LIPIS

SEGREGAÇÃO CONSTITUTIVA DO OUTRO EM TEMPOS DE TOTALITARISMO

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BETTY BERNARDO FUKS é Psicanalista. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ).  Editora da revista Trivium, estudos interdisciplinares. Pesquisadora Associada do LIPIS. betty.fuks@gmail.com

AUTOR 2 é (inserir mini curriculum aqui).

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Resumo: O objetivo desse artigo é demonstrar que Freud, levando em conta a insistência do homem em guerrear e se destruir, identificou de que modo a política de sua época instalou o regime totalitário que inundou o século XX de sangue e dor a civilização.
Palavras-chave: Cultura, violência, narcisismo, alteridade.

CONSTITUTIVE SEGREGATION OF THE OTHER IN TIMES OF TOTALITARIANISM

Abstract: The purpose of this article is to demonstrate that Freud, taking into account man's insistence on war and destruction, identified how the policy of his time installed the totalitarian regime that flooded civilization of the XX century of blood and pain.
Keywords: Culture, violence, narcissism, alterity.

INTRODUÇÃO

Segregação constitutiva do outro em tempos de totalitarismo Betty Bernardo Fuks

No decorrer da Primeira Guerra mundial Freud, profundamente desiludido com os tristes caminhos da civilização moderna, escreve um texto, "Reflexões para os tempos de guerra e de morte" (1915), onde se pergunta o porquê da insistência do homem em matar e fomentar a  guerra de forma tão bárbara e primitiva, uma vez que a humanidade tinha sido capaz de desenvolver grandes avanços técnicos e científicos, altas criações artísticas e culturais. Apesar de todo o progresso trazer esperança na possibilidade de paz duradoura, aquela guerra descortinava uma pesarosa verdade: no homem, o desejo de matar e de se apropriar do outro é imune às suas próprias conquistas técnicas e intelectuais. Tão implacável quanto a mais antiga e remota batalha, o conflito do início do século XX, anunciava o retorno da barbárie no centro do Ocidente, então iluminado pelas luzes da Razão Freud então introduz a figura da morte na tentativa de responder muitas das dramáticas questões que a guerra, entre as nações mais civilizadas do mundo, colocava à psicanálise.  Nossa atitude para com a morte - o convencimento inconsciente de nossa própria imortalidade, o sentimento de ambivalência em relação aqueles que são próximos e o horror ao estrangeiro que habita o fundo do homem - tanto do primitivo quanto do civilizado - dá corpo ao desenvolvimento do estado de guerra entre os homens.  De fato, constata Freud (1933), se aquilo que as crianças aprendem, ainda na escola, sob o nome de "história mundial" é, essencialmente, uma longa sucessão de assassinatos, a guerra é uma espécie de condição originária das formações sociais.

Alguns anos mais tarde, quando da redação de Mal estar na Cultura (1930),o pai da psicanálise encaminha a discussão para o âmbito de sua segunda teoria das pulsões: Eros, a pulsão de vida encontra seu antagonista, Tanatos, a pulsão de destruição. Ao afirmar a existência de uma agressividade não erotizada, de uma inclinação absolutamente destruidora e inóspita nos homens, Freud toma de empréstimo a máxima de Plauto, "O homem é o lobo do homem" para reiterar a ideia de que o mal e a destruição não são apenas momentos efêmeros da História, fadados à superação no futuro, mas aquilo que irá se repetir, incessantemente, ao longo da História. É na vertente desse texto que, por exemplo, J. Derrida, se pergunta sobre o que nos coloca ainda hoje, apesar de todo o progresso técnico e democrático, sob o império de uma pulsão de destruição. Impulsionado por esta força o homem criaria, cada vez mais, formas refinadas de destruição do vivo.

