DOI: http://dx.doi.org/10.12957/matraga.2017.31594

BIOGRAFIA E FICÇÃO [Biographie et fiction]

Robert Dion
Université du Québec à Montréal

Tradução de Luciano Passos Moraes.


RESUMO

As relações entre biografia e ficção constituem, historicamente, uma espécie de retorno a uma tradição anterior à biografia moderna e positivista, a um estado de indistinção que caracterizava as vidas históricas como vidas ficcionais. A biografia passou, ao longo do tempo, a ser vista em sua dimensão discursiva, para além do quadro estritamente literário, o que se deu por meio de invasões entre gêneros, consideradas como transgressões. Posteriormente, a biografia literária foi sendo reelaborada pela ficcionalização da história de uma vida, privilegiando-se o caráter estético sobre o histórico ou científico, momento em que deixou de ser valorizada como subgênero histórico, centrada nas realizações dos grandes homens, para cumprir outro papel, literalizada. Com tais ideias em mente, o presente artigo tratará da noção de transposição como via de acesso às diversas configurações biográficas contemporâneas segundo diferentes estratégias de uso da ficção. Com base em um corpus biográfico composto por obras de Chistopher Ransmayr, Eric Koch, Victor-Lévy Beaulieu e Pierre Mertens, entre outros, a transposição será analisada em três dimensões: a do vivido, a da obra e a da crítica. O primeiro modo de transposição está ligado à transferência da realidade ao escrito, reconfigurando o passado em outro tempo. O segundo tipo contempla as relações entre o biógrafo e a obra do biografado, quando se enxertam escritas para fazer reverberar a obra na vida. A terceira dimensão da transposição diz respeito à ficcionalização da crítica, ao valor cognitivo das formas contemporâneas do biográfico, processo em que a interpretação e o comentário vêm a revivificar a leitura de uma obra.

PALAVRAS-CHAVE: Biografia. Ficção. Biografia literária. Transposição.


BIOGRAPHY AND FICTION

ABSTRACT

The relations between biography and fiction historically constitute a return to a tradition that is prior to modern and positivist biography, to a state of indistinctness which characterized historical lives as fictional ones. Biography has been seen, throughout times, in its discursive dimension, beyond the strictly literary spectrum, which was observed through mutual genre invasions, considered as a way of transgression. Afterwards, the literary biography was elaborated through the fictionalization of the story of a life, the aesthetical character having privilege over the historical or scientific ones, in a moment when it was less valued as a historical subgenre, centered in the great men’s achievements, aiming at having a new role, then literalized. With these ideas in mind, the present work will explore the notion of transposal as a way to access the various contemporary biographical configurations, according to different strategies through which fiction is used. With a biographical corpus composed by works such as those by Chistopher Ransmayr, Eric Koch, Victor-Lévy Beaulieu and Pierre Mertens, amongst others, the transposal will be analyzed according to three dimensions: the living, the work and the critic. The first way of transposal is related to the transference of reality to writing, thus reconfiguring the past in another time. The second kind of transposal contemplates the relations between the biographer and the biographed subject’s work, in which the original texts may be inserted to make reverberate work into life. The third dimension of transposal is the fictionalization of the critical exercise, related to the cognitive value of contemporary forms of biographic, process in which interpretation and commentary revivify the reading of a work.

KEYWORDS: Biography. Fiction. Literary Biography. Transposal.


Há alguns anos, em uma comunicação apresentada por ocasião de um colóquio sobre as formas ditas heterodoxas da biografia e da autobiografia[1], eu tinha associado essa heterodoxia, no que diz respeito à biografia literária atual – sobre um escritor por um escritor, para retomar REGARD (1999) –, às únicas formas que, sob um ou outro título, recorrem à ficção, não para nivelar as dificuldades inerentes à narrativa da vida, como nas biografias romanceadas, mas, ao contrário, para exacerbá-las, sublinhá-las (DION, 2007, p. 280). Atribuível ao próprio tema do meu propósito de então, essa restrição me parece hoje no mínimo indevida, já que o caráter não ortodoxo de muitas empreitadas biográficas contemporâneas pode ser reportado a diversos outros tipos de amálgamas, de desvios ou de correspondências. Vou me limitar a mencionar, para ilustrar as diversas possibilidades que eu não tinha evocado, a maneira frequentemente particular como a biografia de escritor instaura sua relação com a crítica literária, que ela mimetiza às vezes até em seus excessos (ver a obra completa de Jean-Benoît Puech) ou em seu caráter ridículo, como em Les trois Rimbaud [Os três Rimbaud][2] de Dominique Noguez (1986), por exemplo (Cf. DION e FORTIER, 2010; DION, 2013).

