Questões Contemporâneas

TEATRO NA ESCOLA: UMA POSSIBILIDADE DE EDUCAÇÃO EFETIVA

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MÁRCIA AZEVEDO COELHO foi professora de Artes Cênicas por 12 anos em escolas de Ensino Básico. É doutora em LiteraturaBrasileira pela Universidade de São Paulo. Concluiu Mestrado em 2004, Licenciatura em 2007 e Bacharelado em 2002 pela mesma Universidade. É técnica em Artes Cênicas, pedagoga, Coordenadora do curso de Pedagogia da Faculdade Paulista de Pesquisa e Ensino Superior e da área de Linguagens e Códigos do Colégio Espírito Santo. Editora da revista e- fappes e colaboradora da revista Gênesis. Publicou as obras Introdução ao Gênero Acadêmico e Muito siso e pouco riso: a comédia conservadora de França Júnior. Desenvolve cursos de formação continuada de professores nas áreas de Linguagens e Códigos e Metodologia de Ensino.
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Resumo: Este artigo discorre sobre o teatro como uma ação pedagógica potencialmente capaz de auxiliar o processo educacional de forma a imprimir nele maior sentido. Com este texto, objetiva-se incitar a discussão sobre a capacidade que o teatro-educação tem de promover o desenvolvimento integral do aluno, trabalhando as sete habilidades estudadas pelo pesquisador Howard Gardner, as quais visam ampliar o conhecimento, sensibilidade e tolerância entre as pessoas de modo geral e, especificamente, no caso do teatro na escola, entre os membros da comunidade escolar.
Palavras-chave: Teatro-educação. Desenvolvimento integral. Habilidades.

THEATRE IN SCHOOL: A POSSIBILITY OF EFFECTIVE EDUCATION

Abstract:  This article is about the theater as a pedagogical action potentially able to assist the educational process in order to print it larger sense. With this text, the objective is to encourage the discussion about the ability that the theater-education has to promote the integral development of the student, working seven skills studied by researcher Howard Gardner, which aim to increase the knowledge, sensitivity and tolerance between people in general, and specifically in the case of theater in school, among members of the school community.
Keywords: Theatre education. Integral development. Skills.

INTRODUÇÃO

Este artigo aborda o teatro como uma atividade potencialmente muito produtiva no universo escolar, capaz de promover habilidades essenciais para o desenvolvimento integral do aluno, muitas vezes, negligenciadas pela grade curricular obrigatória.

O objetivo deste texto é reafirmar a teoria já desenvolvida por alguns pesquisadores (JAPIASSE, 1998; KOUDELA, 2005; MONTEIRO, 1994; REVERBEL, 1979; SANTIAGO, 2004; VIDOR, 2010), a qual defende que, por meio de jogos e da encenação propriamente dita, o teatro na escola colabora não só para a promoção do sentimento de pertencimento do aluno em relação à comunidade escolar, como também para a ampliação do  universo artístico e  cultural, possibilitando o trabalho reflexivo, a capacidade de apreciação estética e consequentemente a formação de um ser humano consciente de suas diversas competências e habilidades.

Ainda que tema de diversos artigos de divulgação, o teatro na escola constitui-se como uma ferramenta pouco estudada sob o ponto de vista de seu potencial educativo e pouco aplicada nas escolas brasileiras, assim como em outros países - que também carecem de incremento em metodologias e práticas de ensino.

A teoria das inteligências múltiplas, de Howard Gardner,  as pesquisas sobre Jogos teatrais para crianças, de Peter Slade e, especificamente sobre a educação brasileira, os Parâmetros Curriculares Nacionais – Artes e a Lei 9394/96, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases, fundamentam teoricamente discussão que ora se propõe.

A abordagem metodológica deste artigo foi concebida de modo dedutivo. Partindo do geral com o capítulo “A Teoria das Múltiplas Inteligências e o Teatro”, passando pelos temas “Teatro na Educação”, “Teatro na Educação do Brasil”, “PCN- Arte”, para, por fim, chegar a uma abordagem específica, ao analisar as dificuldades dessas teorias nas escolas brasileiras de Ensino Básico.

