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Sexualidad, Salud y Sociedad

REVISTA LATINOAMERICANA


ISSN 1984-6487 / n.2 - 2009 - pp.72-96 / www.sexualidadsaludysociedad.org




Caso Astrid/Eulina: entre a candidatura eleitoral e o julgamento moral, eleições no Pará, Brasil



Jane Felipe Beltrão

Doutora em História Universidade Federal do Pará Pesquisadora do CNPq


> jane@ufpa.br


Estella Libardi de Souza

Mestranda em Direito Universidade Federal do Pará


> estellalibardi@gmail.com




Caso Astrid/Eulina: entre a candidatura eleitoral e o julgamento moral, eleições no Pará, Brasil

Resumo: A partir do Caso Astrid/Eulina analisam-se as múltiplas faces do preconceito e da discriminação nos escritos do judiciário ao discutir o registro de candidaturas a cargos eleti- vos no estado do Pará, Brasil. O Caso Astrid/Eulina refere-se à candidatura de Maria Eulina de Sousa Fernandes à prefeita do município de Viseu (PA) para suceder Astrid Maria Cunha e Silva, pessoa com quem mantinha relação homoafetiva, não declarada pela candidata, mas denunciada pelos adversários em processo que resultou na impugnação da candidatura de Eu- lina. Para provar a tese da inelegibilidade de Eulina, os advogados dos adversários procuram caracterizar a relação de Astrid e Eulina como típica de homem e mulher; tentam apontar não apenas a existência de relação amorosa entre as duas mulheres, mas enquadrá-la em um modelo heterossexual, o qual deve corresponder à categoria jurídica união estável, tentativa esta que se revela, à partida, problemática. Os agentes sociais não se limitam a discutir a pos- sibilidade ou não da candidatura, rompem a fronteira do julgamento do fato em si e avançam em seus argumentos na discussão da relação Astrid/Eulina, permitindo entrever a leitura preconceituosa da relação homoafetiva, o que indica a não-aceitação da orientação sexual. Para demonstrar o “julgamento moral” da candidata, recolhem-se os estereótipos presentes nos autos do processo, associando-os às trajetórias dos envolvidos, concluindo-se que o jul- gamento não se restringiu à instância do político.

Palavras-chave: preconceito, discriminação, relações homoafetivas, impugnações morais


El caso Astrid/Eulina. De una candidatura electoral a un juzgamiento moral: elecciones en Pará, Brasil

Resumen: A partir del caso Astrid/Eulina, se analizan múltiples facetas del preconcepto y la discriminación en escritos del poder judicial, al discutir la oficialización de candidaturas a cargos electivos en el estado de Pará, Brasil. Este caso refiere a la candidatura de María Euli- na de Sousa Fernandes a la intendencia del municipio de Viseu (Pará), para suceder a Astrid Maria Cunha e Silva, persona con quien mantenía una relación homoafectiva, no declarada por la candidata pero denunciada por los adversarios en un proceso judicial que derivó en la impugnación de la candidatura de Eulina. Para probar la tesis de inelegibilidad de Eulina, los abogados de sus adversarios procuraron caracterizar la relación de Astrid y Eulina como una relación típica de hombre y mujer: tentaron señalar no sólo la existencia de una relación amo- rosa entre ambas mujeres, sino también encuadrarla en un modelo heterosexual, que debiera corresponder a la categoría jurídica de unión estable; tentativa que se revela, en principio, problemática. Los agentes sociales no se limitan a discutir la posibilidad o no de la candida- tura: rompen la frontera del juzgamiento del hecho en sí y avanzan en sus argumentos en la discusión de la relación Astrid/Eulina, dejando entrever una lectura prejuiciosa de la relación homoafectiva, que indicaría la no aceptación de una orientación sexual. Para demostrar el “juzgamiento moral” de la candidata, se recuperan los estereotipos presentes en los autos del proceso, poniéndolos en relación con las trayectorias de los involucrados; y se concluye que el juzgamiento no se ha circunscripto a la instancia de lo político.

Palabras clave: preconcepto; discriminación; relaciones homoafectivas; impugnaciones morales


Astrid/Eulina Lawsuit in Pará, Brazil: from political candidacy to moral judgment

Abstract: Multiple prejudice and acts of discrimination are revealed in the analyisis of docu- mentation on a Astrid/Eulina lawsuit, an affair which took place in the State of Pará, Brazil. Eulina run for Major of the Viseu municipality, as successor for Astrid, with whom she main- tained an undeclared lesbian relationship, which was denounced by her opponents. This re- sulted in the impeachment of Eulina ́s candidacy. In order to prove the ineligibility of Eulina, lawyers alleged that Astrid and Eulina had a typical man/woman relationship, which framed them in a type of relationship in correspondence with the Brazilian judicial category stable union. The opponents’ thesis includes both a discussion on the viability of the candidacy and preconceived ideas against homo relationships. Analysis demonstrates the moral overtones of a political trial. Political issues gave way to the discussion of personal matters and various stereotypes.

Keywords: Prejudice; Discrimination; Gay/Lesbian unions/marriage; Moral challenges


Caso Astrid/Eulina: entre a candidatura eleitoral e o julgamento moral, eleições no Pará, Brasil

Quando a arma é o judiciário

Trabalhamos o caso Astrid/Eulina1 em busca do dito nos escritos do Judiciário (Beltrão, 2005) analisados, conforme indica Mariza Corrêa (2004), como convenções culturais, influenciadas ou não pela discussão que se encontra na ordem do dia, convictas que estamos de que o conteúdo do processo, para além da argumentação técnico-jurídica, permite entrever as preconceituosas leituras da relação estabelecida entre Astrid e Eulina, fato que indica a não-aceitação da orientação sexual constituída de forma diferenciada do padrão hegemônico.

No terreno do debate, a instância do político à qual se reporta o processo – referente à elegibilidade ou não de Eulina2 – interessa-nos apenas como espaço de produção de “julgamento moral”, não no sentido de julgamento em si, mas enquanto arena sofisticada em que o preconceito aponta as formas de discriminações decorrentes da não-aceitação de diferenças sexuais, manifesta na busca de provas capazes de comprovar a existência de união estável entre Astrid, prefeita de Viseu, no Pará,3 e Eulina, candidata à prefeita no pleito de 2004.

A busca pelas provas instaurou uma verdadeira guerra, pois a política, como ensina Foucault (2007 [1979]), pode ser tomada como um prolongamento da guerra, usando outros recursos para reproduzir a correlação de forças em torno do poder. Os candidatos a prefeito e seus correligionários – compreendidos aqui de forma abrangente – incluindo os advogados das partes, tinham como objetivo vencer o litígio. E, para vencer a causa, cada envolvido produziu ampla “convocação”, fato que gerou o posicionamento de especialistas que se pronunciaram através de entrevistas e escreveram artigos para os jornais locais, os quais repercutiram fora do estado; na disputa, os adversários políticos usam como armas finais os juízes para dirimir o conflito.