Haveria um antídoto contra esse pior mesmo quando se admite a impossibilidade de uma harmonia e felicidade definitivas entre os homens? A resposta de Freud(1933) é lapidar.  Em carta a Romain Rolland diz que o homem deve aprender a distrair as pulsões do ato de destruir a nossa espécie e, na carta a Einstein, afirma que contra a compulsão de assassinar, humilhar, destruir e infringir dores ao outro o melhor remédio é o de manter a chama do desejo de construir a vida, permanente e infinitamente acesa. Não se está longe do pensamento de Lévinas(1988) quando em seu comentário sobre o mandamento bíblico, "Não matarás", recomenda lê-lo pelo avesso, sob o signo do desejo: "farás tudo para que o outro viva".  Esta proximidade entre os dois pensadores permite indicar que a psicanálise deve manter-se na cultura como uma disciplina que convoca, para dizê-lo em termos levinasianos, a responsabilidade pelo outro em seu duplo sentido: responsabilidade pelo outro semelhante/diferente e pelo outro do desejo. Na media em que o desejo é tão-somente o que Lacan chamou de metonímia de toda a significação, ao analista cabe guardar a possibilidade de um dizer Outro, capaz de fazer explodir os limites de qualquer pensamento totalizante.

Voltemos ao Mal Estar. Apoiado em suas teses de Psicologia das Massas e análise do Eu (1921), e levando em conta a insistência do homem em guerrear e destruir, Freud não encontra dificuldade em qualificar de estratégica o modo como a noção de estrangeiro serve de esteio à coesão e ao fortalecimento da identidade da massa - um grupo altamente organizado, permanente e artificial (certa força externa é empregada para impedir que os membros se desagreguem). Aqui, o amor une um considerável número de pessoas sob o signo de uma determinada identidade, desde que outras - os estrangeiros - recebam manifestações de ódio. Na tese de 1921 existe um elemento fundamental para orquestrar este quadro: o líder, aquele que consolida e fortalece as bases da massa, em nome do amor entre os idênticos e sob a bandeira da exclusão do outro que deverá permanecer "de fora" do todo. Portanto, a arquitetura da massa é composta de dois eixos fundamentais, a do líder (o cabeça do grupo) e a dos indivíduos unidos pelo laço do amor (os membros do corpo político), que conjuntamente vão se opor ao que deve permanecer alijado, estrangeiro (Plon, 2001).

A esse fenômeno de amor entre si e ódio ao outro, Freud chamou de narcisismo das pequenas diferenças. Neste contexto, o termo narcisismo nomeia a insuflação amorosa dirigida ao líder que ocupa o lugar de ideal do eu dos membros da massa. É pelo viés dessa tese que pode-se melhor compreender de que modo a psicanálise inviabiliza qualquer diferença entre psicologia individual e coletiva. Todo o sistema organizado em torno de um poder que se materializa sob o vazio fundante da cultura, obedece ao mesmo regime do eu:  procura fazer  unidades fechadas em si mesmos pela eliminação radical do outro.

O narcisismo do sujeito, segundo o qual a imagem do próprio corpo se sustenta da imagem que é, ao mesmo tempo, ele mesmo e outro distinto de si; no plano do coletivo fica como base do narcisismo das pequenas diferenças. Enquanto o narcisismo instaura um "eu" distinto de um "outro", o narcisismo das pequenas diferenças instala o "nós" diferente dos "outros". Dito de outro modo, o narcisismo das pequenas diferenças apóia-se sob a lógica da segregação, a mesma que sustenta o narcisismo propriamente dito, para fortalecer a identificação especular no interior dos grupos e distinguir aquilo que não é espelho, o não-idêntico que atrai e repele. Por isso, a intolerância aparece mais intensamente contra as pequenas diferenças do outro do que dirigidas às diferenças fundamentais. Não se trata de uma diferença qualquer, mas aquela capaz de provocar o afeto de angústia. Diferença ex-tima(1): horror ao mais íntimo que tomado pelo eu como um objeto externo constitui um objeto de ódio na segregação: o estrangeiro.