A Teoria das Múltiplas Inteligências e o Teatro

A teoria das inteligências múltiplas foi desenvolvida a partir dos anos de 1980 por pesquisadores da universidade de Harvard e divulgada, principalmente, pelo psicólogo, líder do grupo de pesquisas, Howard Gardner.

Gardner fundamentou sua teoria na afirmação de que a inteligência não poderia ser medida e tampouco poderia se restringir às habilidades linguística e lógico-matemática. Para o pesquisador, os seres humanos normais têm condições de desenvolver pelo menos sete habilidades interdependentes, que se  relacionam e auxiliam na resolução criativa de problemas.

 Em sua obra The Shattered Mind(1985), o pesquisador contesta a afirmação dominante, até então, de que a inteligência era uma “capacidade inata, geral e única, que permite ao indivíduo uma performance, maior ou menor, em qualquer área de atuação”(GAMA, p. 1) e apresenta sete inteligências as quais são passíveis de desenvolvimento em qualquer ser humano normal. Essas inteligências foram denominadas como lógico-matemática, linguística, espacial, musical, sinestésica, interpessoal  e  intrapessoal.

Em sua obra Inteligências múltiplas: a teoria na prática, o pesquisador define cada uma das sete inteligências, como se pode ler no trecho abaixo:

A inteligência linguística é o tipo de capacidade exibida em sua forma mais completa, talvez, pelos poetas. A inteligência lógico-matemática, como o nome implica, é a capacidade lógica e matemática, assim como a capacidade científica.  [...] A inteligência espacial é a capacidade de formar um modelo mental de um mundo espacial e de ser capaz de manobrar e operar utilizando esse modelo. Os marinheiros, engenheiros, cirurgiões, escultores e pintores, citando apenas alguns exemplos, todos eles possuem uma inteligência espacial altamente desenvolvida. A inteligência musical é a quarta categoria de capacidade identificada por nós: Leonard Bernstein a possuía em alto grau; Mozart, presumivelmente, ainda mais. A inteligência corporal-cinestésica é a capacidade de resolver problemas ou de elaborar produtos utilizando o corpo inteiro, ou partes do corpo. Dançarinos, atletas, cirurgiões e artistas, todos apresentam uma inteligência corporal-cinestésica altamente desenvolvida. Finalmente, eu proponho duas formas de inteligência pessoal – não muito bem compreendidas, difíceis de estudar, mas imensamente importantes. A inteligência interpessoal é a capacidade de compreender outras pessoas: o que as motiva, como elas trabalham, como trabalhar cooperativamente com elas. Os vendedores, políticos, professores, clínicos (terapeutas) e líderes religiosos bem- sucedidos, todos provavelmente são indivíduos com altos graus de inteligência interpessoal. A inteligência intrapessoal, um sétimo tipo de inteligência, é a capacidade correlativa, voltada para dentro. É a capacidade de formar um modelo acurado e verídico de si mesmo e de utilizar esse modelo para operar efetivamente na vida (GARDNER, 1995, p. 15).

Gadner ainda comenta a ênfase dada pela educação tradicional a dois tipos de inteligência em detrimento das outras.

Em nossa sociedade, entretanto, nós colocamos as inteligências linguística e lógico-matemática, figurativamente falando, num pedestal. Grande parte de nossa testagem está baseada nessa alta valorização das capacidades verbais e matemáticas. Se você se sai bem em linguagem e lógica, deverá sair-se bem em testes de QI e SATs, e é provável que entre numa universidade de prestígio, mas o fato de sair-se bem depois de concluir a faculdade provavelmente dependerá igualmente da extensão em que você possuir e utilizar as outras inteligências, e é a essas que desejo dar igual atenção (GARDNER, 1995, p. 15).