Eu gostaria aqui de retornar à questão das relações da biografia literária com a ficção. É claro que esse assunto transborda diversos aspectos e, em primeiro lugar, do lado do corpus: incontáveis são os subgêneros que, da ficção biográfica à biografia ficcional, passando pelas biografias romanceadas, imaginativas (SCHABERT, 1982) ou simplesmente imaginárias, “programam” certa ligação com a ficção – ligação evidente, reivindicada ou, ao contrário, mais tênue. Além disso, a ficção de que se trata no seio dessas diversas variantes do biográfico contemporâneo recebe definições demasiado contrastadas, tanto da parte dos próprios biógrafos quanto da dos críticos ou analistas. Se às vezes a ficção parece alojar-se na invenção de fatos (Les trois Rimbaud, novamente) ou na modificação do contexto histórico (O último mundo, de Christoph Ransmayr (1991)), ela também se limita frequentemente à interpolação localizada, à invenção de diálogos ou ao mergulho mais ou menos medido e prudente na consciência do biografado, em nome das virtudes cognitivas superiores da intuição. De modo mais radical, a ficção vê-se igualmente assimilada por muitos a toda interpretação da matéria biográfica, quiçá a toda escrita de relatos. Assim, para Carolyn G. Heilbrun, professora emérita da Universidade Columbia e biógrafa da feminista americana Gloria Steinem, “A ‘ficção’ da biografia consiste inteiramente na interpretação colocada na vida” (HEILBRUN, 1993, p. 298). Deve-se salientar que a palavra “ficção” figura aqui entre aspas, precaução que parece atenuar o caráter peremptório de uma afirmação que é, no entanto, seguida por outra, igualmente forte, que estabelece uma equivalência exata entre a biografia “como ‘fato’” (“as ‘fact’”) e a biografia como convenção (HEILBRUN, 1993, p. 300). Quanto à escrita dos relatos, não se para de denunciar as ilusões a que ela induziria dando sentido – significação e trajetória – aos elementos disparatados de uma vida. A exemplo de Dominique Viard, alguns não hesitam tampouco a associar o projeto biográfico a um relato de relatos (VIART, 2007, p. 46), isto é, um relato em segundo grau, muito mediado e longínquo, de um real já refratado ou difratado pelos discursos que constituem o arquivo.

O panficcionalismo que afeta as concepções atualmente dominantes do, ou melhor, dos gêneros biográficos torna sua apreensão particularmente árdua. Em um artigo do Nouvel Observateur intitulado “O fim do romance?”, David Caviglioli e Grégoire Leménager constatam que “recompensando sobretudo relatos biográficos[3], os prêmios literários [de 2011] confirmaram uma tendência massiva: a palavra ‘romance’, então sinônimo de ficção, mudou de definição” (CAVIGLIOLI; LEMÉNAGER, 2011, p. 68). Eles afirmam em seguida que mesmo que a etiqueta continue a vender, “para visar o triunfo, um livro tem todo interesse em ser apresentado como um romance sem verdadeiramente o ser” (CAVIGLIOLI; LEMÉNAGER, 2011, p. 70), a ficção aparecendo a partir de então como um artifício pesado e inútil pelo qual escritores e leitores sentem uma mesma lassidão. A essa extensão do romance para o biográfico, até a indistinção, corresponde um movimento inverso da biografia em direção ao romanesco – apesar de sermos levados à origem das definições modernas dos dois gêneros, em algum lugar do século XVIII, enquanto que o romance em plena ascensão nutria-se do modelo biográfico, organizando-se em torno da evocação da existência de uma personagem (Pamela, Tom Jones, La vie de Marianne [A vida de Marianne] etc.), e que a biografia tomava emprestado do nascente realismo romanesco, além de algumas de suas técnicas, seu gosto pelo real, pelo concreto, pelo particular (a Vida de Samuel Johnson por James Boswell)[4]. Mais do que nunca, hoje, as fronteiras entre vidas ficcionais e vidas históricas, para parafrasear COHN (1997), parecem porosas, de tal modo que pode ser difícil falar simplesmente de “biografia” para designar o corpus em expansão das escritas do escritor real. É por isso que a palavra de BUISINE (1991), que reivindica o “biográfico” no lugar da biografia, prosperou. É também, talvez, o que explica em parte o retorno às designações mais antigas e mais vagas, que admitiam formas mais comprometidas com o mito e com as lendas, portanto mais “fictícias”, em todo caso, menos controladas, designações como “história” e “vidas”. Esse último nome de gênero, que tem longas raízes históricas, nos pareceu, a Frances Fortier e a mim, o melhor para designar o corpus proteiforme que havíamos reunido por necessidade de um estudo sobre os modos atuais da escrita do escritor; o subtítulo de nosso livro Écrire l’écrivain [Escrever o escritor] é Formes contemporaines de la vie d’auteur [Formas contemporâneas da vida de autor].

O amálgama entre biografia e ficção (em todos os sentidos desse último termo) não tem, então, nada de novo. Ele constitui até uma espécie de “retorno” a uma tradição anterior à biografia moderna (digamos: advinda de Boswell) e positivista, a um estado de indistinção que, por muito tempo, caracterizou a escrita das vidas históricas como vidas ficcionais, vidas profanas como vidas sagradas (pelos Evangelhos, hagiografias etc.). Mas é óbvio que o contexto literário – ou até mesmo discursivo, porque a biografia, sabemos, transborda o quadro estritamente literário – modificou-se completamente, e que as invasões de um gênero sobre o outro não são mais sentidas hoje como obviedades, mas antes como transgressões, se não como violações à integridade da biografia. Precursora, a biografia romanceada havia provocado a ira dos literatos e historiadores desde o século XIX. Quanto às formas híbridas de escrita autobiográfica que se desenvolveram nas pegadas de Marcel Schwob, se elas encantam universitários e leitores refinados, não deixam de ferir ao mesmo tempo o senso comum, que quer que o pacto referencial seja rigorosamente respeitado, e as convenções científicas, particularmente as dos historiadores. Com Schwob, opera-se uma mudança maior: a biografia literária é elaborada a partir de então por certa ficcionalização da história de uma vida, primando pelo critério estético (criação, recriação de uma existência) sobre o caráter histórico, ou até mesmo científico. A valorização do particular vale aqui em si e não mais, como em história, como procedimento de verificação do geral (AVEZOU, 2000, p. 18). Lembremos as palavras célebres do prefácio de Schwob às Vidas imaginárias: “A ciência histórica nos deixa na incerteza sobre os indivíduos. Ela só nos revela os pontos pelos quais eles foram anexados às ações gerais. [...] A arte está no oposto das ideias gerais, só descreve o individual, só deseja o único. Ela não classifica, ela desclassifica” (SCHOWB, 2004, p. 53).