No contexto dessa interpretação, o discurso de Hitler é exemplar, pois permite perceber, com clareza, onde se ancorava o horror do Füher aquilo que guardava de mais íntimo e que, ao mesmo tempo, lhe era mais estranho. Certa vez ele confidenciou a Herman Rauching “O judeu habita em nós; porém, é mais fácil combatê-lo sob sua forma corporal do que sob a forma de um demônio invisível” (Zaloszcyc, 1993). Esse fantasma violento e homicida é um exemplo preciso de como, em última instância o ódio ao judeu - assim como qualquer outra manifestação racista - situa-se, de maneira inequívoca, na dimensão agressiva do sujeito, quando face a face com a inquietante estranheza do outro - aquilo que lhe é a um só tempo o mais intimo e o mais exterior (Heimlich/unheimlich).

Quando lemos Hannah Arendt, em As origens do totalitarismo: antissemitismo, instrumento de poder, que o nazismo se apoiou em dois instrumentos de poder - a mentira e o conceito de inimigo objetivo, o grupo que a critério da liderança totalitária é eliminado pelo fato de discordar da verdade oficial -, temos a dimensão exata do quanto Freud antecipou-se  aos estudos pós-holocausto com sua concepção de  “narcisismo das pequenas diferenças”. Numa brevíssima análise sobre a política alemã que mais tarde iria detonar a Segunda Guerra, ele mostra que a lógica da segregação constitutiva do outro é a espinha dorsal de qualquer projeto que vise formar uma unidade compacta. Dando um passo arrojado na compreensão daquilo que estava em jogo às vésperas da Segunda Guerra, Freud (1930) considera "não ter sido por mero acaso que o sonho de domínio universal germânico tenha precisado criar o antissemitismo como seu complemento" (p. 111). O antissemitismo fez assimilar estrangeiro a hostil, de modo a fortalecer os laços libidinais entre os indivíduos e destes com o líder. O corpo político alemão se fez, então, às custas de um inimigo, a quem era atribuído toda a sorte de mentiras sustentadas pelo imaginário social e pela compulsão à  repetição violenta e opressiva  de  impor, pela coerção, critérios ideais à maioria germânica e esgotar a alteridade do outro.

Ao legitimar a violência do grupo em direção aos não-arianos, o excesso de hostilidade entre os que compartilhavam da mesma identidade ficou fortemente contido. Ou seja, a compulsão de destruir o outro pelo coletivo, serve de garantia a superação da angústia nos sujeitos, na medida em que este afeto surge diante da coisa que é tida como a mais estrangeira, mas que pode tornar-se familiar. Do ponto de vista metapsicológico, a repressão interna ao grupo que é uma resposta à angustia, tem como efeito imediato a formação de um grave sintoma: a compulsão à destruição daquilo que causa horror, o estrangeiro, pelo coletivo. Fortalecendo as estruturas do projeto totalitário pela expulsão do outro, fica garantido um mundo ideal de espelhos que reflete apenas uma única verdade. A questão que se apresenta para Freud (1930) é de tal ordem que ele se pergunta inquieto, ainda em Mal-estar, sobre o que fariam os soviéticos para sustentar o regime comunista, depois de eliminar os burgueses. A ideia de eliminação do outro mostra que a legitimação da liquidação do corpo estrangeiro é a matéria básica necessária à sobrevivência das ideologias totalitárias - e aqui a história não faz outra coisa senão confirmar a preocupação de Freud.

A partir dos anos vinte, quando a perseguição aos judeus tornou-se violenta na República austríaca, a história do antissemitismo, como a história do ódio aos judeus, passou a assombrar Freud.  Nessa ocasião confessou a Marie Bonaporte estar descrente em relação ao futuro dos judeus, pois percebia que o fracasso das ideias iluministas na Europa era um sinal de que a humanidade retornava ao obscurantismo religioso medieval, na medida em que a organização dos partidos antissemitas tinha como meta, obliterar o lugar da alteridade na cultura com seus dogmas. Leitor do inconsciente, Freud entende que a instrumentação do ódio ao outro pelo poder era o que as perseguições da Idade Média e o antissemitismo moderno tinham em comum. Enquanto Arendt, por exemplo, faz uma diferença entre o antissemitismo tradicional e o moderno a partir da ideia de que este resultou das transformações sociais ocorridas na Europa a partir do fim do século XVII, Freud se volta ao mal-estar de que padecia sua época como algo que constituí o fundo do homem.