Segundo o psicólogo, embora qualquer pessoa normal possua as sete inteligências, o desenvolvimento delas não se dá de forma homogênea. Na concepção de Gardner, é muito comum que algumas habilidades se desenvolvam mais do que outras, e os fatores que influenciam na preponderância de um tipo de inteligência sobre outro vão desde a genética, incentivo do meio até a cultura, por isso, o incentivo restrito a duas das habilidades, de alguma forma, embota o incremento das outras.

Assim, não é por acaso que a teoria das múltiplas inteligências exerceu grande influência em pesquisas educacionais. A experiência nas escolas demonstra que o fracasso escolar, na maioria das vezes, não está associado a crianças, jovens ou adultos incapazes de resolver problemas práticos no cotidiano, mas a pessoas incapazes de atenderem a uma solicitação muito restrita acerca das potencialidades das inteligências.

A partir de tal percepção, escolas em diversos países vêm ampliando os meios de ensino-aprendizagem e formas avaliações diversificadas, menos padronizadas, no intuito de captar melhor as habilidades individuais.

Entretanto, se a teoria das múltiplas inteligências possibilitou que a educação galgasse a passos largos no intuito de:

encorajar os seus alunos (...) a resolver problemas e efetuar tarefas que estejam relacionadas com a vida na comunidade a que pertençam, e que favoreçam o desenvolvimento de combinações intelectuais individuais a partir da avaliação regular do potencial de cada um. (GAMA,p.4)

O teatro pedagógico tem nesse processo o seu fundamento, muito antes de conhecer o conceito formulado por Howard Gardner.

O Teatro e a Educação 

Na educação, o teatro apresenta-se como excelente ferramenta, já que atua como um recurso importante para a formação comportamental. Por meio de jogos teatrais e do trabalho no palco é possível acionar, sem muito esforço, as sete inteligências e desenvolver as habilidades a elas relacionadas.

Na prática do teatro na escola, é comum, já no primeiro momento das “aulas” os integrantes trabalharem a inteligência cinestésica, utilizando o corpo para se expressar e resolver problemas. Também, não raro, desde o primeiro encontro, os alunos recorrem à inteligência interpessoal, por exemplo, nas improvisações, em que um contracena com outro sem texto prévio e necessita desenvolver a capacidade de entender e responder adequadamente a estímulos e intenções reveladas no jogo de cena.

No decorrer do processo, desenvolve-se muito a inteligência espacial e, com pouco tempo de atividade, os integrantes dominam técnicas de composição e equilíbrio de corpo, de objetos e de palco.

Por meio das coreografias, ritmo de cena, textura de timbres vocais, utilização de instrumentos para a sonoplastia, estimula-se a inteligência musical.

Na ocasião da escolha do texto a ser encenado, assim como em todo o processo de montagem de peças, há grande ênfase na inteligência linguística, já que a partir da definição das personagens, trabalham-se os sons, ritmos e significados das palavras. Cria-se e modifica-se o texto em função de um novo contexto ou personagem e prioriza-se a função poética em detrimento da informativa.

Como no teatro-educação a ênfase recai, não na autoria original do texto, mas na criação coletiva de um texto que se torna pretexto, acentua-se o processo de criação, desconstrução e recriação, e, em consequência disso, além das cinco inteligências já mencionadas, aprofunda-se no desenvolvimento da inteligência intrapessoal, definida por Gardner como “a habilidade para ter acesso aos próprios sentimentos, sonhos e ideias, para discriminá-los e lançar mão deles na resolução de problemas pessoais.”(GAMA, p. 2)

É certo que a inteligência intrapessoal tem um ambiente propício para seu desenvolvimento nas artes cênicas em função do caráter simbólico desse tipo de atividade. Não é sem motivo, portanto, que o teatro pedagógico centra-se no desenvolvimento nesse tipo de inteligência, já que tem como seu fundamento a formação comportamental.

Por isso, o teatro na educação investe mais no processo do que no resultado. Diferentemente do teatro profissional, ele não vive do ou para o púbico, mas da e para a educação e desenvolvimento das diversas habilidades dos alunos que, por sua vez, não se encontram sob a tutela de um diretor de teatro, mas sim de um coordenador de processos.

