Sexualidad, Salud y Sociedad

REVISTA LATINOAMERICANA

ISSN 1984-6487 / n.1 - 2009 - pp.202-209/ www.sexualidadsaludysociedad.org



MASON, Gail. 2002. The Spectacle of violence: homophobia, gender and knowledge.London & New York: Routledge. 170 p.


Gustavo Santa Roza Saggese

Bacherel em Ciências Sociais

Mestrando em Saúde Coletiva (IMS/UERJ)


> gsrsagesse@gmail.com

  

Em seu livro The Spectacle of Violence: homophobia, gender and knowledge, Gail Mason se propõe a discutir o problema da violência contra homossexuais e, em especial, contra as mulheres lésbicas, através de um viés pós-estruturalista, levando em conta, principalmente, as contribuições de Michel Foucault e do pensamento feminista, bem como outros autores contemporâneos que trabalham com questões relacionadas a gênero, sexualidade e violência.

Ao longo da introdução, somos convidados a compartilhar da experiência que a autora viveu durante uma temporada de trabalho em um abrigo feminino no extremo norte da Austrália. Lá, conta ter conhecido um casal de mulheres que chegaram juntas, trazendo com elas seus respectivos filhos. Amantes há algum tempo, começaram a economizar e planejar sua fuga em virtude da ira de um dos ex-maridos que, ao descobrir o caso, tornou-se extremamente violento e passou a persegui-las.

Mason afirma ter começado a perceber que, embora a história tivesse muito em comum com outras situações envolvendo mulheres heterossexuais, havia um ponto que fazia toda a diferença: a violência descrita pelo casal em questão continha tanto elementos de demonização da homossexualidade quanto de desigualdades de gênero. A partir daí, a autora dá início ao questionamento que vai permear toda a sua obra: seria suficiente enxergar a violência através de categorias que trariam conforto e alívio, ou haveria a necessidade de reconhecer as maneiras pelas quais diferentes experiências de violência podem exceder, ou mesmo contradizer, interpretações cômodas?

Logo no início, Mason nos dá uma pista da posição que prefere adotar, dizendo-se desconfortável com a representação da violência homofóbica como um problema particular, descolada da violência de gênero e facilmente explicável como produto de uma cultura anti-homossexual. Além disso, a autora afirma sentir que, assim como a violência perpetrada contra mulheres heterossexuais, a violência relatada por gays e lésbicas provavelmente tem implicações que vão além da questão de um controle individual ou social. Desse modo, se propõe a examinar em conjunto o problema da violência e hostilidade relacionadas à homofobia ao mesmo tempo em que destaca as formas pelas quais diferentes identidades, corpos e sistemas de conhecimento interagem na representação, na experiência e nos efeitos dessa violência.

Suas respostas estão embasadas em uma pesquisa empírica realizada na Austrália, que envolveu uma série de entrevistas com um grupo diverso de mulheres lésbicas, focadas nas experiências e percepções de hostilidade verbal e violência física ou sexual, relacionadas de alguma forma à sua sexualidade. De acordo com a autora, tais entrevistas permitiram a ela ressaltar as qualidades interativas e capacidades constitutivas dessa violência – que ela prefere chamar de “violência relacionada à homofobia”, em vez de “violência homofóbica”, por acreditar que o sentimento anti-homossexual raramente é a única explicação para a violência que gays e lésbicas sofrem. Para Mason, não só a homofobia estaria permeada por pressupostos sobre gênero, como também a representação e experiência dessa violência seriam moldadas por outras especificidades e diferenças, como raça, idade e classe.

Em cada capítulo, Mason trata de uma questão em particular, relacionada aos contextos de violência que pretende examinar, problematizando a interação de discursos sobre gênero e sexualidade na violência relatada por lésbicas; o conceito de “interseccionalidade”; o “controle” ou “administração” do risco de violência; a contribuição do conhecimento que se tem acerca da violência relacionada à homofobia para a formulação de sujeitos específicos; e uma possível articulação entre as teorias foucaultiana e feminista a fim de elaborar uma relação entre violência e poder.

