca da incapacidade da sociedade de tolerar o fracasso e as perdas, como se isto não fizesse parte da condição humana. Se o Outro não atende ao investimento, às expectativas e às necessidades que demandamos, é preciso elaborar esta perda, construindo um espaço de reflexão, com a consequente criação de uma forma distinta de existência, de maneira independente, de modo a lograrmos sair do estágio primário de onipotência infantil. A vivência da falta e sua simbolização são fundamentais para que se rompa à lógica “vazia” do consumo. Desenvolver-se é reconhecer a si mesmo, no Outro e na realidade, experimentado relações saudáveis onde haja trocas afetivas e não um confronto de atitudes agressivas. O amor se apresenta como uma possibilidade de encontro e de crescimento quando, ao invés de consumir, se permite o construir.

 

Referências Bibliográficas

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Recebido em: 27/ 05/2014
Aceito em: 03/06/2014

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