Da singularidade do caso

Há muito os “[...] Tribunais de Justiça vêm apreciando recursos provindos de litígios envolvendo a temática das conjugalidades homoeróticas no Brasil” (Oliveira, 2007, p. 1). Muitas decisões foram, inclusive, objeto de apreciação pelas instâncias superiores,4 mas considerar tal conteúdo no âmbito da justiça eleitoral parece singular, especialmente pelos reflexos jurídicos que a decisão poderá acarretar, mesmo considerando a cautela dos operadores do Direito que se fazem presentes no processo.5

Saindo da política partidária, mas permanecendo no tema, faz-se necessário verificar o tratamento dado ao caso, considerando a existência ou não de união estável entre Astrid e Eulina, fato que se constituía em obstáculo à candidatura de Eulina à prefeitura de Viseu. Pensamos a demanda como universalização de tratamento jurídico, e interrogamos como se comportaram as partes ao advogar a extensão ao caso ou não do art. 14, § 7o da Constituição Federal, que afirma:


[s]ão inelegíveis, no território da jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes, consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição (2004, p. 20).


Tentando dar conta da questão, tomamos o Direito como

[...] uma forma de ver o mundo, semelhante [...] à ciência, ou à religião, ou à ideologia, ou à arte – mas que, no caso específico [...], vem acompanhado de um conjunto de atitudes práticas sobre o gerenciamento de disputas que essa própria forma de ver o mundo impõe aos que a ela se apegam [...] (Geertz, 1998, p. 276).


Na perspectiva hermenêutica de Geertz (1998), o Direito não é apenas um conjunto de normas, regulamentos, princípios e valores limitados, mas é parte de uma forma de olhar e imaginar a realidade. Constituindo-se em uma das formulações culturais da vida humana, é saber local


[...] não só com respeito ao lugar, à época, à categoria e à variedade de seus temas, mas também em relação à sua nota característica – caracterizações vernáculas do que acontece ligadas a suposições vernáculas sobre o que é possível (Geertz, 1998, p. 324-325).


Assim sendo, o Direito está relacionado aos meios e aos fins, portanto, constrói a vida social em vez de meramente refleti-la, ultrapassa os meros procedimentos, expressando os pontos de vista da comunidade, e não apenas seus ecos.

Desta maneira, se o Direito é uma forma de ver o mundo, o processo sob análise traz à tona preconceitos que produzem atitudes discriminatórias. Trabalhamos para fins de exame com a categoria preconceito, porque a intensa vivência do mesmo conduz à discriminação; apesar de compreendermos as dificuldades de definição da referida categoria, nós o tomamos aqui como julgamento a priori, vazado em modelos hegemônicos que conduzem ao “reconhecimento” da diversidade como desigualdade e não como diferença.6 Consideramos que, na medida da expressão, os preconceitos causam prejuízos aos sujeitos que sofrem com ele, especialmente quando se constituem em expressão de violência.7

No processo, o preconceito aparece como uma segunda pele8 dos querelantes, revelando-se, a partir de múltiplas falas dos agentes sociais, como mecanismo eficaz, cuja lógica auxilia – por mais idiossincrático que possa parecer – a aplicação universal das inscrições constitucionais. Para tanto, candidatos, advogados, juízes e testemunhas se “esmeraram” em apontar comportamentos que consideram inadequados na relação de Astrid com Eulina, avançando sobre o terreno das convicções morais e religiosas. Como informa Oliveira:

[a]tributos morais que devem demonstrar as partes para determinar a existência [ou não] de qualquer tipo de união estável entre elas – não importando a sexualidade do casal – são frequentemente elencados como capazes de produzir convicção sobre a legitimidade de determinado vínculo conjugal que se pretenda ver reconhecido juridicamente. Neste aspecto, muitas decisões judiciais – mesmo as mais favoráveis ao reconhecimento de união entre pessoas do mesmo sexo por analogia com a união estável – caracterizam-se pelos padrões existentes de desejo (pressuposto heterossexual) de constituir família pela reprodução, honra ao compromisso de fidelidade, convivência sob o mesmo teto, entre outras características exigidas para o reconhecimento das uniões estáveis em geral (2007, p. 1).


A observação de Oliveira (2007) cabe como moldura no caso em estudo, pois é possível vislumbrar o pressuposto heterossexual a cada folha da documentação consultada, mesmo na contestação feita pelos advogados de Eulina, fato que, em tese, deveria ser evitado para melhor produzir a defesa da cliente.


De “provas” e “fatos”

A razão que enseja o processo9 e desencadeia o discurso preconceituoso é a caracterização do tipo de relação existente entre Astrid e Eulina, pois os adversários políticos10 desta alegam em suas demandas a existência de união estável entre as duas, fato contestado por Eulina, que nega peremptoriamente a existência do vínculo.

Por esse motivo, ao trazer o caso Astrid/Eulina à discussão, interessa-nos observar o modo como foi caracterizada tal relação entre a prefeita e a candidata; sobretudo, o modo como foi provada. Isto importa considerar os documentos apresentados pelas partes, mas fundamentalmente os depoimentos das testemunhas, uma vez que a prova testemunhal foi o principal meio de prova apresentado por ambas as partes. Portanto, nós nos propomos a analisar aqui, principalmente, o que se denomina a instrução do processo, isto é, a produção das provas.

No processo, caracterizar o tipo de relação entre as duas mulheres significa não apenas determinar a existência de relação amorosa homossexual – como alegam os adversários de Eulina – ou de mera amizade – como sustenta a candidata – mas sobretudo verificar se a relação entre Astrid e Eulina pode ser enquadrada em uma categoria jurídica específica: a união estável.

A impugnação da candidatura de Eulina depende visceralmente dessa caracterização, uma vez que relações sexuais esporádicas ou simples namoro/romance, conforme a Constituição Federal de 1988 e a jurisprudência dos tribunais brasileiros,11 não criam o vínculo de parentesco que provoca a inelegibilidade. Desse modo, todos os meios probatórios de que se utilizam os advogados dos adversários de Eulina são no sentido de provar: 1. a existência de relação homossexual entre Astrid e Eulina; e 2. que tal relação é – ou corresponde, por analogia, a – uma união estável.12

Para impugnar a candidatura de Eulina, os advogados dos adversários tentam provar, então, que as duas mulheres,


[...] numa relação fundada no afeto e na assistência moral, material e sexual recíproca, convivem numa relação com os mesmos contornos de uma união estável mantida entre um homem e uma mulher, quais sejam, notoriedade, publicidade, durabilidade e finalidade de constituir família [...] (fl. 43. Grifos nosso).


