CAIO FERNANDO ABREU E O ESPÍRITO DE UMA ÉPOCA

MARIA CRISTINA POLI é Psicanalista, Professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica e do Doutorado e Mestrado Profissional em Psicanálise Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida. Pesquisadora do CNPq e Jovem Cientista do Estado/FAPERJ.

VANESSA SOUZA é Graduada em jornalismo pela Universidade do Vale do Itajaí e mestra em Psicanálise, Saúde e Sociedade (com linha de pesquisa em arte/literatura) pela universidade Veiga de Almeida.


Resumo: O presente texto aborda a obra do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948/1996) como expressão de uma época, os anos 80, além de sugerir que escritores e psicanalistas têm a função de serem testemunhas de seu tempo. Como todas as obras clássicas, os escritos de Caio Fernando Abreu são atemporais, utiliza-se da teoria psicanalítica e literária para demonstrar tal afirmação. O método utilizado foi a pesquisa bibliográfica da obra do escritor.
Palavras-chave: Caio Fernando Abreu, paixão, espírito de uma época, literatura brasileira.

CAIO FERNANDO ABREU AND THE SPIRIT OF AN AGE

Abstract: The present study addresses the works of Rio Grande do Sul writer Caio Fernando Abreu (1948/1996), as an expression of the eighties, besides suggesting that writers and psychoanalysts are supposed to be witnesses of their times. In addition, like every other classic works, Abreu´s writings are timeless, and we employ the psychoanalytic and literary theories to validate such assertion. The method chosen was the bibliographical research of Caio Fernando Abreu works produced throughout the 1980s.
Keywords: Caio Fernando Abreu, passion, Zeitgeist, brazilian literature.

INTRODUÇÃO

O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948/1996) descreveu o Brasil como se estivesse fotografando com cores muito nítidas o período em que viveu, com todas as suas particularidades e fragmentação. Para além de ser um autor que tão bem retratou sua geração como o espírito de uma época, Caio afirmava que escrevia sobre o amor, sua necessidade e sua impossibilidade. Esse escrito pretende trazer um olhar sobre o papel do escritor como expressão de uma época e testemunha de seu tempo.

O artista, assim como o psicanalista, guarda uma posição de crítica à sociedade que testemunha. Mezan (1985) cita um estudo sobre Hermann Broch, que mostra a relação dialética que existe entre a obra de arte, seu público e a época em que é produzida. De acordo com Mezan (p. 27), uma obra de arte “verdadeira” consiste na materialização, segundo o meio de expressão escolhido, do “sentido da época”, apreendido pelo artista em virtude de uma visão intuitiva que lhe permite captar a época com totalidade, acima e através de multiplicidade desorientadora dos acontecimentos que se sucedem e coexistem. Assim, uma obra de arte que reproduz o conteúdo total de uma época (e não apenas seu estilo), e que representa, por isto, uma ‘novidade’ inquietante, torna-se, geralmente, algo familiar e reconhecido apenas quando o período da sua criação já se tornou uma realidade histórica.

Lacan, no Livro 7, a ética da psicanálise (1959-1960/2008) faz referência ao espírito de época que os artistas tão bem retratam.

“Reparem que não há avaliação correta possível da sublimação na arte se não pensarmos nisso – que toda a produção de arte, especialmente das Belas-Artes, é historicamente datada. Não se pinta na época de Picasso como se pintava na época de Velázquez, não se escreve tampouco um romance em 1930 como se escrevia no tempo de Stendhal. Este é um elemento absolutamente essencial que não devemos, por enquanto, conotar no registro do coletivo ou do individual – coloquemo-lo no registro do cultural. O que é que a sociedade pode aí encontrar de satisfatório? (1959-1960/2008, p. 132)

Em 1986, Caio Fernando Abreu publicou uma crônica na qual compara a perda do amor à perda da morte. Só que, segundo ele, aquela era a que doía mais, já que a morte natural das pessoas é inexorável. A morte do amor é antinatural, já que o objeto de desejo está vivo e poder-se-ia tê-lo. Mas não se tem. Nesta mesma crônica, ele cita Werther e afirma que amar, nos anos 80 e no século XX, está fora de moda.

“Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo. (...) No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira: compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe, berrando de pavor para o mundo insano, e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó. O que ou quem cruzou entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya, ilusão, passatempo. E exigimos o terno do perecível, loucos. (...) Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu”. (Abreu, 2006, p. 30-31)

Quase 20 anos depois de Caio Fernando Abreu escrever que amar é “babaca”, fora de moda, Bauman (2004) propõe um amor líquido: vínculos atados de maneira frouxa, para que possam facilmente ser desfeitos. Relacionamentos leves ou de bolso, para que se disponha deles quando necessário, e os guarde para quando for mais conveniente.

Bauman sugere uma alegoria de um relacionamento amoroso, com a dinâmica de um investimento: entra-se com tempo, dinheiro, trabalho e espera-se disso um lucro. Esse lucro, em termos amorosos, pode ser a segurança de companhia. No entanto, também traz o peso dessa mesma segurança. Bauman compara o amor líquido a uma hipoteca.

“O amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável. O amor pode ser, e frequentemente é, tão atemorizante quanto a morte. Só que ele encobre essa verdade com a comoção do desejo e do excitamento. (...) As promessas de amor são, via de regra, menos ambíguas do que suas dádivas. Assim a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar. E o fascínio da procura de uma rosa sem espinhos nunca esta muito longe, e é sempre difícil de resistir”. (Bauman, 2004, p. 23)

Diante da descrição de Caio Fernando Abreu, ao afirmar que o amor-paixão tornou-se “babaca” no século XX, pode-se perguntar: o que diria ele do século XXI? Para além da literatura, isso é o que se enxerga/ouve/vivencia nos relacionamentos, nos consultórios, nas histórias dos conhecidos. Os sujeitos vivem oscilando entre o entregar-se e não receber o “investimento” na mesma medida de volta. Aliás, a paixão no século XXI é muito medida, no que tange à simetria e a disponibilidade do afeto.

Em 1985, a psicanalista Aulagnier ressalta que, no que tange às paixões, nada garante ao Eu sua persistência no tempo após o momento presente. Ele só pode persistir aceitando que o momento atual é sempre efêmero, em movimento. A psicanalista ainda reforça que, sendo o investimento libidinal direcionado ao outro, de forma privilegiada ou não, o que permanece no psíquico é o que conta.

“Em outro termo, investe num “objeto” e numa “finalidade” que possuem as características que o Eu mais detesta: a precariedade, a imprevisibilidade, a possibilidade de faltar. (...) É por isto que a melhor referência que temos da força de nossos próprios investimentos, por mais ambígua que ela seja, é o tempo da presença em nosso espaço psíquico da referência pensada do outro”. (Aulagnier, 1985.p. 19-20)

Pensar em Caio como crítico que vislumbra a vivência de sua geração é também vê-lo como um autor que soube retratá-la com propriedade, pois o fez retratando muito de si mesmo. O reflexo dessa geração, na escrita de Caio, trazia a desesperança e o horror que a população brasileira viveu durante e depois dos anos de chumbo, a ditadura militar. Além da produção do escritor gaúcho na década de 80, toda a sua obra pode ser lida por qualquer pessoa de qualquer época.

No prefácio que a escritora Márcia Denser (2005) escreveu para a reedição de Os dragões não conhecem o paraíso – para ela o melhor livro de Caio – na coleção “Caio 3D” (2005), Denser enfatiza o amor na obra caioferdiana. Amiga pessoal e da mesma geração, a autora foi tão ácida quanto ele, sublinhando que o escritor gaúcho não mente quando diz que vai tratar do amor, “apenas se equivoca absurdamente”, uma vez que não expõe o amor no sentido genérico, mas o “Amor tal como é vivido e sentido por ele próprio, ou seja (de acordo com os textos), relacionado a medo, abandono, loucura, morte, sexo, memória. As inúmeras faces de um Eros sinistro e noturno, representado sempre como maldição, nunca como benção”. Denser avalia: “Então são contos sobre o que o amor não é, sobre sua ausência, sua infinita carência”, salientando que no único conto em que o amor tem final feliz (“Mel e girassóis”) lê-se a realização desse amor como chiste do “Amor-Mercadoria”, “crítica que duplica a crítica preexistente no conto parodiado ‘Ventos alísios’ de Júlio Cortázar”. Para Denser, a oposição deste gênero de amor, sentido na vida real, se constitui na ficção que, inversamente à vida, dá lugar ao questionamento.