Esse golpe schwobiano era evocado, de certo modo, talvez, pelo descrédito em que a biografia tinha caído junto aos historiadores, até mesmo antes da Escola dos Annales: para um François Simiand, por exemplo, que em 1903 atacava o ídolo do “individual” no seio da tribo dos historiadores (DEMARTINI, 2007, p. 78). Já que a biografia não era mais valorizada como subgênero histórico centrado nas realizações dos grandes homens, ela foi aproveitada para se fazer outra coisa, para “literalizá-la”, retirando-a de sua ascendência histórica e distinguindo-a das ciências humanas que nasciam então[5]. Notemos, como parêntese, que o retorno da biografia no arsenal dos métodos da história será longo e repleto de obstáculos. Como observava Giovanni Levi em 1989 nos Annales:

Vivemos hoje uma fase intermediária: mais do que nunca, a biografia se encontra no centro das preocupações dos historiadores, mas ela assume claramente suas ambiguidades. Em alguns casos, recorre-se a ela a fim de sublinhar a irredutibilidade dos indivíduos e de seus comportamentos a sistemas normativos gerais, em nome da experiência vivida; em outros, em contrapartida, ela é percebida como o lugar ideal para experimentar a validade das hipóteses científicas concernentes às práticas e ao funcionamento efetivo das leis e das regras sociais (LEVI, 1989, p. 1.325).

Levi nota em seguida que, “fascinados pela riqueza dos destinos individuais e ao mesmo tempo incapazes de apreender a singularidade irredutível da vida de um indivíduo, os historiadores abordaram recentemente o problema biográfico de modos muito diversos” (LEVI, 1989, p. 1.329), optando ora pela prosopografia, ora por uma biografia em que o contexto afirma fortemente sua presença, preenchendo, quando necessário, as lacunas da informação, ora pelo estudo de casos marginais que vêm iluminar as bordas do campo social; ora, ainda, por uma prática inspirada na antropologia interpretativa ao modo de Clifford Geertz, que sugere que se deve “abordar a matéria biográfica de forma mais problemática, repelindo a interpretação unívoca dos destinos individuais” (LEVI, 1989, p. 1.332-1.333). Cada um desses caminhos comporta sua carga de vantagens e de inconvenientes, e não é o caso de tratar deles aqui; eu me contentarei em assinalar que, para Levi, o interesse do retorno da biografia em história é o

de permitir uma descrição das normas e de seu funcionamento efetivo, este não sendo mais apresentado somente como o resultado de um desacordo entre regras e práticas, mas igualmente como o das incoerências estruturais e inevitáveis entre as próprias normas, incoerências que autorizam a multiplicação e a diversificação das práticas (LEVI, 1989, p. 1.334).

Resumindo, a biografia, em história, seria assimilada ao que movimenta as contextualizações rígidas demais, as concepções sistemáticas demais das questões de dominação; ela revelaria a margem de manobra de que dispõem os agentes individuais no seio de estruturas sociais imperfeitamente agenciadas. François Dosse observa que a biografia, segundo Levi, “conduz a se interrogar sobre o tipo de racionalidade empregada pelos atores da história. Isto pressupõe distanciar-se do esquema da economia neoclássica de maximização do interesse e de postulação de uma racionalidade total dos atores” (DOSSE, 2005, p. 282).

Dito isso, o abandono do gênero biográfico durante quase um século de prática historiadora só obteve resultados negativos. Como salienta Bernard Pudal, em história e nas ciências sociais, o apagamento da biografia, ou seja, de um certo tipo de construção biográfica tradicional, linear e determinista, possibilitou o surgimento de outras construções biográficas mais sofisticadas, aptas a responder a uma crise da “oferta literária de histórias de vida” (na “alta literatura”) (PUDAL, 1994, p. 12-19), apontada, entre outros, por Georges Duby e Danielle Sallenave (1991). Mais ou menos desertada como gênero autônomo legitimado, abandonada por uma literatura (sobretudo francesa) mais preocupada com a “aventura de uma escrita” (Jean Ricardou) do que com a criação de personagens dotados de uma vida coerente, finalmente recuperada com mil precauções pela prática historiadora e sociológica, a biografia teve, assim, a partir da década de 1980, de se redefinir inserida em um novo contexto, entre relatos de vida estritamente controlados pela lógica científica e variações mais ou menos literárias, mais ou menos fictícias, sobre a existência de personagens ilustres ou desconhecidas. Desde então, viam-se reunidas as condições para uma renovação do gênero – cuja amplidão os trabalhos sobre o biográfico não param de reiterar.