Afora a oitiva das testemunhas, constam do processo recortes de reportagens de revistas e jornais sobre o assunto, bem como “declarações abaixo-assinadas”. Documentos que chamam a atenção do leitor-pesquisador pelo fato de que todas as declarações possuem um cabeçalho que, em suas várias versões, apresentam poucas variações do que transcrevemos a seguir:

[n]ós, abaixo-assinados, DECLARAMOS para fins de direito que é do nosso conhecimento que as Senhoras ASTRID MARIA DA CUNHA E SILVA e MARIA EULINA RABELO DE SOUSA FERNANDES, ambas residentes e domiciliadas em endereço comum desta cidade de Viseu, cito na RUA 8 DE MAIO S/N, Bairro do MANGUEIRÃO, PRÓXIMO AO HOSPITAL DAS “BEM AVENTURANÇAS”, convivem em regime de união estável, assumindo pública e notoriamente entre nós munícipes a relação de casal-afetivo (fl. 29, destaques do original).13


No entanto, a tentativa de caracterização da relação de Astrid e Eulina enquanto união estável revela-se, à partida, problemática, uma vez que essa categoria jurídica é, a princípio, exclusiva para relacionamentos entre homem e mulher. Tal dificuldade não escapa aos adversários de Eulina:


O quadro jurídico retratado – parentesco decorrente de união estável – se ajustaria perfeitamente às normas proibitivas acima citadas [parágrafo 3º do artigo 1º da Lei Complementar 64/9014 e parágrafo 7º do artigo 14 da CF/88], se não estivéssemos diante de uma peculiaridade, pois o vínculo conjugal é de PESSOAS DO MESMO SEXO (fl. 18, destaques do original).


Apesar do esforço, as dificuldades da tarefa de encaixar a relação das duas mulheres na categoria união estável revelam, por exemplo, na variação das categorias jurídicas utilizadas para denominar a relação, que além de união estável, ela é chamada de relação homoafetiva, sociedade de fato, sociedade de afeto, relação concubinária e relação estável homossexual.15 Inscreve-se nas entrelinhas do processo aquilo que de fato não se diz, pois na impossibilidade de enquadrar Astrid e Eulina como cônjuges uma vez que hegemonicamente cônjuge pressupõe casal constituído por um homem e uma mulher adotam categorias que, embora presentes na legislação como categorias admitidas, são formas “inferiores” de pensar a relação a dois.

Em termos jurídicos, a categoria união estável refere-se à entidade familiar formada pela união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.16 Os juristas costumam caracterizar a união estável pela existência de companheirismo, que se traduz em afeição recíproca, comunhão de interesses, conjugação de esforços em benefício do casal e da prole (se houver), respeito e assistência moral e material; a união estável requer estabilidade, ligação permanente e, além disso, aparência de casamento perante terceiros, isto é, as pessoas que conviverem com o casal poderão atestar a existência da união e os companheiros deverão tratar-se socialmente como marido e mulher.17

Por ser uma categoria jurídica tradicionalmente vista a partir da ótica heteronormativa, os adversários da candidata necessitam criar mecanismos para tornar “união estável” inteligível na relação Astrid/Eulina. O que destacamos aqui não é a discussão que se trava em torno da possibilidade jurídica de se caracterizar uma relação entre duas mulheres (ou dois homens) como união estável e os argumentos jurídicos utilizados para sustentar esta possibilidade; o que se põe em relevo são quais as provas, as evidências, os fatos levados ao tribunal pelos adversários de Eulina para argumentar que a relação entre as duas é do tipo união estável e, especialmente, qual o tipo ideal (ou modelo) de união estável subjacente à escolha das provas, das evidências e dos fatos que importam ser levados ao tribunal para tornar união estável uma categoria possível para aquela relação.

Na análise, tomamos fatos e evidências não como realidades que possam ser demonstradas no processo, mas adotamos a perspectiva de Geertz, para quem os fatos “[...] não são meros objetos que se encontram espalhados pelo mundo, e que podem ser carregados fisicamente até o tribunal para uma demonstração audiovisual, [mas] sim diagramas altamente editados da realidade [...]” (1998, p. 358).

Pensamos, portanto, no processo jurídico em questão, a aplicação do Direito não como a “subsunção de um fato que foi descoberto a uma norma estabelecida” (tal como se ensina ainda hoje nas faculdades de Direito), mas como uma forma de unir aos fatos que se discutem uma concepção geral de mundo – que comporta prescrições sobre, por exemplo, o modelo apropriado de família e as formas de agir, ser, pensar e se relacionar sexualmente, consideradas adequadas para mulheres e homens. Estes fatos, é bom frisar, não nascem espontaneamente, mas são construídos e editados no processo (Geertz, 1998).

Na arena jurídica, as partes em confronto – defesa e acusação – dialogam todo o tempo com tais concepções de mundo, descrevendo os fatos de modo que possam fazer sentido (ser plausíveis, verossímeis) diante das concepções e dos ideais (que muitas vezes se traduzem em preconceitos e estereótipos) predominantes em uma sociedade (ou, pelo menos, predominantes no âmbito daquele processo). E, se por meio do processo de representação, o Direito apresenta um mundo no qual suas próprias descrições fazem sentido (Geertz, 1998), representar o relacionamento Astrid/Eulina como união estável implica descrever uma série de eventos de modo que a associação faça sentido.

Para efetuar tal descrição, os advogados dos impugnantes “falam por” Astrid e Eulina, dizendo que optaram “[...] conscientemente por uma união amorosa com outra do mesmo sexo [...]” (fl. 43) e que “[...] convive[m] em forma de concubinato [...]” (fl. 52), evidenciado no fato de que


[...] as referidas senhoras não mantêm apenas uma relação de encontros esporádicos, pelo contrário, coabitam a mesma residência, utilizam o mesmo veículo de passeio e consideram como de ambas todo e qualquer patrimônio que lhes traz comodidade. A aludida relação é tão íntima que a Sra. Maria Eulina impõe e faz cumprir a sua opinião no governo da Sra. Astrid Cunha (fl. 52. Grifos nossos).


E prosseguem dizendo que

[...] fica patente que as companheiras, social e economicamente, labutam em benefício do bem comum, ou seja, comportam-se da mesma forma que agem como um casal formado por um homem e uma mulher que coabitam um lar. E mais, a referida convivência sempre foi assumida publicamente pelas duas senhoras, isto é, crises de ciúme em público, declarações para a imprensa em defesa da relação, declarações em praça públicas e comportamento de casal comprometido na presença de terceiros no convívio do lar (fls. 52-53. Grifos nossos).


A descrição dos “fatos” e a produção de “provas” operadas pelos adversários de Eulina não significaram (apenas) demonstrar a existência de “afeto e assistência moral, material e sexual recíproca”, ou a “notoriedade, publicidade, durabilidade e finalidade de constituir família” da relação entre as duas mulheres, mas principalmente identificar quem era (ou quem assumia o papel de) homem ou mulher na discutida relação. Também explicitar quais eram os citados “mesmos contornos de uma união estável mantida entre um homem e uma mulher” que nela se reproduziam – contornos estes que, aliás, iam muito além da definição legal. Para que obtivessem êxito, a oitiva das testemunhas tornou-se fundamental.


Das “evidências” contra Eulina

Para provar os “fatos” alegados, os adversários de Eulina chamam testemunhas ao processo, as quais são interrogadas pelo juiz, pela promotora de justiça e pelos advogados (de ambas as partes). Ao todo, foram ouvidas 13 testemunhas, das quais 10 foram apresentadas em juízo pelos impugnantes como capazes de confirmar a existência da “união estável” e de atestar a “natureza homoafetiva” do vínculo em questão;18 as outras três testemunhas foram apresentadas por Eulina.