Desta forma, é desejável que no teatro pedagógico o aluno cuide do cenário, figurino, trilha, sonoplastia e de tantas outras funções quantas forem necessárias para que o resultado seja a afirmação da autoria dos integrantes.

Em virtude disso, o teatro enquanto prática pedagógica insere-se como uma atividade fundamentalmente coletiva, que prima pelo respeito de seus integrantes, aperfeiçoamento das inteligências do indivíduo e também do grupo. E, de maneira similar ao que defende Howard Gardner tendo como foco seus estudos sobre psicologia, podemos afirmar que o processo do teatro-educação parte do princípio de que todos os indivíduos normais têm a possibilidade de desenvolver todas as inteligências, ainda que de forma vertical, ou seja, ainda que em graus diferenciados de desenvolvimento.

Nessa prática, que tem a encenação como o fechamento de um ciclo de trabalho, o grau de desenvolvimento de cada integrante é respeitado. É comum um aluno pleitear, inicialmente, um personagem protagonista e – no decorrer do processo- abrir mão do papel em função das suas limitações naquele momento. Quem define os papéis no teatro pedagógico são, em princípio, os próprios membros e, posteriormente, o processo. O professor não é o único responsável pelo resultado, mas o coordenador de um grupo que, juntamente com os integrantes, responsabiliza-se pelo êxito total ou parcial da proposta que moveu um determinado ciclo.

Nesse processo, há também evidente desenvolvimento da capacidade de liderança, outra habilidade considerada por Gardner

[...] como  uma das formas de inteligência, não apenas num domínio ou disciplina, mas como uma habilidade visionária aplicada em sociedade, ou até mesmo para reorientar este domínio segundo as necessidades sociais.

Como regra prática, os artistas, cientistas e especialistas de várias disciplinas que são criativos lideram indiretamente, através de seu trabalho; os lideres efetivos de instituições e nações lideram diretamente, através das estórias e atos que comunicam à audiência. (GARDNER, 1996, p.13)

O psicólogo alerta que a liderança tem dois vieses, um positivo e negativo.  O líder negativo influencia tanto quanto o construtor, por isso, é comum escolas que não dão vazão e não trabalham com o desenvolvimento dessa habilidade descobrirem “muito tarde” e por meio, às vezes, de ações catastróficas, líderes negativos que poderiam ter contribuído positivamente para o fortalecimento da comunidade escolar.

No teatro as lideranças ficam evidentes rapidamente e, via de regra, são utilizadas de maneira a promover o crescimento do grupo, já que no espaço cênico é dada a chance a todos os integrantes de se expressarem por meio de diferentes formas, assim um líder pode não ser um aluno exímio em matemática, mas, por exemplo, em habilidades manuais, e, ao ter a possibilidade de demonstrar isso, sua liderança caminha para a vertente da construção e não do mero enfrentamento, como se percebe em muitas salas de aula, nas quais alunos que exercem liderança a utilizam para enfrentar um sistema no qual se percebem excluídos.

Teatro-Educação X Teatro-Pedagógico

Apesar do termo teatro-pedagógico ser usado em sentido amplo quando se trata de teatro escolar, parece importante ressaltar a existência de no mínimo duas possibilidades de se trabalhar com o teatro dentro da escola, que devem ser diferenciadas. São elas, o teatro como ferramenta pedagógica na sala de aula, com o objetivo de fixar conhecimentos, e o teatro-educação com fins socioculturais e artísticos, geralmente oferecido como atividade extracurricular.