Após a breve discussão que acabo de conduzir sobre as duas noções, polissêmicas e fugidias, de biografia e de ficção nos domínios da literatura e da história, a questão de sua relação complexa e sobretudo infinitamente variável segundo as obras permanece inteira (cf. DION, 2007). Esta poderia ser abordada de muitas formas: relações entre ficção e real, apropriação da figura do outro como “ficção”, questões estéticas ou éticas da ficcionalização etc. Recorrerei à noção de transposição, que oferece uma via de acesso cômoda às diversas configurações biográficas contemporâneas dominadas por este ou aquele uso da ficção[6]. Conhecemos o sentido usual desse termo: transpor é, em primeiro lugar, tomar elementos da vida do autor e reinseri-los, modificando-os se necessário, em um relato que se assemelha mais ou menos a uma ficção. O termo pode, no entanto, ser apreendido em um sentido amplo e designar tudo o que tem a ver com o deslocamento – mudança de registro, de domínio de validade, ou permutação de elementos prototípicos. Para a análise do corpus biográfico, três tipos de transposição impõem-se, a priori: do vivido, da obra e da crítica. Eu os retomarei um a um a seguir.

No caso da biografia e de seus derivados mais ou menos ficcionais, a transposição do vivido opera inversamente ao que se produz no romance ou, mais globalmente, no relato fictício. Em contexto romanesco, elementos da realidade do autor, de sua vida pessoal, vão entrar na ficção para mobiliá-la, lastreá-la com um peso de concretude; o texto assim produzido aproximar-se-á mais ou menos do romance autobiográfico, ou mesmo da autoficção ou da autobiografia (cf. GASPARINI, 2004; 2008). No caso da biografia, é o contrário que se produz: na transferência da realidade ao escrito, é o vivido atestado que é remodelado, investido pela ficção, pela interpretação, pela extra ou interpolação, pelas hipóteses mais ou menos ousadas, pelo fantasma etc. Apreende-se facilmente o que há de provocador em tal percurso: se quisermos admitir, com certas condições e em dados contextos, as invenções menores ou as inexatidões que dramatizam a biografia, colmatam as brechas ou apagam as suturas, em geral recusamos aceitar que o texto biográfico possa reconfigurar o vivido do modelo, ou mesmo amalgamar o do biógrafo, exceto, é claro, se lhe negarmos qualquer valor como biografia. É, no entanto, o que acontece em inúmeras empreitadas biográficas contemporâneas. Em O último mundo,de Christoph Ransmayr (1991), por exemplo, o relato da busca que um discípulo de Ovídio empreende para encontrar o texto das Metamorfoses, busca que o leva a Tomis, lugar de exílio do poeta, caracteriza-se por uma forte ancoragem referencial, mas os referentes – personagens, lugares, obras etc. – nunca constituem somente uma matéria dúctil para elaborar uma ficção. Dizendo de outro modo, o referente só conserva uma parte de seu valor factual e se vê contaminado pela mitologia, ou até, de maneira mais surpreendente, pela história contemporânea[7]. Nota-se aí que o anacronismo aparece como uma estratégia corrente de transposição do vivido, pela qual se transporta a história do biografado a uma outra época, em geral mais próxima da nossa, para torná-la mais significativa. A figura de Goethe parece particularmente propícia a tais transplantes: Goethe et un de ses admirateurs [Goethe e um de seus admiradores], de Arno Schmidt (2006), e Icon in Love: A Novel about Goethe [Ícone apaixonado: um romance sobre Goethe], de Eric Koch (1998), para dar apenas esses dois exemplos, realocando a figura do grande escritor, caução do humanismo alemão, no contexto do imediato pós-guerra, o que permite fazer um balanço de sua obra sob a luz das atrocidades nazistas. Por esse procedimento, a vida e a obra de Goethe prolongam-se até nós, atingindo com isso o objetivo fundamental de toda biografia, tradicional ou não.

A transposição do vivido pode também proceder do desejo de implantar alguma faceta da vida do biógrafo na do biografado. O escritor quebequense Victor-Lévy Beaulieu, romancista-biógrafo multirreincidente, é familiar dessas práticas. Naquela que é sem dúvida sua obra-prima, Monsieur Melville [Senhor Melville] (1978), Abel Beauchemin, alter ego do autor e personagem recorrente de seus livros, projeta-se na existência do escritor norte-americano, coloca-se em cena, com base em um conhecimento biográfico verificado, certamente, mas também em sua própria situação de escritor fictício fascinado pela realização melvilliana. Não somente a distância entre Abel e seu biografado tende a ser abolida, mas a própria “leitura” de Melville só pode ser realizada sob o modo da absorção; ela se recusa à exterioridade, só sendo concebida a partir do interior, o que resulta em fórmulas curiosas como “é ao menos assim que eu o quero na minha ficção” (BEAULIEU, 1978, t. II, p. 72) ou – mais surpreendente – “mesmo na minha ficção, eu não compartilharei esse ponto de vista” (BEAULIEU, 1978, t. III, p. 11) e “na minha ficção, eu não encontro nenhum fato que confirmaria o propósito de Giono” (BEAULIEU, 1978, t. III, p. 15). Beaulieu evoca aqui os propósitos de Giono em “Pour saluer Melville” [“Para saudar Melville”], seu “prefácio-biografia ficcional” da tradução francesa de Moby Dick. Para Abel e, por extensão, Beaulieu, é, em suma, somente no interior da ficção e do interior dela que é possível saber qualquer coisa de Melville que vá além da versão comumente admitida dos fatos. Não é uma ideia de arquivo o que busca Beaulieu, é, antes, uma verdade da ficção e da escrita. Na realidade, sua pesquisa documental restringe-se aos fatos geralmente conhecidos da existência de seu modelo. Tal posição, que eu ousaria qualificar de divinatória, não é rara entre os escritores. Pierre Mertens, na quarta capa de As duas vidas de Gottfried Benn (1987), reivindica tal posição:

O caminho mais curto entre História e história ainda é imaginar. O biógrafo, aqui, não tem outra escolha senão se fazer historiador, e o cronista não tem outro recurso senão se tornar romancista. Mas o romancista, por sua vez, só tem a chance de enxergar com clareza ao se descobrir poeta (MERTENS, 1987, quarta capa).

Essa defesa em favor de um saber profético da ficção constitui um lugar-comum do discurso sobre o romance em geral e sobre as formas contemporâneas da biografia em particular. Escritores e críticos não cansam de insistir sobre o valor heurístico da ficção e de assinalar o fato de que “o recurso à ficção permite frequentemente na escrita biográfica o restabelecimento de um testemunho impossível ou a correção dos silêncios da História” (MACÉ, 2007, p. 259). Tudo isso é justo, sem dúvida. Mas a questão essencial dessas transposições do biógrafo no universo do biografado vai além, me parece, de uma simples exacerbação do Einfühlung ou da empatia “como um dos poucos, se não o único, meios de obter conhecimento intuitivo sobre a outra pessoa e de dar expressão adequada a esse tipo de conhecimento” (SCHABERT, 1990, p. 19). Essa questão é mais ou menos autobiográfica, como o explica muito bem Mertens nessa passagem de “Vérité de la fiction” [“Verdade da ficção”] a respeito de seu livro sobre Benn:

a passagem às Duas vidas de Gottfried Benn é a ocasião de uma espécie de movimento de reconciliação entre minhas duas tendências, ou seja, a preço de uma reconciliação fantasmática com uma personagem que eu ao mesmo tempo reverencio e abomino, a possiblidade de lhe fazer dizer coisas que me são caras e de tratá-la ao mesmo tempo na terceira e na primeira pessoa do singular (MERTENS, 2001, p. 48-49).

Esse eu por detrás do ele, tanto em Mertens como em Beaulieu, é o eu de uma identificação presumida, ainda que momentaneamente reticente. A obra pseudobiográfica de Jean-Benoît Puech dissimula, na verdade, o relato autobiográfico de sua relação com Louis-René des Forêts, o que resulta na obrigação de contornar a proibição imposta por este à publicação de um diário íntimo em que ele aparecia em posição de destaque[8]. Todo um dispositivo transposicional, cada vez mais completo com o passar dos anos, organiza-se então para falar de si mesmo como de um outro e para, ao mesmo tempo, aproximar o mestre da escrita e distanciá-lo de seu modelo real. Sobre um problema ético aplica-se assim uma mecânica estética prolífera, que situa a obra tanto no universo referencial quanto no autotélico, das puras construções ficcionais. A coexistência de um registro (auto)biográfico e de um registro ficcional é certamente muito particular em Puech; mas ela é sintomática, como indica Dominique Rabaté, de um corpus maior (Puech, Perec, Quignard etc.), em cuja hibridez “aloja-se problematicamente o que está por exprimir, por significar” (RABATÉ, 2006, p. 118), dicção e ficção participando de uma mesma busca, alternando-se para admitir suas respectivas lacunas e preenchê-las em um mesmo tempo. Segundo Rabaté:

Tela, a ficção também o é no sentido em que mascara alguma coisa, em que traveste um desejo de dizer mais diretamente. Ela deve então ser retransmitida por uma outra escrita cuja inadequação mais ou menos denuncia. É, finalmente, entre os dois regimes que se busca uma palavra completa (RABATÉ, 2006, p. 126).

É então entre dicção referencial biográfica e ficção deliberada que “se deve ouvir o que não se pode dizer” (RABATÉ, 2006, p. 126-127), que é talvez inicialmente o desejo – ou seja, a parte subjetiva, imaginária – de restaurar uma lembrança que memória nenhuma consegue alcançar mais. É óbvio que a superimposição no nível factual de um discurso ficcional, seja ele ligado à invenção de fatos ou à de uma linguagem carregada de metáforas e de imagens fantasmáticas, tem por consequência, como observa SCHABERT (1982, p. 11), passar a factualidade ao segundo plano, sugerindo um segundo nível de leitura mais geral ou mais “profundo”.

O segundo tipo de transposição pelo qual a ficção é suscetível de “passar” na escrita biográfica é a da obra. Antes de se tornar biógrafo de um escritor admirado, o autor de uma biografia é em geral um leitor apaixonado pela obra – quando ele efetivamente não sonha tê-la escrito. De fato, a acuidade de sua leitura é frequentemente duplicada por uma tentativa de apropriação na qual o exercício hipertextual torna-se um motor da escrita, sendo autorizados ecos estruturais e estilísticos proibidos ao pesquisador e até mesmo ao ensaísta, retomadas de motivos que fazem reverberar a obra na vida, reformulações que a transfiguram. É às vezes desse modo que o biógrafo se reconhece escritor: por essa forma de enxertar muito concretamente sua escrita sobre a de um modelo assim dominado.