Da leitura dos depoimentos depreende-se que a oitiva das testemunhas configurou-se em um dos momentos mais tensos do litígio.19 A exaltação de ânimos, de ambas as partes, nos sugere que este foi um instante crucial na disputa. Afinal, o que estava em jogo era a “verdade”, isto é, o estabelecimento de qual das versões sobre o relacionamento entre Astrid e Eulina era a “verdadeira” (e em que medida); e os depoimentos, como principais provas apresentadas, eram decisivos.

Na guerra entre os adversários políticos, a oitiva das testemunhas era uma batalha fundamental, da qual uma das partes sairia – pelo menos nesse ponto – definitivamente vencedora: uma vez provada a existência ou não da relação homossexual entre as duas mulheres, as partes poderiam discutir, em recurso aos tribunais superiores, as consequências jurídicas da relação (matéria de direito), mas não a existência da relação (matéria de fato), que se estabelece como “verdade”.20

Além disso, podemos sugerir que, no caso de Eulina, a tensão gerada pela oitiva das testemunhas tinha origem ainda em outro motivo: para a candidata, além da disputa política, estavam em jogo a intimidade, a vida privada, espaços que foram escancarados, tornados públicos no processo por pessoas com quem conviveu, inclusive no espaço doméstico, como é o caso de uma antiga empregada.

Ao analisar os depoimentos, é necessário considerar, como foi dito, que os fatos trazidos pelas testemunhas não são noticiados de forma espontânea, mas são tecidos em conjunto com os operadores do Direito envolvidos, pois estes interrogam as testemunhas na tentativa de verificar (no caso do juiz e da promotora), de comprovar (no caso dos advogados dos impugnantes), ou de refutar (no caso dos advogados de Eulina) a veracidade dos fatos apresentados pelos adversários da candidata. Portanto, as testemunhas depõem orientadas pelas perguntas dos operadores e os fatos são revelados sob o comando da inquisição.

Embora as perguntas feitas não tenham ficado por escrito – pois é de praxe transcrever apenas as respostas – e raras são as vezes em que se faz referência expressa às perguntas, é possível observar através das respostas como os operadores conduziram as testemunhas a revelar aquilo que procuravam saber. Nos depoimentos, palavras e expressões constantemente se repetem, o que nos leva a concluir que estas tenham sido sugeridas pelos operadores; as respostas, negativas ou positivas, nos revelam as perguntas.

Os depoimentos devem, assim, ser considerados em conjunto; agrupados, indicam uma ação orquestrada pelos adversários no sentido de provar a tese referente à união estável. Mais do que isso, apontam que, na orquestra, juiz e promotora, na tentativa de desvendar a questão relativa à natureza do vínculo, são regidos pelos adversários de Eulina, isto é, seguem os caminhos indicados por estes nas impugnações. Quando procuram verificar a veracidade do que alegam os impugnantes, interrogam as testemunhas com base no “modelo de união estável” que os impugnantes começaram a forjar nas peças iniciais, o que, sem dúvida, influenciou decisivamente o resultado da lide.

É preciso ter em vista ainda, ao investigar os depoimentos, que aquilo que está escrito nos termos de audiência não é o que as testemunhas efetivamente declararam, mas o que o juiz, a partir do que elas disseram, ditou ao escrivão, o qual redigiu os termos de audiência. Nesse processo, suprimem-se, substituem-se e acrescentam-se palavras e expressões, em suma, editam-se fatos.

Quanto ao que ficou por escrito, isto sugere que o juiz indaga as testemunhas sobre o conhecimento que têm acerca da “suposta relação homoafetiva” entre Eulina e Astrid; pergunta se elas podem afirmar que a relação é (de natureza) homossexual/homoafetiva. Nos termos dos depoimentos, consta que as testemunhas responderam:


QUE, o conhecimento que tem sobre a suposta relação homo-afetiva existente entre a impugnada e a prefeita é como o povo em geral [...] (Testemunha no 5. fl. 226. Grifos nossos).


QUE, pelo conhecimento que possui em relação a impugnada e a prefeita local pode informar que existe fortes (sic) evidências do relacionamento íntimo típico do existente entre ambas, até porque tal fato nunca fora escondido [...] (Testemunha no 3. fl. 221. Grifos nossos).


QUE, tem acompanhado presencialmente tal relacionamento e pode afirmar que a tal relação é de natureza homossexual [...] (Testemunha no 9. fl. 236. Grifos nossos).


No entanto, a mera afirmação das testemunhas não é suficiente; é preciso recolher evidências da “relação homoafetiva”. O juiz pergunta então sobre “fatos”, “incidentes”, no espaço público ou doméstico – palavras ouvidas, cenas vistas (presenciadas por todos ou colhidas furtivamente) – que pudessem corroborar a conclusão sobre a “natureza homossexual” do relacionamento:

QUE, não tem conhecimento pessoal de algum fato que possa corroborar a existência da suposta relação homoafetiva com a prefeita local [...] (Testemunha no 6. fl. 230. Grifos nossos).


QUE, durante a campanha eleitoral da impugnada ao pleito de deputada estadual presenciou um comício realizado pela mesma [...] quando então a impugnada pronunciou nos seguintes termos: “[...] que ela tinha um relacionamento com a Dra. Astrid e não escondia de ninguém [...]”; QUE, além do incidente mencionado não presenciou qualquer outro que possa evidenciar a natureza do relacionamento entre a impugnada e a prefeita no sentido de ser homossexual [...] (Testemunha no 4. fl. 225. Grifos nossos).


Aqui, o juiz parece insistir se havia “algum outro incidente” que pudesse ser destacado. E este não foi o único caso:


QUE, tem conhecimento com relação a suposta relação homoafetiva entre a impugnada e a prefeita, apenas a quando (sic) da campanha eleitoral para deputada a impugnada declarou de público num comício que a sua relação ela assumia [...] menciona também que presenciou as duas em toques de mãos que presenciou apenas uma vez quando ambas estavam no interior de um carro e o declarante ladeando o veículo em um caminhão pode perceber; QUE, além do incidente mencionado da praça não ouviu qualquer outra declaração da impugnada ou da prefeita relativa a convivência em questão [...] (Testemunha no 7. fl. 231. Grifos nossos).


Uma testemunha – que informa que o povo da cidade em geral tem respeito pela relação existente entre Eulina e Astrid e que não faz comentários discriminatórios – afirma que presenciou um “toque de mãos”, fato que chamou a sua atenção “por não ser corriqueiro”, e “que o deixou chocado porque tem família” (Testemunha no 7. fl. 231. Grifos nossos).

Algumas testemunhas revelam situações menos acessíveis às pessoas em geral, passíveis de serem presenciadas apenas por quem frequentava espaços privados:

QUE [...] por várias vezes as encontrou em uma residência [...] juntas em roupas íntimas; QUE, todas as vezes que esteve na citada casa no período em questão acontecia que ao abrir a porta estavam as duas nos trajes já mencionados; QUE, nunca presenciou a impugnada e a prefeita em contatos íntimos [...] (Testemunha no 2. fl. 218. Grifos nossos).