Denser (2005) também acredita que a falta de esperança dos contos de Caio são resultado de uma realidade sociopolítica contraditória, como aquela vivida no Brasil na década de 80. Inflação absurda de trezentos por cento ao ano, o que torna complicado vislumbrar um futuro compensador: “Mas é nesse contexto que os heróis anônimos de Caio fazem todo o sentido. Abstraindo-se a Aids, o contexto econômico da época era tão adverso que por si só explicaria a ausência de projeto existencial e prospecção futura dos seus personagens”. Considera, porém, que “a obsessão de Caio F. pela temática amorosa associada a um Eros socialmente interdito é suficiente para esboçar a dimensão trágica do conflito central, aliás, insolúvel de seus personagens/narradores”. (2005, p. 10)

Em uma matéria do Jornal Zero Hora (1996), Carvalhal destaca o papel de Caio como narrador urbano, rompendo os limites geográficos e construindo em seus relatos um imaginário que não é apenas o da província natal, mas o do mundo. “Explorando situações existenciais que se convertem em testemunho de uma geração, Caio Fernando Abreu soube articular solidão e solidariedade, o individual e o coletivo. Isso porque, ao investigar profundamente o universo subjetivo, transcende o círculo mesquinho do Eu para multiplicar-se em várias figurações. Em particular, ao tratar das formas de reagir a convencionalismos impostos, acaba por manifestar recusa a qualquer tipo de opressão”. (Carvalhal, 1996)

O que se vê da geração 80 no Brasil, na escrita de Caio, é a desesperança e o horror que a população brasileira viveu durante e depois dos anos de chumbo da ditadura militar. Os personagens criados por Caio são fotografias do espírito dessa época. Seres profundamente marcados pelo vazio, carências, loucura e por várias nuances de isolamento e marginalidade. Apesar disso, buscam o amor.

Década de 80, sujeitos desbussolados e sua literatura

A década de 80 sofreu grandes transformações no contexto histórico, social e literário. Segundo Süssekind (2002, p. 257), com a saída dos censores das redações jornalísticas em junho de 1978, fica sem função a literatura parajornalística, que se encarregava de suprir, em livro, as notícias lacunares, com as informações proibidas na grande imprensa. Sendo assim, a vertente realista, tão forte na literatura brasileira, passou a adotar, na década de 1980, outros modelos literários, descartando contos-notícias e romances-reportagem, de um lado, e testemunhos e confissões, de outro.

A figura do narrador, nos anos 80, traz uma ficção próxima ao ensaio, repleta de subjetividade. “onde protagonistas e intriga, propositalmente hesitantes, dialogam, críticos, com aquele que narra, dobradiça esta também, sobre cujo ombro olha um outro que lhe rasura, as certezas, num verdadeiro abismo narrativo-ensaístico; seja na teatralização da linguagem do espetáculo, convertendo-se a prosa em vitrine onde se expõem e observam personagens sem fundo, sem privacidade, quase imagens de vídeo num texto espelhado onde se cruzam, fragmentárias, velozes, outros pedaços de prosa igualmente anônimos, igualmente pela metade”. (Süssekind, 2002, p. 258)

Há aqui uma grande mistura na ficção, entremeada de notícias de jornal, diálogos de filmes, rádio, tevê, publicidade, figuras da cultura de massa que se esbarram em personagens anônimos. O narrador também muda. Ora é pouco efusivo e medíocre, ora é objeto do olhar cruel de outros narradores, que se divertem mostrando-o patético (Süssekind, 2002, p. 265).

Personagens em trânsito na ficção ensaística, ou reduzidas ao anonimato, um dos alvos favoritos da ficção nos anos 80 parece ser o “autocentramento das confissões”, testemunhos e memórias que vieram de 1970.

Para Fischer (1999, p. 35), a década de 80 representa um dos melhores marcos de delimitação do século. Isso porque o caminho dos anos 80 vem da derrocada dos sonhos dos anos 60 (coletivismo, vida natural...) até a total irrelevância.