A percepção da existência de um elo em comum entre estes dois momentos distintos da História levou Freud a endereçar a seu amigo Arnoldo Zweig a seguinte questão: porque os judeus, ao longo dos séculos, atraíram para si um ódio inextinguível? Pergunta que se tornou um dos motores da escrita de "O homem Moisés e o monoteísmo".  Neste texto Freud (1937), um pensador radical da cultura, ultrapassa a questão do Judeu, propriamente dita, para compreender o ódio ao outro por pequenas disputas através do paradigma do judeu, o ancestral unheimlich das massas. A história do povo judeu serve a Freud como um exemplo conclusivo dos destinos que tomam o horror ao estrangeiro, que sabe, desde o Projeto, habitar no fundo do homem.

Em “Moisés, Freud fica diante da relação irredutível do judeu com a experiência de estrangeireidade e lhe designa um estatuto: estrangeiro para si mesmo e estrangeiro para o outro. Sua insistência em destituir um povo do homem que ele celebra como o maior de seus filhos mostra que aquilo que interessa à psicanálise na leitura de uma formação social, está para além do conceito de raça, do nominalismo e da identidade. Assim, através da análise das diferenças irredutíveis que o povo judeu carrega e do efeito destas sobre o outro, Freud irá dizer alguma coisa sobre o universal da exclusão. Tendo como cenário, embora não tenha deixado explícito, a cena política de seu tempo, o nazismo, Freud  lança algumas luzes sobre o fenômeno que traz a marca da denegação da castração, ou o amor ao todo: o totalitarismo.

A tradição bíblica da circuncisão, é a primeira das diferenças irredutíveis do judaísmo que Freudconsidera como catalisadora do ódio.  Desde o século XVIII, a imagem do pênis circunciso, considerado como alterado, danificado ou incompleto esteve no centro da definição de judeu. A maioria das fantasias que mais tarde tornaram-se esteio do antissemitismo giravam em torno da idéia de que a circuncisão era um processo de feminização do varão judeu, que deixava seu órgão sexual degenerado e altamente comprometido com as doenças sexualmente transmissíveis. O discurso médico e social na cultura austríaca fim-de-século, falava do corpo do judeu em termos absolutamente depreciativos e paranóicos, plasmado na imagem que o Santo Ofício havia atribuído ao judeu de portadora da peste, suja e degradante. A crença obsessiva na degeneração do homem judeu, por conta da circuncisão, era correlata à sua feminização, ambas definiam o que a imagem viril do ariano não era.

O pânico da feminização da cultura na Europa desde o final do século passado correspondia o horror de sua judeização. Tais fantasmas serviram de esteio ao discurso antissemita, para instalar a base do laço social nazista que, por sua vez, consolidou uma comunidade masculina violenta e paranóica. Em Mein Kampf, Hitler enfatizava que a emancipação feminina é uma invenção dos judeus com seus desejos encarnados abjetos, e escreveu dizia que “pelas forças da democracia sexual, o judeu nos rouba nossas mulheres.” (Buci-Glucksmann, 1984, p. 56). O horror à feminização tornou-se a retórica de seu programa político: “A mulher introduziu o pecado no mundo..., [ela] é a principal causa da poluição do sangue nórdico.” (Le Rider, 1992, p. 292).

