Revisitando os Museus na Pandemia: sobre Educação Museal Online e Cibercultura

2020-05-30

Autoria: Frieda Marti e Andréa Costa

A pandemia de COVID-19, causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), tem provocado importantes mudanças em nossas vidas, afetando de maneira significativa nossas experiências familiares, laborais e também de educação, cultura e lazer. 

No meio museal, a pandemia provocou o fechamento dos museus à visitação pública, causou demissões - dentre as quais destacamos a dos educadores museais - e desperta uma série de dúvidas acerca da sustentabilidade financeira dessas instituições ao redor do mundo. 

O levantamento promovido pelo ICOM junto a 1600 profissionais de 107 países aponta como efeito colateral do fechamento dos museus em decorrência da crise sanitária, o aumento em 15% nas atividades promovidas por estes na internet. Cerca de metade dos pesquisados informou que seu museu já estava presente nas mídias sociais digitais ou compartilhava suas coleções online. Durante a quarentena, as ações online se tornaram mais frequentes, principalmente aquelas nas redes sociais digitais, que foram intensificadas em 48% das instituições. O documento elaborado pelo ICOM aponta, ainda, limitações estruturais dos museus em relação aos recursos e profissionais dedicados à “comunicação digital”, assim como também deficiências na qualidade, “nível de maturidade”, dos conteúdos veiculados (ICOM, 2020). 

No contexto brasileiro, alguns profissionais sinalizam que a exclusão digital impõe limites à atuação dos museus no ciberespaço, enquanto outros parecem temer que as ações online ponham em risco a experiência museal geograficamente localizada. Pela internet ou não, o acesso dos brasileiros aos museus é bastante limitado. Apenas 25.9% das cidades brasileiras possuem museus (IBGE, 2019) e 66% deles estão localizados nas regiões Sul e Sudeste (MuseusBr). Uma pesquisa feita em 12 capitais verificou que 30% dos pesquisados nunca visitaram um museu ou exposição e 39% o fizeram há mais de um ano, sendo a falta de tempo o principal motivo para isso (LEIVA, MEIRELLES, 2018). Apesar de renda, escolaridade, idade, área de residência, dentre outros, exercerem influência sobre o acesso à internet, 70% da população brasileira é usuária de internet, sendo o tempo médio de conexão (com diferentes dispositivos) de 9h29min/dia, sendo 3h34min destinados às mídias sociais (GLOBAL DIGITAL REPORT, 2019). No entanto, poucos acessam exposições ou museus online (11% dos usuários de internet no Brasil) e quem mais acessa a internet é também quem mais visita museus fora dela. Entre os que sempre acessam, 38% visitam museus, percentual que cai para 11% entre os que nunca acessam a internet (LEIVA, MEIRELLES, 2019).

Considerando os desafios enunciados, o presente artigo tem como objetivo apresentar e discutir a relação entre cibercultura, museus e educação, apontando possíveis caminhos teórico-práticos para atuação dos museus e de seus profissionais no contexto atual e pós-pandêmico.  Nesse sentido, se evidencia a necessidade de os profissionais de museus melhor compreenderem o contexto sociotécnico contemporâneo e a relevância desse debate para o campo museal. 

O rápido e intenso desenvolvimento das tecnologias digitais de informação e comunicação vêm forjando novas e múltiplas relações infocomunicacionais, podendo ser considerado o catalisador das profundas transformações socioculturais, políticas e econômicas contemporâneas que marcam a cibercultura. 

A cibercultura é a cultura contemporânea mediada/estruturada pelas tecnologias digitais em rede e móveis na relação cidade-ciberespaço (SANTOS, 2014). Também pode ser compreendida como a cultura contemporânea que emerge a partir das múltiplas relações que estabelecemos e dos usos que fazemos das tecnologias digitais em rede (TDR). 

Sob o ponto de vista da comunicação, o surgimento da web 2.0 rompe com a lógica tradicional unidirecional e massiva, em que a mensagem é produzida por um emissor e distribuída de forma homogênea a vários receptores (modelo um-todos) (SILVA, 2012). A web 2.0 deu origem à novas formas de sociabilidade e comunicação que se pautam em um modelo em que tanto o emissor quanto o receptor são autores da mensagem (modelo todos-todos/emissor e receptor = autor). Sendo assim, as produções autorais online (textos, imagens, sons) podem ser armazenadas, compartilhadas e remixadas na rede, em múltiplos formatos híbridos, a qualquer hora e em qualquer lugar (mobilidade ubíqua), por qualquer usuário. Portanto, os museus precisam repensar suas estratégias de comunicação no/com o digital em rede, e precisam refletir sobre as potencialidades comunicacionais das TDR no que tange ao reconhecimento desses fluxos multimodais de informações e da autoria e saberes produzidos pelos seus seguidores online, rompendo, dessa forma, com o paradigma comunicacional massivo centrado apenas na produção intelectual de seus profissionais.