Acerca dessas duas possibilidades, Alexandre Santiago da Costa comenta que:

O teatro-educação também caminha em outra direção em relação ao teatro-pedagógico, que consiste numa forma de instrumento ou ferramenta pedagógica na educação. Mas o teatro-educação vai além dessa abordagem contextualista ou instrumental que difere da perspectiva essencialista ou estética que defende a presença do teatro em situações de aprendizagens seja na escola ou em outros espaços educacionais. (SANTIAGO, 2004, p.6)

Em que se pese o teor artístico, é inquestionável que o teatro pedagógico, atue como uma ferramenta de grande importância para a educação formal, já que visa a auxiliar na absorção de conhecimento, abordando conteúdos específicos de disciplinas como História, Geografia, Matemática etc. Além disso, o teatro-pedagógico pode, ao mesmo  tempo, trazer para sala de aula uma alta dose de criatividade entre os alunos, pois “alia formas dramáticas ao âmbito educacional” (VIDOR, 2010, p.27).Encenar a história do descobrimento do Brasil, ou a perseguição a Galileu Galilei são alguns exemplos.

Contudo, embora não seja o foco principal do teatro-pedagógico, ele não se abstém de trabalhar a formação humana dos alunos, pois como dito anteriormente, o teatro, ao trabalhar com as sete inteligências, fomenta diversas habilidades, como bem comenta Vidor, ao tratar do teatro na escola inglesa:

Inicialmente, o teatro e o drama na escola inglesa estavam tradicionalmente relacionados ao estudo da literatura, com a exploração das habilidades da linguagem para garantir o melhor entendimento e comunicação daquilo que estava sendo enunciado. O teatro na escola era baseado na dramatização da literatura trabalhada, contendo exemplo dos métodos que podiam ser chamados de “representativos”: o texto da peça era importante e, consequentemente, o estilo da interpretação, que incluía habilidades ao falar, a graça dos movimentos e a compreensão da mensagem. (VIDOR, 2010, p.27).

Assim, pode-se compreender que o teatro-pedagógico, ainda que trabalhe o estético, tem como objetivo principal o estudo do texto, diferentemente do teatro-educação, que revela maior compromisso com o desenvolvimento das habilidades inter e intrapessoais, muito apoiado nos estudos psicológicos iniciados nos anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra.

Depois da segunda guerra mundial, o progressivo desenvolvimento do “drama na educação” encontrou ressonância no interesse pela psicologia da criança presente no século XX, que buscava uma metodologia de ensino apropriada para natureza da mesma. Na Inglaterra, Peter Slade foi, por um longo tempo, uma forte referência no teatro educação com a proposta do Child Drama. [...] Enfatizava a “espontaneidade”, “criatividade”, “individualidade”, “imaginação” (VIDOR, 2010, p. 42).

Peter Slade, pesquisador inglês que viveu o período entre guerras, desenvolveu pesquisas inéditas no campo do teatro com crianças e com portadores de necessidades especiais.

Em O Jogo Dramático Infantil, Slade apresenta diversas propostas de atividades, denominadas por ele como “jogos dramáticos infantis”.

Muito fundamentado na psicologia da primeira metade do séc. XX, em determinados aspectos ainda atual, o pesquisador propunha o teatro como um meio de autoconhecimento e liberação de repressões inconscientes. Os jogos dramáticos são, segundo o autor, meio ótimo para liberação da agressividade, atuando como uma catarse (katarsis).

Os jogos teatrais são procedimentos lúdicos com regras explícitas. [...] No jogo dramático entre sujeitos (faz-de-conta) todos são “fazedores” da situação imaginária, todos são atores. Nos jogos teatrais o grupo de sujeitos que joga pode-se dividir em”times” que se alternam nas funções de “atores” e “público”. [...] Na ontogênese o jogo dramático (faz-de-conta) antecede o jogo teatral.” (JAPIASSU, 1998, p.3).

Ainda sobre essa capacidade dos jogos teatrais, no que concerne à potencialização de autoconhecimento, a dramaturga e diretora brasileira, Maria Clara Machado (1972), observa que a criança tem mais possibilidades de encontrar consigo mesma fazendo uma cena improvisada do que conversando com uma psicóloga.