De acordo com os estudos sobre a cultura vienense é na escrita de Otto Weininger que feminilidade e judeidade aparecem em estreita relação, fazendo precisamente da mulher e do judeu o espírito mesmo da modernidade.  Weininger (apudBuci-Glucksmann, 1984) dizia que em todos os seus aspectos, o espírito da modernidade não era somente o mais judeu, mas também o mais feminino de todos os tempos onde celebrava-se a sexualidade como o valor supremo.  Esse elo indissolúvel entre feminilidade e judaísmo tornou-se bastante conhecido entre os intelectuais da Mittleuropa. O próprio Freud, ao redigir um de seus casos clínicos, lembrando  as ideias de Weininger afirma que o  complexo de castração é a raiz mais profunda do antissemitismo, pois, já no quarto das crianças, o menino ouve dizer que cortaram algo no pênis dos judeus e isso lhe daria  o direito de desprezá-lo.

Freud insiste em demonstrar que a vivência sinistra diante da circuncisão é homóloga à impressão inquietante causada pelo sexo da mulher. Ambas provocam um horror determinado: o horror à castração. E quando em psicanálise fala-se de horror à castração, está-se falando sobre a angústia que a diferença causa. É esta angústia, a raiz comum entre o antifeminismo e o antissemitismo, movimentos baseados na primazia do Mesmo, do idêntico. Pois, tanto a feminilidade quanto a judeidade colocam em jogo o estatuto da diferença, na medida em que são figuras de alteridade. Porque lembra a ausência ou a privação e desperta estranheza, a circuncisão se constitui num sinal da falência do ideal de uma virilidade sem perdas o que é incompatível com qualquer projeto totatiltário.

Um outro traço da religião de Moisés considerado como  provocador do ódio milenar ao judeu é a convicção do povo em se dizer primogênito e eleito de Deus. O alvo de Freud, quando se debruça sobre essa ideia, é o de demonstrar que ela possui tal potência que é compartilhada, embora pela via da inveja e do ciúme doentios, até mesmo com os não-judeus. Estes, no fundo, acreditam na possibilidade de haver uma verdade [material] na reivindicação de eleição que os judeus fazem para si (Freud, 1937). No discurso de Hitler, a confirmação da percepção freudiana: “Não pode haver dois povos eleitos”, pronuncia o Füher, “somos nós o povo de Deus” (Goux, 1982; p. 54).  Essas poucas palavras desnudam, do ponto de vista psicanalítico, a rivalidade imaginária que tomou corpo no nazismo desde o seu início até a Solução Final (o extermínio).

Pode-se pensar que, em certo sentido, o extermínio resultou dessa rivalidade odiosa que se depreende da fala de Hitler. Sua fantasia deixa transparecer a crença de que ser o favorito de Deus garante a existência de uma raça melhor e mais pura do que todas as outras. O que interessa destacar aqui é que o Füher, para fortalecer as bases de seu projeto político faz do outro (seu duplo) um rival a ser eliminado. E vale lembrar que a teoria das raças tornou-se um dos elementos constitutivos do Estado que deu origem à categoria sociopolítica de estrangeiro, quando o termo passou a designar aquele que pertencia à outra nação (Foucault, 1990).

Finalmente, entre as diferenças que fazem do judeu o estrangeiro do outro, Freud considera primordial, a partir da aplicação do mito que construiu em Totem e tabu sobre a origem da cultura - mito de um tempo para o qual Deus está morto, segundo a expressão de Lacan (1968a) -, um traço inscrito na própria estrutura da religião judaica e que a desqualificou sumariamente como religião universal: o não reconhecimento da falta originária do assassinato do Pai. A falta de um ritual que simbolize o evento, a partir do qual teria decorrido o trajeto civilizatório fundado na culpa primordial, e a recusa dos judeus em conferir à religião uma função de produzir ilusões conciliatórias  sobre a vida e a morte, faz do judaísmo uma religião inquietante e pouco tolerável.