No primeiro capítulo (“Looking through experience”), Mason se utiliza do modelo foucaultiano do panoptismo a fim de trabalhar a interação entre corporalidade, visibilidade e regulação, criticando a tendência da metodologia pós-positivista em tratar a experiência como uma forma auto-evidente de conhecimento. Ao apoiar-se nesta perspectiva, Mason aponta para a necessidade de enxergar o objeto de estudo como parte de uma rede de fenômenos na qual a mera observação não é suficiente. Em outras palavras, há um sujeito interativo, que pode ser fonte de saber, mas que constrói esse saber junto ao observador. Acrescido a essa primeira crítica, fala da contribuição do pensamento feminista para a descentralização do paradigma masculino na pesquisa. No entanto, deixa claro a permanência de um ideal muito semelhante ao pós-positivismo que, ao defender um “jeito feminino de conhecimento” (calcado na feminist standpoint epistemology), continuou a essencializar categorias, advogando uma realidade social pré-concebida e pré-discursiva. A partir deste ponto, Mason delineia o caminho de sua pesquisa, apresentando as categorias de identidade sexual como produto desse regime de controle e vigilância e o relato de suas entrevistadas como forma de acesso a uma realidade construída através do discurso, isto é, uma comunicação verbal de determinadas formas de violação, dor, insulto ou injúria, ressaltando a importância da experiência para o desenvolvimento do senso do self ou de uma constituição identitária, no que tenta conduzir o leitor a uma perspectiva fundamentalmente interpretativista.

No capítulo 2 (“Disorder”), Mason se dedica a explorar as diversas facetas que a hostilidade e violência contra lésbicas pode assumir, embasando sua discussão em quatro categorias que ela chama de “repertórios de desordem”: dirt (“sujeira”), hetero-sex (“sexo hetero”), butch (“sapatão”, ou “fanchona”) e boy/girl (“garoto/garota”, categoria que, segundo ela, reflete uma espécie de “androginia performática”). Através desses repertórios, pretende identificar o tipo de discurso que a violência promove, além de acreditar que representam as vias pelas quais a violência é experienciada como manifestação do sentimento homofóbico.

A autora dá início ao capítulo refletindo acerca de várias questões relacionadas às especificidades da violência anti-lésbica, e diz estar convencida de que a mesma necessita ser conceitualizada como uma conjunção entre gênero e sexualidade, deixando patente seu descontentamento com a escassez de uma literatura feminista que problematize as particularidades da violência perpetrada contra mulheres não-heterossexuais, além do pressuposto dessa mesma literatura de que a sexualidade manifesta-se através de regimes de gênero, e não em conjunção com eles. A literatura sobre violência homofóbica, por sua vez, faria exatamente o oposto, mas também de modo equivocado: superestimaria a sexualidade em detrimento do gênero.

Mason segue com seu raciocínio traçando uma breve introdução aos repertórios de seu campo, reforçando a idéia de que a violência contada por suas entrevistadas refletiria uma visão do lesbianismo como expressão de uma identidade de gênero e desejo sexual “em desordem”. Outras considerações importantes que a autora faz dizem respeito à correlação entre visibilidade e vulnerabilidade e à constatação de que a maioria esmagadora dos incidentes foi perpetrada por homens.

O primeiro repertório que Mason desenvolve é o da categoria dirt. Utilizando-se das idéias de Mary Douglas sobre poluição e contaminação, a autora sugere que o corpo homossexual, ao transgredir as expectativas sociais, estaria rompendo com as tradições judaico-cristãs relacionadas a casamento e procriação e, assim, caindo numa ambigüidade vista como perigosa e, muitas vezes, “suja”. O corpo lésbico seria ainda mais sujo, por abarcar não só as noções de desordem da homossexualidade, mas também as imagens de secreção e falta de higiene ligadas ao corpo feminino, como sangue menstrual, fluidos vaginais, gravidez e parto. Dessa forma, gestos de violência funcionariam como uma tentativa de fugir de um possível “contágio”.

O segundo repertório examinado é o de hetero-sex. Mason acredita que o corpo lésbico, ao reivindicar um corpo semelhante com o intuito de satisfação sexual, estaria pondo em xeque a relevância da heterossexualidade masculina e, mais especificamente, do pênis e da penetração. Apoiando-se na idéia de “matriz heterossexual”, formulada por Judith Butler, e também na crítica ao estruturalismo de Lévi-Strauss, elaborada por Luce Irigaray, a autora afirma que uma sociedade constituída tendo por base uma “mente heterossexual” seria incapaz de aceitar a união sexual entre duas mulheres, e qualquer tentativa neste sentido deveria ser imediatamente coibida e “corrigida”.