Teatro-Educação na Formação Humana

O mergulho em si mesmo propiciado pelo teatro potencializa as descobertas pessoais de uma forma indireta. No teatro, é por meio do não-ser que se descobre o ser. No fazer teatral, a tolerância se amplia na medida em que o “eu” se coloca no lugar do outro, que sinta suas dores, as alegrias, os sentimentos. No jogo da encenação dentro da escola, é possível trabalhar conflitos específicos. Em uma cena, o aluno pode se colocar no lugar do professor ou no lugar de um colega discriminado pela sala. Um jovem preconceituoso pode fazer o papel de um personagem que sofre com o preconceito de seus amigos da escola e, por meio dessa “troca de papéis”, o jogo cênico, que promove a reflexão das ações de modo a sensibilizar seus agentes, atua também como um meio bastante produtivo para a resolução de conflitos causados pela intolerância no contexto escolar.

Segundo Cavassin, os princípios pedagógicos do Teatro estabelecem relações claras com a educação, na medida em que:

[...] o teatro como conhecimento que é busca respostas para os questionamentos sobre o que é o mundo, o homem, a relação do homem com o mundo e com outros homens nas teorias contemporâneas do conhecimento que propõem novos paradigmas para a ciência como a complexidade do pensador Edgard Morin[...] (CAVASSIN, 2008, p.42).

Desta forma, não é difícil que por meio dos jogos dramáticos, ou de pequenas cenas improvisadas, o aluno encontre uma oportunidade de liberação da agressividade e da potencialidade da criação, “transportando” sua bagagem emocional para aquele o momento em que coloca, ainda que sem consciência, em cada palavra e ação, traços de sua própria história e personalidade.

Sobre esse processo, Maria Clara Machado conta a experiência de uma monitora com crianças de 10 e 12 anos, durante um pequeno esquete sobre a história dos índios:

À disposição delas há um malão com roupas velhas e material de cenas: tambores, chapéus, espingardas, panelas, etc..etc... 15 minutos depois começa a representação. Eles geralmente fazem questão de dizer que estão fazendo teatro. O palco lhes atrai muito. São artistas e querem ser como os grandes da televisão. O fato de saberem que estão representando as deixa ainda mais livres para expressarem como estão sentindo. Isto, aparentemente, a distancia de seus próprios problemas deixando a imaginação trabalhar, e o inconsciente agir. [...] um dos grupos, porém, resolveu representar uma tribo de antropófagos que se deliciavam com um delicioso banquete em que comiam seus pais! [...] [A monitora] observou para si mesma que era melhor que as crianças jogassem numa história de faz-de-conta a agressividade contida e natural do que se tornassem adolescentes recalcados, impossibilitados de extravasarem seus sentimentos escondido. É claro que nenhuma daquelas crianças queria seus pais mortos ou maltratados, apenas o jogo dramático foi uma maneira simbólica de liberar a agressividade natural, mas proibida em relação aos pais. (MACHADO, 1972,p.3)

A dramatização, ao atribuir sentimentos pessoais inconfessáveis a personagens, promove a liberação da culpa e isso, de alguma forma, contribui para o desenvolvimento emocional e, consequentemente, para o aprimoramento da relação vital do indivíduo com o mundo contingente.

 Por meio da liberação da criatividade promovida pelos jogos e dramatizações, o teatro colabora para a humanização do indivíduo, fazendo com que sua sensibilidade se aflore, promovendo a reflexão sobre os sentimentos e ações vividas pelos alunos-atores na “pele” de um personagem, e , por fim, propiciando, de alguma forma, o “resgate do ser humano diante do processo social conturbado que se atravessa na contemporaneidade” (KOUDELA, 2005, p.147).

A criança, inserida nesse tipo de educação significativa, cria um senso de cidadania e um visão amplificada do mundo.  E é exatamente essa educação que se preocupa com a “[...] formação do sentimento de cidadania a partir do nascimento e que se organiza para oferecer os meios pelos quais pode tomar posse da cultura que pulsa ao seu redor” (SOUZA, 2008, p.22) é que traz condições de criar adultos com consciência crítica das relações em geral, tal como afirma Souza, no seguinte excerto:

O interesse da prática teatral na educação infantil é recuperar, junto com a criança pequena, por ela e para ela, o sentimento ancestral de magia e encantamento que a arte apresentou na constituição da noção da humanidade, para que, ao adquirir o olhar estético, a criança possa vivenciar o mundo que a rodeia com um profundo sentimento renovador e crítico que, a qualquer época, é imprescindível para a evolução do que conhecemos hoje como uma sociedade humana. A prática de teatro na educação infantil prepara a criança para compreender o mundo, unindo-a ao primitivo. O teatro pode ser a ponte (SOUZA, 2008, p.16).