QUE, na eleição de 2002 esteve na casa oficial da prefeita e ali se deparou com a impugnada e a prefeita em trajes de dormir e pode (sic) visualizar o interior de um quarto que as mesmas se encontravam que havia apenas uma cama [...] (Testemunha no 3. fl. 221. Grifos nossos).

Os advogados dos adversários de Eulina e a representante do Ministério Público insistem em “evidências”, como assumir (verbalmente) a relação, dormir no mesmo quarto, usar cama de casal, “termos verbais” utilizados por ambas, cenas de ciúme e, além disso, “toques íntimos”. Às perguntas formuladas por eles, está escrito nos autos que as testemunhas responderam:

QUE, pode a firmar (sic) que a impugnada e a prefeita dormiam no mesmo quarto [...] QUE, não dá para se lembrar a respeito dos termos verbais utilizados no tratamento entre a impugnada e a prefeita, mas pode dizer que eram íntimos; [...] QUE, nunca chegou a ver se a impugnada e a prefeita assumiu (sic) com palavras a relação; [...] QUE, no período não presenciou qualquer cena de ciúmes entre ambas [...] (Testemunha no 2. fls. 219-220. Grifos nossos).


QUE, a cama existente no quarto conforme descrito acima era de casal [...] (Testemunha no 3. fl. 222. Grifos nossos).


QUE, nunca presenciou entre a impugnada e a prefeita algum gesto ou toque íntimo, apenas algumas vezes quando as viu em festa estavam juntas pertinho uma da outra; [...] QUE, nunca viu o relacionamento íntimo afetivo entre ambas mais (sic) por aquilo que ouviu da impugnada e dos comentários pode (sic) concluir da existência de uma relação homoafetivo (sic) [...] (Testemunha no 5. fl. 229. Grifos nossos).


QUE, ambas dormiam no mesmo quarto [...] QUE, mesmo nos comícios tanto prefeita quanto a impugnada assumiam a relação homossexual, ressaltando que [...] ouviu da sua casa a impugnada em comício afirmando que era sapatão e que assumia [...] (Testemunha no 9. fls. 237-238. Grifos nossos).


Finalmente, três das últimas testemunhas dos impugnantes ouvidas revelaram ao juiz as evidências – presenciadas às escondidas, vistas por meio de portas entreabertas – que os operadores do Direito procuravam: “termos verbais íntimos”, “troca de carícias” e “contatos íntimos”:

QUE, no decorrer do período que ali esteve trabalhando pode (sic) presenciar numa determinada feita a impugnada e a prefeita deitadas numa rede e trocando beijos na boca cose (sic) se marido e mulher fossem num contexto de uma família, além de ter visto e ouvido a prefeita chamar a impugnada de filha e de amor [...] (Testemunha no 8. fl. 234. Grifos nossos).


QUE, o primeiro ato que presenciou de contatos íntimos entre a impugnada e a prefeita ocorreu [...] quando a declarante avisada por uma senhora de que a prefeita estaria no igarapé se beijando com uma mulher momento em que a declarante se aproximou do local e sem que as mesmas a visse (sic) presenciou ambas se beijando na boca; QUE, [...] também presenciou o momento em que a impugnada se encontrava doente no interior da residência [...] onde as mesmas moravam de roupa íntima momento em que a prefeita ali chegou adentrando ao quarto e na presença da declarante beijou a impugnada, beijando-a na boca [...]; QUE, ao longo desse período de 07 anos diversas foram as vezes em que a declarante presenciou a impugnada e a prefeita trocando carícias [...] (Testemunha no 9. fl. 237. Grifos nossos).


QUE, no decorrer desses anos presenciou diversas vezes a impugnada e a prefeita trocando carícias em termos de toques com tratamento verbal de filha e amor e no ano de 2000 [...] a declarante esteve apressadamente na residência da prefeita adentrando ao quarto onde a mesma se encontrava quando visualizou através da porta aberta do banheiro a impugnada e a prefeita despidas se beijando [...] (Testemunha no 10. fls. 240-241. Grifos nossos).

Não satisfeitos, os advogados dos impugnantes, ao se dirigirem a uma testemunha que trabalhara como empregada doméstica na casa de Astrid, insistem, procurando detalhes da vida sexual das duas mulheres:

QUE, chegou a presenciar ao chegar no seu local de trabalho pela manhã a impugnada e a prefeita saindo juntas do quarto para tomar café [...] QUE, em nenhum momento chegou a ver no interior daquele quarto algum objeto próprio de rede de Sex-chopen (sic) [...] (Testemunha no 8. fl. 235. Grifos nossos).


Mas, como vimos, para tornar Eulina inelegível, não basta provar a existência de uma relação homossexual (ou homoafetiva, expressão constante nos autos);21 é necessário provar que a relação homossexual entre Astrid e Eulina é – ou tem os “mesmos contornos” de – uma união estável. Assim, procuram-se “[...] evidência[s] de que a relação entre ambas era como se casadas fossem [...]” (Testemunha no 3. fl. 222. Grifos nossos).

O que ficou por escrito sugere que juiz, promotora e advogados dos adversários, ao inquirirem as testemunhas, procuravam saber: se havia notoriedade do relacionamento entre Astrid e Eulina na cidade; se elas moravam juntas; se entre as duas havia comunhão patrimonial; se as testemunhas poderiam atestar que a relação era contínua (ou se sabiam de separações, outros relacionamentos); quando o relacionamento começou; se a relação se prolongava no tempo; e se consideravam que Astrid e Eulina (e os filhos desta) formavam uma família.


QUE, não sabe se existe uma parceria de natureza patrimonial entre a impugnada e a prefeita [...] QUE, não sabe precisar se o tal relacionamento tem se prolongado no tempo, QUE, pode afirmar que [...] o relacionamento íntimo entre a impugnada e a prefeita era bem visível [...] e havia comentários na cidade inteira a respeito de tal fato [...] QUE, [...] se sabia da existência da residência já mencionada da impugnada e da prefeita, podendo dizer que nesse período era o único local que ambas habitavam e co-habitavam; QUE, a relação no período mencionado era estável [...]. QUE, não sabe informar desde quando iniciou essa relação; QUE, o Ministério Público indagou a testemunha se na sua visão a relação entre a impugnada e a prefeita constituía uma entidade familiar e diante do protesto dos advogados da impugnada houve a desistência da pergunta que será formulada em outra ocasião (Testemunha no 2. fls. 219-220. Grifos nossos).


QUE, não sabe se existe alguma comunhão patrimonial ou parcerias entre ambas [...] QUE, aqui no município não conhece endereço diferente entre as duas; QUE, durante o tempo mencionado a relação entre ambas tem sido contínua e o informante não conhece qualquer rompimento da mesma [...] QUE, até onde conhece a relação entre ambas é única [...] QUE, a notoriedade do vinculo referenciado é ampla na comunidade deste Município (Testemunha no 3. fls. 221-222. Grifos nossos).