“Dizendo de outro jeito: dá a impressão que a capacidade de regeneração do Sistema (assim a gente falava lá no comecinho da década) é tamanha que não faz sentido alimentar utopias: parece que tudo vai pro saco da indistinção que vem de se intitular “pós-moderna”. (Fischer, 1999, p. 39)

No âmbito da literatura brasileira, Caio Fernando Abreu faz parte do time de escritores que produz ficção urbana, de vertente intimista, e costuma ser enquadrado em uma literatura produzida em um período determinado, marcado pelos acontecimentos das décadas de 1960 e 1970, chamado por alguns teóricos de literatura do pós-1964 (Costa, 2011, p. 44).

Essa literatura urbana traz temática e expõe personagens ligados às circunstâncias das grandes cidades. Com a evolução tecnológica e industrial, a sociedade das grandes cidades assume um caráter capitalista, o que leva seus habitantes ao desequilíbrio e ao isolamento, voltando-se para e sobre si mesmos.

“A literatura urbana, pela vertente intimista, reflete esse processo, apresentando uma ótica centrada na interioridade dos personagens e na psicologia individual, cujo principal procedimento narrativo é a prosa de introspecção. Esse recurso é explorado intensamente nos textos de Caio, nos quais muitas vezes ocorrem o monólogo interior e o fluxo de consciência, a narrativa na primeira pessoa, o discurso indireto livre, o aspecto onírico e a utilização de imagens arquetípicas e símbolos das tradições esotéricas” (Costa, 2011, p. 43).

A literatura feita após o Golpe de 1964 é constituída, sobretudo, pela crítica radical ao autoritarismo. Por isso, faz reflexão sobre o programa de mecanismos repressivos e a consequente desigualdade social. Em termos de estilo, segundo Costa (2011, p. 44), essa produção literária retoma os princípios estéticos realistas, acrescentando um novo traço: a escrita metafórica ou fantástica. A literatura fantástica foi uma tendência forte não só no Brasil, mas nas Américas do Sul e Central, também oprimidas por regimes ditatoriais e censura. O conto, uma narrativa curta, era o gênero literário mais utilizado respondendo às necessidades do tempo na pressa de comunicar-se.

O narrador, uma voz que fala pelos indivíduos que moram nas grandes cidades e por aqueles que se sentem deslocados e incômodos, sufocados e oprimidos pelo vazio, pela alienação e falta de sentido de uma sociedade massificadora, agredidos pela violência social, política e psicológica.

“Seus personagens representam uma geração que, ao buscar uma liberdade perdida e uma individualidade que lhes foi invadida e roubada pelo autoritarismo político, assume uma ideologia subjetivista de manutenção da identidade pessoal. Sob sua lente, os dramas vividos naquele momento de crise são vistos como experiências de transformação, com a constante reafirmação do ser humano.” (Costa, 2011, p. 44)

Para Costa (2011, p. 44-45), Caio destacou-se entre os autores de sua época por ter uma narrativa com uma estética muito particular, original e criativa, minuciosamente trabalhada do ponto de vista formal, e com uma percepção psicológica muito sensível. Sua linguagem é imensamente lírica, com um traço altamente subjetivo e emocional, através da seleção vocabular marcadamente poética, do uso da sugestão, de elipses e silêncios. Caio se utilizava com freqüência da intertextualidade, em um diálogo com outros escritores e com outras obras literárias, e também com artes como a música e o cinema. Não raro, o escritor inseria fragmentos de outras obras na narrativa e abria janelas, como na técnica de mise-en-abîme – técnica que consiste, por meio de uma visão de profundidade, reproduzir o objeto estético em tamanho menor: mirando o todo, o detalhe converge para o detalhe que o reproduz (Moisés, 2004, p. 298) - criando diferentes histórias dentro da história.

Caio tinha o admirável dom de capturar o tempo através da interioridade das suas personagens e de referências musicais, literárias, cinematográficas e etc., através das quais o leitor, além de se situar historicamente, se vê envolvido por uma atmosfera inebriante que o transporta para aquele momento, fazendo-se participante. O escritor era um grande criador de climas, e fazia isso com maestria através de sua linguagem fortemente imagética e minimalista.