O terceiro repertório (butch) trata da idéia de uma ruptura com a ordem de gênero, ocasionalmente encontrada em lésbicas que assumem trejeitos masculinizados. De acordo com Mason, a figura da “sapatão”, ou “fanchona” – como seria chamada no contexto brasileiro ou camionera, na Argentina – seria a forma mais visível da recusa à heterossexualidade e, por conseqüência, das normas de gênero, também observada no quarto e último repertório (girl/boy), onde um senso de ambigüidade se faz presente e acaba por causar desconforto ao não se acomodar facilmente nas categorias naturalizadas de “feminilidade” e “masculinidade”.

Embora cada um dos repertórios descritos tenha suas particularidades, Mason acredita que todos têm como ponto comum a ansiedade que o lesbianismo provoca na “mente heterossexual”. Ao fechar o capítulo, a autora nos brinda com um insight que sintetiza o pensamento desenvolvido até aqui: “a violência pode funcionar para nos lembrar que a sexualidade lésbica perturba as normas da vida sexual e gendrada, mas ao fazê-lo, trai a permeabilidade das próprias fronteiras e categorias que mantêm esta visão de mundo”1 (p. 57). Dito de outra forma, a violência poderia ser vista ao mesmo tempo como lembrança e reforço das regras rompidas pela sexualidade lésbica. Porém, só é possível rompê-las em virtude da fragilidade do regime que as institui.

Dando continuidade à sua análise crítica, no capítulo 3 (“Different territory: a question of intersectionality?”), Mason retoma a discussão acerca da violência ao problematizar o conceito de interseccionalidade, questionando até que ponto ele seria capaz de trabalhar efetivamente a interação entre regimes de diferença na exteriorização e experiência dessa mesma violência. Para tal, a autora se utiliza de alguns relatos obtidos em seu campo, que refletiriam uma possível correlação entre gênero, raça e sexualidade na constituição de atos violentos.

De acordo com Mason, a adoção da interseccionalidade no pensamento feminista teria emergido como uma forma de compreender a relação entre violência e diferença a partir de uma perspectiva “anti-essencialista”, na medida em que reconheceria a diferença como uma soma de várias características (por exemplo, gênero e raça). No entanto, a autora acredita que a idéia de interseccionalidade não seria capaz de conceitualizar a maneira pela qual as identidades funcionam em conjunto, pois suporia um corpo “natural” e pré-existente e, dessa forma, uma perspectiva essencialista continuaria a se fazer presente. No lugar de uma interseção, portanto, Mason propõe uma via alternativa: a constituição mútua, adotando um “modelo cultural de corpo”: gênero, raça e/ou sexualidade não estariam apenas em interseção uns com os outros, mas funcionariam como “veículos de articulação” entre si.

Dado o exposto, a autora sugere a existência de um processo em que a violência se constrói através de uma estrutura de sobreposição, em que o corpo aparece como o significante mais imediato e visível da diferença. Apesar disso, Mason tem a preocupação de alertar o leitor que o processo de constituição mútua não é de todo desprovido de problemas, pois raça, gênero e outras variáveis não só se articulam entre si, mas também “colidem” umas com as outras, em uma série de contradições e incomensurabilidades próprias a cada contexto.

Em “Body maps: envisaging homophobia, violence and safety”, quarto capítulo do livro, Mason aponta para a necessidade de posicionar a violência relacionada à homofobia dentro de um discurso sobre visibilidade sexual. Sua proposta se baseia em duas questões principais: a percepção subjetiva do risco e a negociação que daí advém, de modo a construir “mapas de segurança” que possibilitem o trânsito pelos diversos espaços da esfera social. Apoiando-se em Foucault, Mason destaca a ambigüidade do processo de consolidação de categorias e práticas sexuais: ao mesmo tempo em que permitiriam uma auto-percepção mais bem definida, seriam também uma “armadilha” a partir do momento em que se fazem visíveis. Desse modo, estratégias de negociação seriam fundamentais, já que, diferentemente da maior parte das manifestações de heterossexualidade, a homossexualidade permanece estigmatizada e a decisão por “assumir-se” ou “esconder-se” envolveria uma cuidadosa avaliação dos riscos e benefícios.

Nesse sentido, a noção de “mapas de segurança” ou “mapas corporais” aparece como norteadora do problema. Mason os define como “uma matriz de atributos e relações em constante mutação, personalizada, ainda que compartilhada, que os indivíduos empregam a fim de circular no espaço público e privado”2 (p. 84). Ao construir esses mapas, o conhecimento acerca das variáveis que poderiam torná-los mais ou menos vulneráveis aos perigos potenciais da violência se torna extremamente pertinente. Fatores como hora do dia, expressão de afeto em lugares públicos e aparência corporal seriam fundamentais na negociação do risco, conforme corroboram várias de suas entrevistadas.