Muitos pensadores perscrutaram a estranheza do judaísmo através do segundo mandamento que proíbe de se erguer imagem de Deus e pronunciar seu nome. George Steiner diz que esta estranha invenção assombrou o Ocidente de tal forma que o homem ocidental acabou por alimentar ódios profundos e ressentimentos assassinos contra aqueles que inventaram a presença desta ausência radical (Stener, 1982).Ele também chamou a atenção para o fato de que é impossível fazer uma teoria da cultura contemporânea, sem levar em conta o holocausto e suas peculiaridades. Entre elas, destaca a indiferença de nove décimos da população europeia, assim como a decisão calculada do governo nacional socialista de liquidar os judeus ao invés de explorá-los economicamente.

A iconoclastia hebraica, a luta dos hebreus e dos Profetas em favor desse Mandamento introduziu na história das religiões a transcendência absoluta de Deus produzida como inintegrável, conforme Lévinas(1988) procurou demonstrar ao longo de sua obra onde faz entender a distinção necessária entre a sacralidade e a santidade na palavra hebraica sem medida que é o Nome de Deus(2). O Deus dos judeus é Kadosh, palavra hebraica que designa que ele é ao mesmo tempo santo e separado: Alteridade radicalmente separada e dessacralizada, isto é, sem conteúdo, sem objeto e sem forma aderida, transcendente até à Ausência. O Deus rigorosamente impensável e inassimilável, transparente como o ar do deserto dos judeus, nada tem a ver com outras formas de expressão religiosa do homem, do totem ao Deus trinário cristão.  A rigor, sua concepção desmistifica qualquer tentativa de apropriação do lugar da Alteridade, o vazio constitutivo da Cultura. Esta recusa à idolatria que marca o judaísmo e que faz, em certo sentido, do judeu um ateu - se o definirmos não como aquele que nega Deus em sua função de Alteridade mas sim aquele que se afirma como alguém que não serve a nenhuma imagem -  se choca frontalmente com qualquer ideologia totalitária na medida em que o totalitarismo se estrutura sob a  ideia de conquista e  domínio global do Outro.

O antissemitismo alcançou o clímax quando Hitler passa a ocupar o lugar de líder da massa e torna-se uma espécie de “divindade". Desde esse lugar, ele assenta seu programa político exigindo de todos fidelidade incondicional a um sistema cujo horizonte dogmático, o da crença fechada sobre si mesma, exige homogeneidade absoluta do Estado, reduz o estrangeiro a uma massa indistinta e  impede a livre circulação do discurso. Em termos freudianos, para um Estado que elevou o preconceito ao estatuto de lei, a história de dispersão do povo judeu marcada pela condição de estrangeiro e sustentada pelo movimento de subversão crítica e anti-idolátrica do segundo mandamento, era um perigo concreto à imposição da unidade nacional.

Constituir o outro como um mero objeto passível de todas as arbitrariedades que tende a confirmar um poder autocrático e identidade monolítica está na origem do antissemitismo. E foi isto também o que garantiu sua ascensão vertiginosa. E se considerarmos a ideologia nazista como paradigma da repulsão ao Outro, compreende-se melhor porque o Nacional-socialismo encontra vazão na ideia de que matando os judeus, eliminavam os porta-vozes da intolerável Ausência que marca o lugar absoluto do Outro.

Mas Freud não conheceu os desdobramentos do fenômeno totalitário alemão que culminou na invenção do Holocausto. O Shoah, se diferencia radicalmente de outras formas de assassinatos que ocorreram na história por duas grandes peculiaridades: a  invenção da máquinas fabricantes de cadáveres e o aproveitamento destes no ciclo produção/consumo, que Lacan ressaltou lembrando a "reciclagem sob forma de sabão (...) imagem da reciclagem econômica do objeto a" (Hassoum, 1998). Conforme ressalta Catarina Koltai, o Holocausto esvazia o caráter singular e inesperado da morte e, não pode ser compreendido sob a ótica de uma operação guerreira: a planificação maciça do extermínio à gás ou em fornos crematório  precisou  de  ajuda tecnológica e da ciência. Com isso toda a máquina estatal alemã da Segunda guerra introduziu, com certeza, modificações no mal-estar na civilização.  Recorrendo a Jacques Lacan para quem o extermínio do povo judeu não pode ser encarado como um acidente único da História, Koltai sustenta que se o genocídio da Segunda Guerra foi inédito, na medida que suas vítimas foram as primeiras da História "cientificamente" selecionadas em campos de extermínio, racional e tecnologicamente organizados. Mas infelizmente trata-se apenas de uma primeira amostra desse processo mórbido que a modernidade inaugurou (Koltai, 2000).