Para Costa (2011, p. 45), nos contos de Caio, o tempo e o espaço são condensados: “a ação transcorre em alguns momentos, em um dia ou poucos dias, e se dá, sobretudo, em espaços fechados como quartos, apartamentos, casas, bares e etc.” O espaço externo reflete a situação de opressão e limitação, ou não é relevante na narrativa. O que verdadeiramente importa é o espaço interior dos personagens, que não estão em profusão na obra do escritor gaúcho. Grande parte dos textos de Caio traz um personagem-narrador, na primeira pessoa. A temática na obra caioferdiana é muito voltada para o social, pela perspectiva interna, e mostra a visão de sua geração que enfrentou uma das épocas de maior tensão e conflito político no Brasil. Os personagens de Caio são fotografias desse contexto, como seres profundamente marcados pelo vazio, carências, insanidade e por várias nuances de isolamento e marginalidade. No entanto, há sempre a busca de sua identidade e do amor.

A busca dessa identidade, no sentido existencial, permeia toda a sua obra literária. “É quase um monotema, a que outros temas se encontram vinculados, através de personagens solitários, na sua maioria, anônimos, descentrados e em conflito com a realidade exterior. (...) Embora esteja o ser/personagem fragmentado, sua literatura não se fragmenta” (Costa, 2011, p. 45).

Costa (2011, p. 46) nos lembra de que por mais que Caio mergulhe na subjetividade e no fluxo de consciência (e do inconsciente) com todas as suas nuances e que ele abra, desdobre e multiplique o seu texto - explorando a intertextualidade e referências a outras linguagens, como a música, o cinema, a metafísica e o esoterismo -, ainda assim, cada conto, romance, crônica, peça teatral, cada obra, e a obra como um todo, se mantém sempre encadeada e lógica, como se houvesse uma costura invisível. Tudo é pensado, detalhado, todos os elementos têm sentido e significado, compondo um grande jogo de armar, articulado por um grande poder de síntese.

Pode-se até pensar na obra de Caio Fernando Abreu como uma obra em progresso (work in progress). Os personagens de Caio envelhecem e vivem a ação do tempo, no início adolescentes ou com vinte e poucos anos no final da década de 1960 e alcançam a maturidade nos anos 1980 e início de 1990. Podemos observar na obra de Caio uma representação da sociedade comportamental e política, investigada por uma perspectiva interna, em um viés existencial e psicológico. Por isso, apesar de sua intensa inserção em sua época, é certo também que o escritor tratou de temas universais e permanentes, seus horizontes ultrapassam as circunstâncias do período em que foram escritos.

“Caio vai além do ambiente da realidade concreta, questionando-a e confrontando-a, porque ali se vê fragmentado, sozinho e incompleto. A literatura se transforma em espaço de reflexão, de busca de si mesmo e do outro, em busca de compreensão da existência e de seu lugar no universo”. (Costa, 2011, p. 48)

De acordo com Leal (2002, p. 90-91), pode-se estabelecer uma relação entre o texto ficcional e a época em que se inscreve e que escreve, possibilitando que se esclareçam algumas de suas ambigüidades.  “Ao centrar-se no eu, por exemplo, esse texto se posiciona a despeito de sua própria articulação dos elementos narrativos, numa tradição literária, romântica e moderna, da qual fazem parte, entre outras, as obras de Clarice Lispector e Virgínia Woolf.” (Leal, 2002, p. 91)

O texto, imerso num conjunto de relações históricas, acaba apresentando uma versão própria, “um rosto” para esse tempo. Os textos de Caio foram escritos numa época determinada, final do século XX, e num espaço cultural marcado, as grandes cidades em sua maioria.

“A cidade grande se torna cada vez mais presente nos contos, em cada livro, hiperbolizando-se aos poucos, como indicam as referências quase sempre muito episódicas, a cidades concretas. Num primeiro momento Porto Alegre, e, depois, Londres e São Paulo, são espaços sociais que se transformam em componentes do texto literário. (...) As metrópoles são o lugar onde se vive a angústia e a procura de si; o lugar da harmonia e da ingenuidade. (Leal, 2002, p. 91)

Na história da literatura brasileira, Caio Fernando Abreu tem destaque como

“Um ficcionista refinado e discreto (...) que, na sua breve vida de escritor marginalizado, nos deu um reduzido ciclo de obras-primas “urbanas” com personagens isolados no mundo e prisioneiras delas mesmas. Contos e romances de formação, como ritos de passagem, eles possuem uma dimensão surrealista em que mais evidente se torna o conflito entre indivíduo e sociedade” (Stegnano Picchio, 2004, p. 646)

Como se faz um clássico (Morangos Mofados) 

Selecionado como um dos “100 livros essenciais da literatura brasileira” pela revista Bravo! (2006), o livro “Morangos Mofados”, o mais conhecido de Caio Fernando Abreu, é um clássico. Segundo a revista, neste referido livro, o escritor utiliza linguagem e temáticas próprias, adentrando nos sentimentos humanos mais proibidos.