Os modos de transposição da obra no texto biográfico são inúmeros e seria demasiado longo inventariá-los (cf. DION e FORTIER, 2010). Notemos aqui, apenas, que eles cobrem toda extensão que vai da citação localizada de fragmentos de obras até a retomada de motivos, de personagens, de objetos, de cenários, de esboços temáticos ou narrativos oriundos da produção do biografado. A questão estética da biografia literária passa pela diversidade dos procedimentos transformacionais que ela coloca em movimento para fazer esquecer, ou ao contrário, para colocar em evidência o caráter hipertextual de seu exercício, como se poderia dizer parafraseando o Genette de Palimpsestos (1982). Reformulação, transvocalização[9] ou até mesmo reinvenção tornam-se fenômenos de transposição, já que eles estão inicialmente ligados a uma mudança de registro, a uma deslocalização enunciativa ou genérica, a uma inflexão tonal, a uma imitação estilística ou a uma reconfiguração ideológica. Questão de escrita e de leitura, inventiva até o insólito ou sóbria até a dissimulação, a escrita biográfica explora, em todas as suas declinações e nuances, a ligação que a une à obra escolhida, aspirando assim, em alguns aspectos, “à condição do romance” (ROSE, 1982, p. 111).

A transposição da obra por intermédio de citações não é inabitual e ela em si não apresenta muito interesse. Quando, entretanto, ela ganha a quase totalidade da obra biográfica, como em Casanova o admirável de Philippe Sollers (1998), que retoma muitas facetas da História da minha vida, ela se torna mais intrigante. Em Sollers, na verdade, a citação maciça da obra de Casanova visa a reafirmar a riqueza de uma escrita negligenciada pela história literária, escrita aqui literalmente “incorporada” com vistas a reabilitá-la, no duplo sentido do termo: o de reavaliá-la positivamente e o de fazê-la servir a uma nova construção textual. Ao associar Casanova à sua escrita (mais do que às anedotas de sua vida) e ao que ele considera como uma obra-prima, ao edificar sua própria obra sobre esse fundamento para, ele próprio, tecer sua vida como um segundo texto, Sollers contesta a fronteira entre o homem e a obra. Com isso, ele se inscreve na linhagem do que Pascal Quignard, de um modo muito mais complexo, realiza em um livro como Albucius (1990), em que o escritor de Petits traités [Pequenos tratados] declara não somente citar o retórico romano, mas também restaurar intensamente alguns de seus textos lacunares, reinventar algumas partes perdidas, retomar seu tom voluntariamente grosseiro e até imitar seu estilo, as construções latinas que se multiplicam no que se dá tanto como uma evocação da vida de Caius Abucius Silus quanto como uma antologia de suas declamationes (cf. DION, 2011). Em O papagaio de Flaubert (2000), Julian Barnes multiplica, ele também, as conexões com a obra, tecendo uma intriga entre o narrador-biógrafo e sua mulher que lembra a de Madame Bovary, retomando excertos de cartas de Flaubert, atribuindo a seu narrador um pastiche do Dicionário das ideias feitas, manipulando com brio as diferentes formas de intertextualidade, bem como as técnicas metatextuais e hipertextuais, o que deixa entrever um saber multiforme e contraditório, assim pretendido, e posto a serviço de uma reconstituição biográfica expressamente designada como fora de alcance.

Outras formas de transposição da obra podem se aplicar à totalidade da trama diegética. É o que acontece em Alabama Song de Gilles Leroy (2007), no qual o único romance de Zelda Fitzgerald, Esta valsa é minha, dá o roteiro da evocação biográfica. Convincente, apesar de ser muito sutil, essa transposição alinha-se aos acontecimentos da vida de Alabama Beggs, heroína transposta pela própria Zelda no romance que conta sua vida ao lado de David Knight, figura maltravestida de Fitzgerald. A ficção elaborada por Zelda fornece assim a tela de uma intriga sobre a deriva conjugal do casal emblemático dos anos loucos; ela impõe, por uma vez, o ponto de vista daquela que sempre foi acusada de ter atrapalhado o talento do grande escritor, e com tanto mais força que Leroy cede novamente a palavra à sua heroína em uma transvocalização que joga com todos os registros sem jamais resolver a ambiguidade dos sentimentos que a ligam a seu célebre marido.

Da alusão mais sutil ao reinvestimento de motivos temáticos, do mimetismo estilístico ao decalque formal, inúmeros modos da transposição da obra aparecem no relato autobiográfico contemporâneo. O romanesco satura o biográfico, amalgama o fictício e o factual, neutraliza a polarização que separa a obra e a vida para reinventar o retrato do escritor, reinvesti-lo pela leitura e pela reescrita. A transposição está nesse gesto de apropriação, que interpreta o outro com base na “subjetividade fictícia”, para retomar a expressão de François Gramusset, nessa “figura da voz” instaurada pela obra, e que os superpõe ao mesmo tempo em que mantém a movência do retrato (GRAMUSSET, 2003, p. 8-9).