QUE, pode então afirmar que era uma única residência para ambas, um mesmo quarto uma mesma cama [...] QUE, o relacionamento entre ambas sempre foi contínuo e nunca houve separação; QUE, pode afirmar que todo o povo de Viseu de norte a sul tem conhecimento desse fato [...] QUE, pode afirmar que entre a impugnada e seus filhos e a prefeita e seus sobrinhos existe uma relação tipicamente familiar [...] (Testemunha no 9. fls. 236-239. Grifos nossos).


QUE, pode afirmar que entre a prefeita e a impugnada e os filhos desta havia uma relação característica de uma família [...] QUE, pelo que conhece a convivência entre a impugnada e a prefeita como marido e mulher nunca se rompeu até dos dias atuais [...] (Testemunha no 10. fls. 240-242. Grifos nossos).


Insiste-se, sobretudo, em saber se – “na visão das testemunhas” – Astrid, Eulina e os filhos desta formavam uma família:


QUE, pode afirmar que entre a impugnada e a prefeita e os filhos daquela havia um relacionamento próprio de uma verdadeira família (Testemunha no 8. fl. 236. Grifos nossos).


QUE, não pode afirmar se na sua visão o relacionamento entre ambas incluindo o filho da impugnada era característico de uma entidade familiar (Testemunha no 11. fl. 243. Grifos nossos).


Não se trata, no entanto, de uma família “padrão”, pois é constituída por companheiras/senhoras, fato que provoca estranheza e até repulsa, uma vez que (como afirmam os impugnantes): “[...] para o bem de toda a sociedade e em defesa da moralização da ‘coisa pública’, não se pode permitir que casais de homossexuais transformem a administração do patrimônio público em verdadeiro feudo eleitoral” (fl. 53). O questionamento é sobre o “feudo eleitoral”, mas o problema parece ser os “casais de homossexuais”, que dão a impressão de mais numerosos pelo plural utilizado; assim, do ponto de vista dos adversários de Eulina, é preciso extirpar a imoralidade da “coisa pública”, fato que lembra as discussões referentes à discriminação que implica a exigência de “esconder o vivido”, de “ocultar o desejo” ou de disfarçar a relação em espaços públicos.22

Voltando aos depoimentos, se traçar um paralelo com a união estável heterossexual é importante para construir, no processo judicial, a união estável homossexual entre Eulina e Astrid, as perguntas ultrapassam a necessidade de comprovar convivência pública, contínua, duradoura, com objetivo de constituir família. Os operadores do Direito vão além, buscando identificar quem é (ou quem assume o papel de) homem ou mulher na discutida relação, procurando fatos “[...] característico[s] do relacionamento entre homem e mulher [...]”, (Testemunha no 11. fl. 244), buscando evidências de que “[...] havia um relacionamento íntimo típico de homem e mulher [...]” (Testemunha no 2. fl. 218).

Além de questionarem se Eulina exercia alguma “ingerência” na administração de Astrid, frequentemente as perguntas feitas procuravam identificar quem dava ordens aos empregados na casa, quem pagava as despesas e, por várias vezes, quem “comandava” a relação. As “provas” que os operadores do Direito procuram, os “fatos” que trazem à superfície do processo, são aqueles que podem evidenciar que a relação Astrid/Eulina era como uma relação heterossexual “normal” e, tal como nesta, havia “marido” e “mulher”.


QUE, as ordens dadas aos funcionários daquela casa que eram em número de três incluindo a declarante provinha (sic) da impugnada; QUE, não sabe dizer se havia alguma ingerência em termos de comando no governo local da prefeita [...] QUE, pode afirmar que na relação entre a impugnada e a prefeita quem exercia o mando era a impugnada; QUE, não presenciou qualquer uma outra briga entre ambas originada do fato da impugnada ser eventualmente contrariada pela prefeita [...] (Testemunha no 8. fls. 234-235. Grifos nossos).


QUE, pode afirmar acerca de evidências sobre a ingerência da impugnada no governo da prefeita e às vezes quando ocorria algum desentendimento entre ambas sobre a decisão a ser tomada quase sempre prevalecia a opinião da impugnada [...] (Testemunha no 3. fl. 221. Grifos nossos).



QUE, no relacionamento homo-afetivo existente sempre a impugnada comandou [...] QUE, a impugnada exerce um poder tão forte no governo local ao ponto (sic) de determinar a admissão e demissão de funcionários públicos [...] QUE, sempre quem andou com o dinheiro foi a impugnada e em qualquer canto que se chegava nas viagens é (sic) a mesma quem pagava as despesas [...] (Testemunha no 9. fls. 236-239. Grifos nossos).


Aos poucos, constrói-se a imagem de Eulina como “o homem da relação”, que dava ordens aos empregados da casa, que pagava as despesas, em suma, que “comandava” o relacionamento entre as duas, de tal modo que ser contrariada por Astrid é motivo para brigas. Mas o “comando” da relação extrapolava o espaço doméstico: Eulina exercia forte ingerência na administração de Astrid, a ponto de determinar a admissão e a demissão de funcionários públicos e, quando ocorria algum desentendimento entre ambas em questões da prefeitura, prevalecia a opinião daquela. Eulina é, assim, caracterizada ao longo do processo como uma mulher “masculinizada”.


A defesa de Eulina

Instada judicialmente a se manifestar sobre as impugnações à sua candidatura eleitoral, Eulina apresenta, por meio de advogados, contestação em que nega viver em união estável com Astrid. A defesa de Eulina diz que o que existe entre as duas mulheres é “uma relação firme de ideais políticos” e que “os laços que as unem são de amizade fraternal”.

Quanto à “matéria de fato” discutida, a defesa de Eulina afirma que “[...] não por preconceito [...] mas por opção, a Impugnada até o dia de hoje sempre manteve relações heterossexuais. Como prova cabal do alegado, são os frutos do seu matrimônio, os amados filhos [...]” (fl. 114).

Como se vê, a defesa de Eulina


[...] se utilizou da controversão na definição do que caracteriza a sexualidade, para reforçar um ponto de vista bastante difundido e tradicional de que a sexualidade é definida pela reprodução, consistindo em realidades necessárias ou, pelo menos, predominantemente associadas (Borborema Neto, 2007:34).


É interessante observar que este é o principal argumento defensivo que os advogados de Eulina apresentam, e que é repetido diversas vezes. Mais interessante ainda é notar que, na extensa contestação de mais de 30 páginas, dois terços são gastos com a transcrição de um longo julgado do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com o qual os advogados de Eulina pretendiam convencer o juiz quanto à outra tese (secundária): a de que não se poderia interpretar extensivamente dispositivos constitucionais que tratavam de inelegibilidade e que, portanto, Eulina e Astrid não poderiam ser consideradas “cônjuges”, ainda que uma relação homossexual entre elas existisse.

Não se pode deixar de supor que, diante de defesa tão mal elaborada – afinal, os argumentos são pouquíssimos, repetidos incansavelmente e há transcrições em excesso – permanece a dificuldade da própria defesa de Eulina de lidar com tema tão delicado e novo no cenário político brasileiro – ao que consta, esta foi a primeira vez no Brasil que a homossexualidade de políticos(as) tornou-se objeto de demanda jurídica.