A cibercultura e as potencialidades das TDR vem apresentado também novos desafios e possibilidades para a Educação. As redes humanas e não humanas (sistemas computacionais que estendem nossas funções cerebrais) em conexão configuram e reconfiguram novos espaçostempos de interação para aprendizagem e ensino em um novo espaço conversacional, o ciberespaço, gerando, assim, questionamentos sobre o paradigma tradicional da pedagogia da transmissão, em que o educador é visto como principal produtor e emissor da mensagem para seus alunos receptores. 

Diante dessa nova dinâmica, do contexto comunicacional e de produção de conhecimento da/na cibercultura, Silva e Santos (2009), Silva (2012) e Santos (2005, 2014) propõem um nova modalidade educacional: a Educação Online (EOL), a que Mariano e Carvalho (2020) apresentam como uma abordagem didático-pedagógica, enunciando seus princípios da seguinte forma: (1) Conhecimento como “obra aberta”; (2) Curadoria de conteúdos + sínteses e roteiros de estudo; (3) Ambiências computacionais diversas; (4) Aprendizagem em rede, colaborativa; (5) Conversação entre todos, em interatividade; (6) Atividades autorais inspiradas nas práticas da cibercultura; (7) Mediação docente online para colaboração; (8) Avaliação formativa e colaborativa, baseada em competências. A EOL está fundada na lógica comunicacional ‘todos-todos’ que, a partir da interatividade e da hipertextualidade, fomenta situações e processos coletivos horizontais de cooperação e colaboração na produção de conhecimentos, e as TDR são importantes artefatos culturais para promovê-la, tanto em situações em que os participantes se encontram geograficamente distantes ou não. Interatividade é aqui compreendida como um fenômeno comunicacional da cibercultura, um ato intencional de comunicação com o outro, onde há cocriação da mensagem (emissor e receptor participam ativamente da criação da mensagem), por meio de intervenção física na mesma, com ou sem mediação digital (SANTOS, 2010; SILVA, 2012). 

Mas de que forma a cibercultura e a educação online se relacionam com o campo dos museus e da educação museal? A nossa relação com as TDR se dá em nossos cotidianos de forma intencional ou não, independente de nossa vontade. A pandemia e suas ressonâncias vieram nos alertar para a importância da presentificação dos museus no ciberespaço. Pensar nessa presentificação e nas práticas educativas no ciberespaço, sob múltiplas formas, não é algo novo e também não põe em risco a sua presença geograficamente localizada, como alguns parecem temer. Porém, é necessário destacar que esta presentificação e a relação dos museus com seus públicos precisam estar sintonia com os novos paradigmas e fenômenos comunicacionais e educacionais da cibercultura; e isso também precisa ser pensado no contexto dos museus geograficamente/fisicamente localizados. Além disso, é importante compreender as TDR para além de meras ferramentas a serem aprendidas e utilizadas em práticas museais. As tecnologias digitais em rede são sistemas computacionais que estendem as nossas funções cerebrais e, a partir de seus usos políticos, históricos, culturais, comunicacionais e educativos diversos, atuam e modificam os nossos modos de ser, ver, sentir e estar no mundo. 

O nosso interesse pelo tema vem se materializando, desde 2018, em pesquisas sobre educação museal na cibercultura e em ações educativas museais online realizadas nas/com as redes sociais da Seção de Assistência ao Ensino (SAE) do Museu Nacional. A Educação Museal é uma modalidade educacional que, por meio dos objetos musealizados, dos processos museais, dos saberes e fazeres, bem como do diálogo, visa a formação crítica dos sujeitos e a transformação social (COSTA et.al, 2018). Denominamos Educação Museal Online, a Educação Museal no contexto da cibercultura e inspirada na abordagem didático-pedagógica da educação online. Sendo assim, fazer e pensar ações educativas museais online pressupõe o reconhecimento da interatividade, da colaboração, da participação ativa dos seguidores, e da noção de que habitamos diversas redes de conhecimentos e significações em que ensinamos e aprendemos um com os outros.  