A terceira e última forma de transposição na qual quero me deter é a da crítica, que permite se interrogar sobre o valor cognitivo das formas contemporâneas do biográfico, por um lado, e sobre o teor dos amálgamas entre ficção e crítica, por outro, no seio do que Dominique Viart e eu definimos, em um sentido levemente diferente, como “ficções críticas” (VIART, 2002; DION, 1997). Assim, um livro decididamente híbrido como La gloire [A glória], de Daniel Oster (1997), trama minuciosamente a vida desse escritor “sem biografia” que foi Mallarmé na leitura de sua obra, tanto em sua face poética quanto em sua inscrição mais anedótica. Recorrendo a uma forma diarística relativamente livre em que coabitam pequenas ficções, confissões, anedotas e colagens, Osters consegue selecionar amostras da multiplicidade dos discursos sobre Mallarmé, no que eles demonstram a vulgata crítica, o mito, a ficção ou o clichê. Com isso, ele elabora uma espécie de ficção compiladora e, ao mesmo tempo, uma proposta crítica fundada no ecletismo, na crítica da crítica, em que todo discurso de teor sapiencial é suscetível de ser contestado, relegado ao mito, ao puro efeito de linguagem, e acusado de enunciados contraditórios.

Essa não é, para a escrita biográfica, a única forma de manter uma postura crítica aos antípodas daquela, dificilmente sustentável desde Proust, da crítica biográfica. Muitos biógrafos integram o corpus das glosas existentes sobre a obra do escritor biografado ou até se permitem produzir seu próprio comentário; entretanto, não são a justaposição e a alternância do ensaístico e do narrativo que caracterizam a produção “média” (BOURDIEU, 1971) o que me interessa principalmente, mas, antes, as ocorrências em que crítica e narração deslizam uma na outra (e não uma em direção à outra). É esse o caso, por exemplo, das evocações biográficas de Rimbaud por MICHON (1991) e BORER (1984), em que o desafio consiste em ler a vida e a obra em uma continuidade crítica e biográfica, colocando em questão uma doxa crítica que reconduz as clivagens entre o poeta genial e o contrabandista, entre o indivíduo e o mito que nela se substitui. O papagaio de Flaubert instaura também uma relação particular entre crítica e ficção, enxertando a esta última um discurso erudito muito desenvolvido, composto de cronologias concorrentes, de inventários delirantes, de fragmentos de histórias supérfluas etc. É o contrário dos Trois Rimbaud de Noguez, em que a ficção é enxertada a uma estrutura pseudocrítica. Pela adjunção de uma erudição louca, Barnes elabora indiretamente um discurso sobre o culto e a fragilidade dos artefatos, sobre as luzes e as aberrações de uma crítica sempre dependente da opinião e dos preconceitos de época, sobre os efeitos de espelho entre a palavra do biógrafo e a existência reconstruída do biografado.

De fato, a ficcionalização da crítica, que é a consequência mais visível de sua transposição em empreitadas biográficas preocupadas em se dissociar dos topoï ligados às formas tradicionais, leva à denúncia de seus hábitos, seus resultados geralmente teleguiados, sua repetição. Com Oster, que parece recusar à crítica toda capacidade de enunciar uma verdade certa sobre o homem e sobre a obra, com Michon e Borer, que destacam os atalhos da vulgata, e com Barnes, que ridiculariza os fetichismos da erudição, o comentário sobre a obra se vê, no mínimo, abalado. Avançando mais um passo, a transposição da crítica pode até levar a uma verdadeira negação da interpretação douta dos textos (pelo menos, daquela que é comumente considerada admissível); não se trata mais para o biógrafo, a partir de então, de somente produzir um discurso suscetível de “proteger” o biografado dos ataques de seus comentadores, mas de se dirigir à convenção crítica para simplesmente aniquilá-la. Assim, Sollers, em Casanova o admirável, obriga-se a retomar os principais clichês de uma crítica de Casanova alérgica ao texto, seja para retrabalhá-los, seja para subvertê-los, em uma crítica digamos “negativa”, que se coloca no terreno de uma cumplicidade íntima entre biógrafo e biografado. Sollers acaba até por se designar como uma verdadeira reencarnação de Casanova, encarregado de redizê-lo – daí a importância das citações – em um contexto em que mais do que nunca a “mensagem” de Casanova lhe parece dever ser ouvida. E é precisamente em uma negação de pertinência dos discursos mantidos no curso dos dois últimos séculos que o biógrafo estabelece a pertinência do seu. Um mesmo desejo de contornar a doxa crítica também pode sem dúvida ser lido em Pascal Quignard ou em Gérard Macé – em uma obra como Vies antérieures [Vidas anteriores] (1991), por exemplo – cujas evocações biográficas se elaboram, seguindo Rabaté, no modo da ficcionalização do saber, do “devaneio histórico”, “de uma verificação erudita que vai buscar nos textos raros a matéria de seu imaginário” (RABATÉ, 1999, p. 290).

Presente pelo viés de manipulações do vivido, de plágios da obra ou de simulações do comentário crítico, a ficção ocupa um lugar determinante na produção biográfica contemporânea. Diferentemente do estatuto que tinha em um subgênero como a biografia romanceada, a ficção não é mais disfarçada, e uma das críticas – paradoxais – que se pode fazer hoje à biografia é de não exibir suficientemente as bricolagens mais ou menos fictícias que a caracterizam. Assim, Nina Glaser, a respeito de Proust, samedi 27 novembre 1909 [Proust, sábado 27 de novembro de 1909], de Alain Buisine (1991a), lamenta que o biógrafo tenha buscado compensar as falhas de seu saber com fórmulas conjecturais estereotipadas, e ela prossegue com a seguinte sugestão:

Mostrar, ao contrário, as lacunas do saber do biógrafo, suas incertezas, marcar as elipses de sua narração, insistir no mistério de seu objeto, não haveria aí melhor ficção, ou seja, uma ficção que colocaria o desejo de saber do leitor diante de sua impossibilidade última, portanto, de sua vertigem? (GLASER, 1992, p. 297).