Lacan não parecia ter a menor dúvida quanto à intensificação dos processos de segregação que desembocam no extermínio do outro. Na Proposição de 9 de outubro, circunscrevendo o real em jogo na constituição dos  campos de morte pôde antecipar o que aguardaria o sujeito falante em sua existência: "o que vimos emergir para o nosso horror, representa a reação de precursores com relação ao que irá se desenvolver como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e notadamente a universalização que ela introduz neles" (Lacan, 1968b). Na trilha de Freud, para quem o progresso tecnológico tinha duas faces - uma para melhor e outra destrutiva – e conhecendo de perto a experiência do Holocausto, Lacan chama atenção para o fato de que a ciência pretendendo ignorar a divisão do sujeito e se pondo a serviço do discurso do mestre produz como resposta o racismo e o sacrifício.

Não se pretende neste momento, o que exigiria um espaço muito maior à escrita, mergulhar nos inestimáveis aportes de Lacan à Teoria Freudiana da Cultura.  Sem dúvidas, sua contribuição ao conceito de gozo (Luz ou Genuss) e a invenção do objeto a, são uma das ferramentas mais atuais para abordar o tema proposto no título deste texto. Tratar a questão do extermínio aliado a um tempo histórico que prescreve uma uniformização cada vez maior da vida cotidiana é um caminho ímpar que precisamos trilhar.  Mas cabe antes de terminar, dizer que encontra-se,  nos escritos de Lacan que tratam esta questão, a ideia de que cabe à psicanálise, como experiência de palavra, colocar em xeque o fantasma da unidade, da não-divisão da  política atual.  Em sendo a tarefa do analista a de reorientar aquilo que impulsiona o sujeito a jogar para fora de si o que não pode assimilar, é crucial que ele possa, justamente, reintroduzir a divisão onde o sujeito encontra-se absorvido pelo universal.

A especificidade da situação analítica, levar em conta a subjetividade humana, permite uma escuta à psicologia das massas, já que esta pertence, desde Freud, também ao registro do inconsciente. Lacan procura apoio nesta inovação epistemológica para teorizar sobre as novas formas de enunciação do sujeito contemporâneo e formular o analista como "objeto a", isto é, como aquele que permanecerá estrangeiro às tentativas de massificação e adaptação do homem. Desde este lugar, sua tarefa deve ser embasada numa lógica, cujo efeito é levar à simbolização de algo que permanece estrangeiro ao simbólico. Tarefa árdua. Mas leva o sujeito a buscar um outro Dizer sobre o dito e sobre aquilo  que não cessa de não se inscrever.

NOTAS:

(1) A noção de ex-istência é empregada por Lacan para dar um estatuto singular a noção de existência em psicanálise.  Ela designa o lugar excêntrico em que se situa o sujeito do inconsciente.  Articula o de dentro e o de fora.  Visa dar conta daquilo que é o mais íntimo do sujeito e ao emsmotepo, do que é exterior a ele.

(2) Cf.principalmente, Diós, lamuerte y eltiempo  e Totalidade e infinito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Le Rider, J. (1992) A modernidade vienense e as crises de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

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Stener, George.(1982) No castelo do Barba Azul: algumas notas para a redefinição de cultura, Lisboa, Relógio d'água,  p. 47.

Zaloszcyc, Armand (1993) “Remarques surla ségrégation constitutive du juifdans le nazisme”, La Lettre n. 2, Paris.

 

Recebido: 17/03/2014
Aceito: 02/04/2014

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