Para corroborar os “fatos” alegados, Eulina apresenta três testemunhas.23 Ao juiz, consta que responderam: que desconhece(m) “[...] completamente a suposta relação homo-afetiva (sic) entre a impugnada e a prefeita [...]” (Testemunha no 12. fl. 244); que “[...] presencialmente nunca viu qualquer aproximação entre ambas que pudesse caracterizar a relação homo-afetiva (sic) [...]” (Testemunha no 13. fls. 247-248); e que “[...] entre a impugnada e a prefeita existe uma amizade natural [...] [e que] a amizade existente pauta-se na afetividade entre duas pessoas absolutamente normais [...] (Testemunha no 1. fls. 215-216. Grifos nossos).

Para refutar os fatos alegados pelas testemunhas dos impugnantes, o advogado de Eulina indaga às testemunhas se ouviram falar ou presenciaram algum fato que pudesse “denunciar” a existência da suposta relação homoafetiva, ao que respondem: “[...] nunca ouviu falar em ambientes sociais ou público (sic) do suposto caso amoroso entre a impugnada e a prefeita [...]” (Testemunha no 12. fl. 245), e

[...] nunca percebeu algum tipo de tratamento especial, troca de olhares, gestos ou qualquer outra conduta entre a prefeita e a impugnada que pudesse tirar a conclusão se as mesmas possuíam um relacionamento amoroso [...] nunca houve qualquer menção da prefeita em relação a impugnada característica de um relacionamento entre um homem e uma mulher [...] (Testemunha no 13. fl. 248).


Mas para reforçar o fato de que Eulina é uma pessoa “absolutamente normal” e que, portanto, manteve somente relações heterossexuais, é preciso referir o ex-marido e os filhos da candidata. Ao advogado de Eulina, as testemunhas respondem: “[...] [que] tem conhecimento que a impugnada já foi casada e possui filhos [...]” (Testemunha no 1. fl. 216), e “[...] [que] conhece o ex-esposo da impugnada [...] como também os dois filhos da mesma [...]” (Testemunha no 13. fl. 248). Desse modo, a defesa de Eulina não despreza o “modelo” de relação forjado pelos adversários políticos da candidata.


Do modelo que “persegue”

A demanda, para além da discussão sobre a elegibilidade de Eulina, coloca Astrid e Eulina em situação de vulnerabilidade diante dos demais protagonistas, pois se tornam alvo de “imprecações”, que no processo emergem como testemunhos, a exemplo da menção aos comentários “em tom de deboche” que se referem à Astrid como “o prefeito da cidade” (fl. 230).

No texto do processo, os chamamentos à Eulina e, por tabela, à Astrid são um mapa de desqualificação moral,24 recurso que – antes do embargo à candidatura – resulta em “julgamento moral” que produz danos irreparáveis à identidade da candidata e da prefeita. Entre os chamamentos encontrados nos autos, temos: “[...] companheiro homossexual do atual prefeito [...]” (fl. 47) que tomam as duas políticas como “homens”.

Os operadores do Direito, diante da relação entre Eulina e Astrid, utilizam, para caracterizar as duas mulheres e as situações que as envolvem, termos e expressões reveladores de preconceitos, contribuindo para uma cultura jurídico-institucional que não privilegia a democracia e desrespeita direitos, como a igualdade, a dignidade, a não-discriminação.

Para além de expressões preconceituosas, destacam-se, sobretudo, os estereótipos subjacentes às perguntas formuladas pelos operadores do Direito e às respostas das testemunhas, que caracterizam o relacionamento entre Eulina e Astrid como “típico de homem e mulher”; os estereótipos formam um “modelo” de relacionamento que “persegue” Eulina e Astrid, uma vez que o modelo procura, todo o tempo, enquadrá-las nos papéis de “marido e mulher”.

O modelo que emerge dos autos do processo é orientado pelo pressuposto heterossexual que engendra preconceitos e desrespeita o direito da sexualidade democrática,25 pois indica que o modelo de relação ideal é entre pessoas de sexo diferente, mantendo o tratamento subalterno dado usualmente aos homossexuais. Estes, pelo referido modelo, “devem” sujeitar-se a outros padrões sociais que implicam a “invisibilidade” de padrões não-hegemônicos. O não-reconhecimento da diferença em si é um desrespeito que fere os princípios constitucionais, evocados no processo para outros fins.

Mas, dito assim, pergunta-se: onde se inscreve o preconceito? A resposta está contida na forma de “enquadrar” parceiros heterossexuais e homossexuais, uma vez que, no primeiro caso, as relações são tidas como normais e, no segundo, são consideradas como não-normais, como assemelhadas ao primeiro caso e, ao descrevê-las, os protagonistas não poupam injúrias e ofensas que atingem de forma violenta Astrid e Eulina por palavras e atos. E o vocabulário denuncia a repulsa às relações e àquelas a quem se atribui identidade inferior a ponto de prejudicar a sociedade.

Perguntamos: embora o processo encerre reconhecimento que amplia horizontes em termos do movimento social, não seria possível discutir a existência ou não de união estável sem recorrer a argumentos não-democráticos? Não seria possível discutir diferença sem tomá-la como desigualdade? O respeito aos direitos humanos não seria um princípio a ser observado?

Recebido: 08/abril/2009

Aceito para publicação: 02/agosto/2009


Referências bibliográficas

Documento

Processo No 146/2004 protocolado junto à 14a Zona Eleitoral, em Viseu, no Pará.


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1 O processo analisado foi protocolado, sob no 146/2004, junto à 14a Zona Eleitoral, em Viseu no Pará, referente às ações de impugnação do registro de candidatura de Maria Eulina Rabelo de Sousa Fernandes em função da “[...] convivência, em regime de união estável, com a senhora Astrid Maria Cunha e Silva, atual gestora do município de Viseu [...]” (fl. 17). O processo resultou na impugnação da candidatura de Eulina. Denominamos o processo de Caso Astrid/Eulina" por considerarmos que o pedido de impugnação da candidatura de Eulina se dá em função de Astrid ser prefeita; também, no processo, não se “julga” unicamente Eulina, pois a prefeita está junto, mesmo quando não é nominada. Em geral, o processo é referido como Caso Eulina.

2 Sobre o assunto, consultar: Borborema Neto, 2007.

3 Viseu é um município com reduzida extensão territorial, 4.959km2, com 60 mil habitantes, dos quais pouco mais de 30 mil são eleitores. Na época do processo, era prefeita Astrid Maria Cunha e Silva, médica, que cumpria o segundo mandato como gestora municipal, pertencendo aos quadros do Partido da Frente Liberal (PFL), hoje denominado Democratas (DEM), que se situa do lado direito do espectro político brasileiro. Maria Eulina Rabelo de Sousa Fernandes era a candidata à prefeita pelo PFL, encabeçando a Coligação Amor por Viseu. Eulina é natural de Turiaçu, no Maranhão, tinha 40 anos à época da candidatura, é professora e declarou em requerimento ao Tribunal Regional Eleitoral, ao solicitar registro como candidata, ser divorciada.