O Teatro-Educação no Brasil Atual

Um dos grandes desafios da atual educação hoje é unir a prática à teoria artística, ou seja, trabalhar a livre-expressão e a espontaneidade, juntamente com embasamentos teóricos e estudos sobre a arte.

O teatro-educação, na atualidade, busca unir a apreciação estética à criação de modo da desenvolver as habilidades do grupo que encena e a interação entre esse grupo, a escola e a comunidade, na medida em que toda peça teatral tem uma plateia como seu terceiro elemento.

Não obstante a eficácia e a contribuição que o teatro promova na e para a educação, as artes cênicas ainda não têm um cenário sólido na educação brasileira. Apesar de seu espaço atual se apresentar melhor do que o de décadas passadas, a realidade é que essa prática não faz parte da grade curricular das escolas de ensino básico, de maneira geral.

A ausência do ensino de artes cênicas nas escolas se dá em consequência de vários fatores. O primeiro a se considerar é a falta de conhecimento, dos gestores e coordenadores, do valor desse tipo de aprendizado artístico, o que o faz ser preterido por aulas de artes plásticas, música, história da arte ou mesmo de artesanato.

O segundo se dá em função da falta de profissionais que acabam se direcionando para outras áreas, que não a licenciatura, em consequência da “[...] desvalorização da área em relação às demais disciplinas do currículo, [...]baixa remuneração,  falta de tempo para a preparação do professor ocasionando em uma precária formação [...]” (CAVASIN,2008, p.43)

Na área artística, a falta de profissionais e/ou a formação às vezes insuficiente, gerada por licenciaturas de qualidade duvidosa, é uma das grandes dificuldades, se não a maior, para a evolução da área. A questão sobre a formação do professor da área artística é histórica:

O ensino da arte só apareceu em plena ditadura militar a partir da lei 5692/71 como obrigatoriedade da educação, então denominada Educação Artística (a LDB de 1961 instituía o ensino de artes, porém não de forma obrigatória). A lei, contraditoriamente, exigiu professores com habilitações específicas obtida em curso de graduação de licenciatura plena, mas ignorou a inexistência de cursos universitários para a formação dos mesmos. (CAVASSIN, 2008, p.45)

Além da carência e falta de cursos, As próprias faculdades de Educação Artística “criadas especialmente para cobrir o mercado aberto pela lei, não estavam instrumentalizadas para a formação mais sólida do professor, oferecendo cursos [...] sem bases conceituais” (MEC/SEF,1997, p. 24).

Sem uma consciência clara de sua função e sem uma fundamentação consistente de arte como área de conhecimento com conteúdos específicos, os professores não conseguem formular um quadro de referências conceituais e metodológicas para alicerçar sua ação pedagógica; não há material adequado para as aulas práticas, nem material didático de qualidade para dar suporte às aulas teóricas (MEC/SEF,1997, p. 27).

A dificuldade da escola em selecionar profissionais de artes em geral e especificamente de artes cênicas ocorre como consequência desse histórico de uma lei que foi instituída sem investimento prévio em formação de professores. Assim, as escolas atribuem aulas de artes a pedagogos ou professores especialistas de outras áreas que obviamente “[...] não estavam habilitados e, menos ainda, preparados para o domínio de várias linguagens, que deveriam ser incluídas no conjunto das atividades artísticas” (MEC/SEF, 1997, p. 24).

Desta forma, não é difícil encontrar professores “de artes” extremamente teóricos e “professores de teatro” que restringem o trabalho a leitura e encenação do texto, desconsiderando “que o percurso criador do aluno, contemplando os aspectos expressivos e construtivos, é o foco central da orientação e planejamento da escola.” (MEC/SEF, 1997, p.35).