Em face dos novos desafios impostos pela pandemia e da discussão aqui apresentada, desejamos compartilhar algumas dicas sobre possibilidades de fazer e pensar ações de educação museal online com base em nossa experiência junto às redes sociais digitais da SAE:

  •  conheça os seus visitantes - use hashtags para pesquisar nas redes sociais como eles significam a experiência de visitar o seu museu;
  • conheça e reconheça as potencialidades interativas do sistema computacional (redes sociais, aplicativos, etc) que você está usando para gerar situações de interatividade e hipertextualidade;
  • aposte na criação de conhecimentos em rede - o seguidor não é um receptor passivo;
  • explore os recursos online do seu museu (e.g. acervos, exposições, “tours” online, etc) para fomentar a participação ativa dos seguidores e explorar situações que gerem curiosidade e perguntas;
  • aposte em ações dialógicas que convoquem as trocas de experiências, narrativas, sentidos e significações dos seus seguidores, considerando os múltiplos saberes que vão emergir;
  • crie situações de mediação museal online, concebendo a ação educativa como “obra aberta” com a intenção de convocar a participação ativa dos seguidores; mediar, nesse casos, é gerar situações conversacionais;
  • traga situações/questões cotidianas para “fazer pontes” com os temas vinculados ao seu museu e, assim, gerar conversas;
  • use múltiplas linguagens, mídias e gêneros textuais da cibercultura (e.g. vídeos, memes, jogos, storytelling, etc) como disparadores de conversas e criação coletiva de conhecimento;

A pandemia da Covid-19 tem evidenciado o necessário estreitamento da relação entre as características sociotécnicas da contemporaneidade e o campo dos museus e da educação museal. Nesse sentido, revela-se como urgente a formação de profissionais para o enfrentamento desse cenário e dos futuros desafios. Os fazeres e saberes da educação museal online vivenciados na/com as redes sociais digitais da SAE vem nos mostrando as potencialidades dessa abordagem para a promoção de conversas entre o museu e seus visitantes online. Portanto, transformar os modos de presentificação dos museus na internet, buscando a criação coletiva de conhecimentos e a formação participativa, crítica, autoral e cidadã, faz parte do processo de ampliação do alcance social dessas instituições e sua democratização.

 

Leia mais....

Carta aberta dos educadores museais brasileiros

Caderno da PNEM

Educação Museal Online

Memes no Museu Nacional

Instagram da SAE

Facebook da SAE

 

Referências:

COSTA, A.F.; CASTRO, F.; SOARES, O.; CHIOVATTO, M. Educação Museal. Em: Instituto Brasileiro de Museus. Caderno da Política Nacional de Educação Museal. Brasília, DF: IBRAM, 2018.

ICOM. Conselho Internacional de Museus. Museos, profesionales de los museos y COVID-19: resultados de la encuesta. Acesso em: 28 maio 2020

Global Digital Report 2019 – We are social. Digital 2019. Acesso em: 27 maio 2020. 

IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Perfil dos municípios brasileiros: 2018, Rio de Janeiro: IBGE, 2019.

LEIVA, João; MEIRELLES, Ricardo. Cultura nas Capitais: como 33 milhões de brasileiros consomem diversão e arte, Rio de Janeiro: 17 Street Produção Editorial, 2018. 

LEIVA, João; MEIRELLES, Ricardo. Atividades on-line reduzem ou estimulam o acesso a atividades culturais off-line? O que indicam as pesquisas quantitativas. In: Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. TIC cultura 2018: pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos equipamentos culturais brasileiros. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2019. 

MUSEUSBR. Acesso em: 15 dez. 2019.

PIMENTEL, Mariano; CARVALHO, Felipe da Silva Ponte. Princípios da Educação Online: para sua aula não ficar massiva nem maçante! SBC Horizontes, maio 2020. ISSN 2175-9235. Acesso em: 28 maio 2020.

SANTOS, Edméa. Educação online: cibercultura e pesquisa-formação na prática docente. 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005. 

SANTOS, Edméa. Educação online para além da EAD: um fenômeno da cibercultura. In. SILVA, Marco; PESCE, Lucila; ZUIN, Antônio (orgs). Educação online: cenário, formação e questões didático-metodológicas. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2010.

SANTOS, Edméa. Pesquisa-formação na cibercultura. Portugal: Whitebooks, 2014.

SILVA, Marco. Sala de aula interativa. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

SILVA, Marco; SANTOS, Edméa. Conteúdos de aprendizagem na educação on-line: inspirar-se no hipertexto. Educação & Linguagem, v.12, n.19, 2009, p. 124-142.

 

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Como citar este artigo:

MARTI, Frieda; e COSTA, Andréa. Revisitando os Museus na Pandemia: sobre Educação Museal Online e Cibercultura. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, maio de 2020, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Felipe da Silva Ponte de Carvalho e Edméa Oliveira dos Santos