4 É o caso do Recurso Especial n.o 154.857-DF, que tramitou na Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 26/05/1998, sobre a rejeição de uma testemunha pelo simples fato de ela ser homossexual.

5 Sobre a análise dos reflexos da decisão no futuro, conferir Kümpel, 2005.

6 Sobre o assunto, não é demais voltar ao clássico estudo patrocinado pela UNESCO sobre Raça e Ciência, especialmente, ao texto de Lévi-Strauss, “Raça e História” (1970).

7 Para uma discussão do assunto sob forma de ensaio a partir das relações de trabalho, consultar: Bandeira & Batista, 2002.

8 A metáfora pode não ser adequada, mas vem no sentido de demonstrar que o preconceito se manifesta “independente” do querer, ou de as pessoas se pensarem preconceituosas; ele “flui” por força de socialização nele pautada que, em momentos de conflito, torna-se exacerbado.

9 O processo aqui referido reúne as três Ações de Impugnação ao Pedido de Registro de Candidatura de Eulina. A Lei Complementar n.º 64/1990 prevê a ação de impugnação do pedido de registro de candidatura, estabelecendo as partes legítimas, os prazos e o procedimento da ação (art. 3º e seguintes). Em resumo, diz a citada lei que, após a publicação do pedido de registro do candidato, qualquer candidato, partido político, coligação ou o Ministério Público poderá impugnar o pedido, no prazo estabelecido, especificando provas e arrolando testemunhas; o candidato, o partido político ou a coligação será notificado(a) para contestar a impugnação, podendo juntar documentos, indicar rol de testemunhas e requerer a produção de outras provas; em seguida, serão inquiridas as testemunhas do impugnante e do impugnado; encerrada a produção das provas, as partes, inclusive o Ministério Público, poderão apresentar alegações; após as alegações, os autos serão conclusos ao juiz para sentença; a partir de então as partes poderão interpor recurso para o Tribunal Regional Eleitoral; após o julgamento e a publicação do respectivo acórdão, as partes poderão ainda interpor recurso para o Tribunal Superior Eleitoral. Conferir: Lei Complementar n.º 64, de 18 de maio de 1990.

10 Designamos aqui adversários de Eulina os três políticos que impugnaram a sua candidatura: 1. Dilermano Júnior Fernandes Lhamas, candidato ao cargo de prefeito por uma coligação de centro-direita, Unidos por uma Viseu Melhor II (PTB/PRP/PSDB); 2. Luis Alfredo Amin Fernandes, também candidato ao cargo de prefeito, por uma coligação de centro-esquerda, Caminhando com o Povo (PT/PMDB/PSC/PPS/PTC/PSB); 3. Isaías José Silva Oliveira Neto, candidato ao cargo de vereador. Luiz Alfredo foi eleito prefeito com mais de 98% dos votos válidos; Isaías José foi eleito vereador, sendo o mais votado entre os eleitos para o cargo.

11 Embora a Constituição Federal se refira expressamente apenas ao cônjuge, a jurisprudência dos tribunais brasileiros estendeu a inelegibilidade àqueles que convivem em união estável.

12 A existência ou não do relacionamento afetivo e seus “contornos” são apenas algumas das questões discutidas ao longo do processo; estas são, em termos jurídicos, as “questões de fato”, que se sujeitam à prova. Outras tantas, que poderiam ser classificadas como “questões de direito” – por exemplo, se a existência da relação homoafetiva torna Eulina inelegível, e que estão sujeitas à argumentação – não nos interessam para os fins do presente estudo. Sobre as questões de fato e de direito no Caso Astrid/Eulina, conferir: Borborema Neto (2007),opus cit.

13 Nas declarações, os cabeçalhos apresentam pouca variação, fato que permite supor uma ação coordenada no sentido de provar a existência de “relação de casal-afetivo”, conforme a terminologia usada no documento.

14 Trata-se das Inelegibilidades; o texto do parágrafo 3º do artigo 1º desta lei é idêntico ao do parágrafo 7º do artigo 14 da CF/88, citado anteriormente.

15 Embora saibamos do conteúdo diferenciado das categorias no campo do Direito, não nos propomos a discuti-las; estamos interessadas em desvendar o conteúdo que encerram, pois as partes litigantes, ao buscarem provas para impugnar a candidatura de Eulina, enquadraram as relações afetivas não-hegemônicas em uma moldura “disforme”.

16 Esta é a definição do Código Civil de 2002, segundo o qual: “Art. 1723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Conferir: Código Civil Brasileiro, Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.

17 Nesse sentido, consultar Diniz, 2007.

18 Entre as testemunhas apresentadas pelos impugnantes estavam cinco pessoas que trabalharam com Astrid e/ou Eulina durante campanhas eleitorais, duas pessoas que foram funcionárias da prefeitura durante a gestão de Astrid e uma mulher que trabalhara na casa de Astrid como empregada doméstica.

19 É o que se infere ao observarmos, por exemplo, que no momento da audiência quase todas as testemunhas sofreram tentativas (em geral sem sucesso) de impugnação por parte dos advogados de Eulina; que os advogados de Eulina solicitaram a imediata decretação de prisão de uma testemunha, alegando que ela mentia (no que não foram atendidos); que a promotora requereu cópia dos depoimentos de duas testemunhas (de defesa de Eulina) para a instauração de inquérito policial por suposto crime de falso testemunho; e, além disso, que os advogados dos impugnantes pediram que Eulina fosse retirada do local para a oitiva de uma testemunha que se sentiria intimidada pelos olhares da candidata, momento em que os advogados de defesa contestaram tal possibilidade de intimidação, afirmando, antes de tudo, que a impugnada é mulher, que não possui antecedente criminal nem espírito belicoso, e ameaçaram se retirar junto com a candidata, caso esta fosse obrigada a sair.

20 Nos tribunais superiores discute-se apenas matéria de direito; não cabe rediscussão de matéria de fato, isto é, das provas produzidas, conforme as súmulas 279 do Superior Tribunal Federal (STF) – “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário.” – 07 do Superior Tribunal de Justiça – “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”

21 É interessante a repetição constante da expressão “relação homoafetiva” nos depoimentos das testemunhas. Sobre a questão, Borborema Neto (2007) supõe que, como o termo de audiência é ditado pelo juiz, a opção por “homoafetividade” deva ter partido do próprio juiz, provavelmente colhido dos textos das impugnações em que o termo é citado.

22 Sobre tratamentos discriminatórios, consultar Lopes, 2005) Assunto também discutido pelo autor ao prefaciar o trabalho de Rios (2001), A homossexualidade no Direito.

23 As testemunhas de Eulina são um deputado federal, uma ex-secretária municipal na gestão de Astrid e uma funcionária da prefeitura.

24 Sobre desqualificação moral em processos criminais, consultar Carrara & Vianna, 2004.

25 Sobre o assunto, consultar Rios, 2006.