Heloise Baurich Vidor centraliza o papel do professor de teatro em dois focos; o professor no papel e o professor personagem. Dessa maneira, na qual o professor assume papéis, segundo a autora, é possível promover uma aproximação maior entre os alunos, que também se sentem mais à vontade para participar. A consequência disso é que o aluno vem para mais perto de si, da escola e do conhecimento.

Ainda sobre a atuação do professor de artes nas escolas, Jorge Larrosa (2003, pp. 51-52) afirma que “professor é alguém que conduz alguém a si mesmo [...] alguém que sem exigir imitação e sem intimidar, mas suave e lentamente, nos conduziu até nossa própria maneira de ser”.

Assim, seria praticamente impossível ser professor de artes e mais especificamente de teatro com a formação teórica do currículo de Educação Artística oferecido por diversas faculdades do país.

Em que se pese o problema da ausência de professores qualificados de artes, há que se mencionar que, embora os PCN-Artes (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1999) se refiram a quatro tipos de artes para a formação educacional (teatro, artes visuais, dança e música), as Leis de Diretrizes e Bases (LDB 9.394/96) dão à escola o direito de inserir apenas uma dela no currículo escolar.

Dessas quatro, a partir de 2011, a música foi incluída como obrigatória, e dentre as outras três, as Artes Visuais, quase que por unanimidade, é a disciplina escolhida. (CAVASSIN, 2008).

Conclusão

Embora o teatro na educação seja ainda pouco explorado pelas escolas no Brasil, ele é, sem dúvida, uma atividade pedagógica que promove não só a inclusão, mas também a socialização dos alunos no ambiente escolar, de forma produtiva. Amplia o universo cultural e o desenvolvimento das diversas habilidades como a interpretação e produção de texto, a leitura oral, a criatividade, as inteligências musical, intra e interpessoal e a cinestésica.

O teatro na escola tem também a potencialidade de motivar toda a comunidade, aproximando professores, funcionários, gestores e pais, já que em algum momento a colaboração deles será solicitada, seja para ajudarem a montar algo, emprestar o som, fazer a luz, ficar na bilheteria, ou simplesmente para assistirem às apresentações.

Desta forma, pode-se afirmar que:

o teatro além de promover a ampliação cultural e aperfeiçoamento pessoal, estimula a troca de experiências,  a busca de soluções para situações-problema, a ampliação da tolerância no relacionamento e o espírito colaborativo, fundamentais em uma comunidade escolar.

Trabalhando com as crianças de idades e séries diferenciadas, em um mesmo grupo, foi possível perceber, na prática, o efeito do teatro na escola. O desenvolvimento das sete habilidades apresentadas e defendidas por Gardner tornou-se visível a cada exercício realizado, fosse ele de corpo, de voz, de noção espacial, de criação coletiva de cenas, de respiração, sensibilidade auditiva, de “contar os tacos”, e principalmente nos exercícios de toque em que aquisição da confiança no outro foi sendo conquistada a cada encontro. (COELHO, 2011, p.4)

Espera-se que outras contribuições acerca do teatro-educação se tornem amplamente divulgadas e, em consequência disso, as artes cênicas sejam definitivamente incluídas no elenco das disciplinas que compõem o currículo escolar nacional, podendo contribuir para um eficiente sistema educacional, tão necessário em o nosso país.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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KOUDELA, Ingrid. Abordagens metodológicas do teatro na educação. Revista Científica, São Luís, V.3, n.2, dezembro 2005.

MACHADO, Maria Clara. Cadernos de Teatro, 52, 1, 6-10. Rio de Janeiro: 1972.
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REVERBEL, Olga. O Teatro na Sala de Aula. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979.
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VIDOR, Heloise. Drama e teatralidade: o ensino do teatro na escola. Porto Alegre: Mediação, 2010.

 

Recebido em: 18/09/2014

Aceito em: 10/04/2014

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