Seus escritos, em geral breves e repletos de significado, tendem a deixar uma sensação de vazio interior após a leitura, um silêncio que o inconsciente do leitor luta para eliminar, em busca de palavras ou idéias que ficariam pedidas nas entrelinhas [...] O mérito de Caio Fernando Abreu, em Morangos Mofados, foi ter revelado, num período em que o Brasil não tinha retomado a democracia, o que faziam e o que sentiam os loucos, os homossexuais e a própria juventude diante do preconceito da sociedade e da repressão a seus ideais [...] Na verdade, o autor serviu-se de estados com que lidou em seu cotidiano, como o estranhamento, a solidão, a dor e a marginalização. (Bravo!, 2006, p.88)

E como se faz um clássico? Ítalo Calvino (2009) nos dá algumas dicas. Segundo Calvino (p. 9), nunca estamos relendo um clássico, e sim lendo. “Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”, (Calvino, p. 11)

Pela universalidade que um clássico nos proporciona, a sua primeira leitura tem ares de releitura, pois há nele ideias que nunca se esgotam em dizer o que tinham a contar ao leitor. Calvino (2009, p. 11) enfatiza que os clássicos são os livros que chegam ao leitor trazendo consigo marcas de outras leituras que vieram antes da nossa, além de deixar atrás de si traços que perpetuam na cultura e culturas que atravessam. “Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer; quando são lidos de fato, mais se revelam novos, inesperados, inéditos”. (p. 12)

Para Calvino (2009), é clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo, além de ser o que “persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível” (p. 15) O autor sugere que o máximo que podemos apreender da leitura de um clássico é alterná-la com a leitura de livros atuais, em uma sábia dosagem.

De acordo com Dirda (2010), os clássicos não são clássicos por serem didáticos, mas porque merecem ser lidos por todas as gerações, século após século. “Acima de tudo, os grandes livros nos falam de nossos próprios sentimentos e nossas falhas, de nossos devaneios e perturbações tão demasiado humanos. A dor de Safo é a mesma que a de qualquer outra pessoa que já tenha se apaixonado perdidamente por alguém” (2010, p. 1)

Lacan (1959-1960/2008) nos lembrou, como indicado anteriormente, que toda produção artística é datada historicamente. Artistas são pensadores de seu tempo, e deixam para nós um legado atemporal, os clássicos. Caio Fernando Abreu retratou como poucos o espírito de sua geração. Sua obra é permeada de referências musicais, literárias, cinematográficas, teatrais, onde o leitor, além de se situar historicamente, é transportado para aquela atmosfera da narrativa.

Os personagens de Caio são fotografias muito nítidas da década de oitenta (e não só deste período), seres profundamente marcados pelo vazio, carências, insanidade e por várias nuances de isolamento e marginalidade. Contudo, no entanto, apesar de, além de... buscavam amor.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AULAGNIER, Piera. Os destinos do prazer: alienação, amor, paixão. Rio de Janeiro: Imago, 1985, p.19-20.
BAUMAN. Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p.23.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.9-15.
COSTA, Amanda. 360 graus: Inventário astrológico de Caio Fernando Abreu.  Rio Porto Alegre: Libretos, 2011, p. 43-48.
DENSER, M. A crucificação encarnada dos anos 80. In: ABREU, C. F. Caio 3D. O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005, p. 10.
DIRDA, Michael. O prazer de ler os clássicos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010, p. 1.
FISCHER, Luís Augusto. Para fazer diferença. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999, p.35-39.
LACAN, J. [1959-1960] O seminário: a ética da psicanálise. Rio de janeiro: Zahar,  2008. Livro 7, p. 132.
LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu: a metrópole a paixão do estrangeiro: contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002, p.90-91.
MEZAN, Renato. Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 27.
SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002, 257-265.

Entrevista

CARVALHAL, T. F. O encantador de serpentes da escrita. Zero Hora, Porto Alegre, Cultura, p. 3, 2 de março de 1996.

 

Recebido em: 03/04/2014

Aceito em: 04/06/2014

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