Um ponto que merece destaque é a conclusão a que Mason chega a partir da perspectiva foucaultiana sobre a auto-regulação que, dentre outras coisas, pressupõe a incorporação de pequenas “tecnologias do self” no cotidiano. Embora a autora continue a entender as práticas de segurança como mecanismos de regulação da vulnerabilidade, ela acredita que, ao mapear constantemente seus corpos, gays e lésbicas também estariam assumindo o controle de situações em que sentimentos hostis podem aparecer.

No capítulo 5 (“Backlight and shadow: constituting danger), Mason trabalha com a idéia desenvolvida no capítulo anterior, examinando as conseqüências da violência nos discursos que constituem o significado da homossexualidade. A autora propõe uma tese que consiste em dois argumentos básicos: primeiramente, que o tipo de violência sofrido por gays e lésbicas promove tanto uma dor corporal quanto psicológica, mesmo que não envolva ataques físicos. Em segundo lugar, Mason destaca que apesar de contribuir para a definição do que é homossexualidade, a violência não consegue dizer a suas vítimas quem elas são enquanto homossexuais.

A questão central a que Mason se atém é: o que acontece com o conhecimento produzido pelas marcas da violência? Para respondê-la, a autora se apóia no trabalho de Hannah Arendt, apontando a violência como constituinte, mas não como determinante do processo de subjetivação. A autoridade dessa violência estaria sempre confrontada com algum tipo de resistência, pois no processo de subjetivação haveria necessariamente uma ressignificação das atitudes injuriosas. Nesse sentido, Mason traça uma linha de interseção entre a teoria de Arendt e a interpretação foucaultiana da idéia de resistência, reconfigurada por Butler. Ao mesmo tempo em que a violência relacionada à homofobia poderia ser tomada como uma espécie de “luz de fundo” que perpassa a parede externa do panóptico, produzindo categorias e tipologias degenerantes, estaria inevitavelmente condicionada à continuidade do processo subjetivo, isto é, moldada pela resistência – ainda que a autora questione seus limites.

Em suma, Mason afirma que a violência seria uma interpretação indesejável da homossexualidade, porém incapaz de atuar diretamente na forma como essa categoria identitária é experienciada por gays e lésbicas, ou mesmo reconhecida por outras pessoas. Ainda que o discurso da violência possa tornar o homossexual visível a partir de um certo espectro, a visibilidade estaria restrita pela inabilidade da “luz de fundo” do panóptico em nos revelar a homossexualidade enquanto uma característica permeada por diferentes qualidades e configurações.

No sexto e último capítulo (“Violence: an instrument of power”), Mason se utiliza de toda a discussão prévia a fim de estabelecer um nexo entre violência e poder, que permita futuramente uma articulação das principais contribuições das teorias feminista e foucaultiana. Ainda que ambas possam ser consideradas mutuamente exclusivas no que tange a questão da violência, a autora acredita que a tensão esteja menos no plano de paradigmas irreconciliáveis do que na ausência de um caminho identificável comum. O modelo foucaultiano, por exemplo, não teria necessariamente que excluir as implicações opressivas ressaltadas pelo feminismo: a “hipótese produtiva” poderia alinhar-se à “hipótese repressiva”, pois segundo a autora, a noção de poder de Foucault não descarta a opressão. Recusa-se, simplesmente, a reduzir o poder a uma questão meramente opressiva, uma vez que o mesmo seria dependente do quanto o sujeito marginalizado permite ser observado e definido por aqueles que ocupam posições normativas.

A partir deste pensamento, Mason propõe uma visão de poder na qual a instrumentalidade exerce um papel central, limitando a capacidade da violência em modular a maneira como vemos e passamos a conhecer determinadas coisas. A violência seria, portanto, um espetáculo, indo além da questão da prática, pois a autora a considera um mecanismo através do qual nos tornamos capazes de distinguir, e não somente observar. Nesse caso, a metáfora do panóptico aparece mais uma vez como fio condutor da questão: atos de violência seriam como “lentes”, que permitiriam uma maneira muito específica de compreender e modular o observável.


1 (...) violence may function to remind us that lesbian sexuality breaches the norms of sexual and gendered life, but, in doing so, it betrays the permeability of the very boundaries and categories that maintain this view of life.

2 (...) an ever-changing, personalised, yet shared, matrix of attributes and relations that individuals employ to make their way in public and private space.