Vê-se aí a questão que representa, para toda literatura que pretende encenar o real, ou sua relação com o real, o fato de se fazer passar – ou não – pelo que Catherine Kerbrat-Orecchioni designa como um “tropo ficcional”, ou seja, um discurso ficcional que transgride a lei de sinceridade, não ao dizer falsidades (um discurso ficcional contém evidentemente afirmações “verdadeiras”[10]), mas se travestindo de discurso de verdade (KERBRAT-ORECCHIONI, 1982, p. 38s.). Certamente seria ir longe demais assimilar o conjunto da produção biográfica contemporânea a um tropo ficcional, mas permanece a ideia de que sua relação com o referente se revela ambígua, sendo o “real” frequentemente passado pelo crivo de sua representação ficcional, e a ficção sendo associada, por sua vez, a uma verdade que eclipsa as ilusões da realidade. Desenha-se aqui uma ética de que Frédéric Regard falou muito bem em um artigo inspirador intitulado “L’éthique du biographique: réflexions sur une tradition britannique” [“A ética do biográfico: reflexões sobre uma tradição britânica”] (2002). Nele, Regard lembra-nos com pertinência que “a personagem biográfica não é a verdade que teria degenerado em uma ficção, mas uma ficção que seria içada ao nível de uma ‘verdade’”, de tal modo que a fabulação biográfica nos “projeta[ria] inevitavelmente no campo de um saber” (REGARD, 2002, p. 88). Segue a distinção, eminentemente útil, entre fabulação, invenção hermeneuticamente controlada de um Outro determinado historicamente, e afabulação, invenção próxima do embuste (REGARD, 2002, p. 88) e, nisso, pouco produtiva. A fabulação, como bem o diz Regard, não é, então, “uma ficção no sentido pejorativo do termo”, é “uma exploração dessa outra cena, como uma reconstrução metafórica cuja questão última continua sendo uma abordagem hermenêutica [...] que não se proíbe de transformar a biografia na história de um sujeito que faz uma ilusão de si mesmo” (REGARD, 2002, p. 89). Parece-me que é tal hermenêutica, audaciosa mas controlada, que se deixa ler nas transposições que me retiveram aqui, por meio das quais o vivido é reconfigurado à luz da relação entre biógrafo e biografado, as obras são relidas e reencenadas para restituir essa outra cena em que se produz a personagem do escritor, a interpretação e o comentário retomados para nela introduzir focos e filtros diversos, a fim de revivificar a leitura de um destino e de uma obra, a fim de fazê-los ressoar em um presente cuja exigência o biógrafo não cessa, por todos os meios, de reiterar.

 


REFERENCIAS

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NOTAS

[1] Essa intervenção de 2004 foi publicada em um livro que eu codirigi: ver DION (2007) em DION, FORTIER et al. (2007).

[2] NT: Quando forem evocados títulos de obras não disponíveis em português, eles virão seguidos de uma tradução entre colchetes, somente na primeira vez em que aparecerem no texto.

[3] Os jornalistas mencionam, entre outros, Limonov, de Emmanuel Carrère, Jayne Masfield 1967, de Simon Liberati, Rien ne s’oppose à la nuit [Nada se opõe à noite],de Delphine de Vigan, O que amar quer dizer, de Mathieu Lindon.

[4] Cf. HUNTER (1979). Lembremos que a palavra “biografia” faz sua aparição em francês nessa época: na edição de 1721 do Dictionnaire de Trévoux, segundo o TLFi (Disponível em: http://atilf.atilf.fr/dendien/scripts/tlfiv5/advanced.exe?8;s=2038882080. Acesso em: 5 jul. 2013.)

[5] Ciências humanas novas – sociologia, antropologia, ciências políticas etc. –, no seio das quais a “velha” história visava inscrever-se cientificizando-se e, no caminho, rompendo suas relações seculares com as belas letras e a literatura.

[6] O desenvolvimento a seguir retoma o da introdução a DION e FORTIER (2010).

[7] Assim, em Tomis, projetam-se filmes de amor nas paredes do matadouro!

[8] Puech evoca essa situação em L’apprentissage du roman [A aprendizagem do romance] (1993).

[9] Lembremos que a transvocalização é definida por Genette em Palimpsestos como uma mudança de pessoa gramatical; no caso que me interessa, poderíamos imaginar a transvocalização de certos excertos da autobiografia do biografado em uma biografia escrita na terceira pessoa.

[10] Kerbrat-Orecchioni propõe distinguir enunciados factuais e enunciados interpretativos, distinção que “pode ser utilizada para perceber o fato de que muitos textos, que devem ser considerados como ficcionais em relação a fatos que eles enunciam, apresentam-se, ao mesmo tempo, nos comentários e considerações gerais que eles propõem, como discursos de verdade” (KERBRAT-ORECCHIONI, 1982, p. 36).

 


Versão original recebida em: 31/08/2017
Aceita em: 15/12/2017