Sexualidad, Salud y Sociedad

REVISTA LATINOAMERICANA


ISSN 1984-6487 / n.3 - 2009 - pp.54-81 / www.sexualidadsaludysociedad.org



De cores e matizes: sujeitos, conexões

e desafios no Movimento LGBT brasileiro



Regina Facchini

Doutora em Ciências Sociais

Pesquisadora colaboradora do Pagu

Núcleo de Estudos de Gênero

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP


> rfacchini@uol.com.br



Isadora Lins França


Doutoranda em Ciências Sociais

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP


> isadora.lins@uol.com.br


De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro

Resumo: Neste artigo, percorremos brevemente os 30 anos de trajetória do movimento conhecido atualmente no Brasil como LGBT (de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), tendo como pano de fundo o complexo processo pelo qual vem constituindo seu sujeito político em meio a outros atores sociais, notadamente os oriundos do Estado e do mercado direcionado a homossexuais. Mais do que isso, procuramos oferecer elementos para refletir sobre o percurso desse movimento e seu impacto social em face das reviravoltas que acompanharam as transformações que têm se aplicado à homossexualidade – entendida como lugar social – no decorrer das últimas décadas no Brasil. Embora um breve histórico do movimento seja traçado e seus desafios atuais informem a análise aqui empreendida, a mesma se concentra mais especificamente no período que vai de meados dos anos 1990 a meados dos anos 2000.

Palavras-chave: homossexualidade; movimentos sociais; identidades coletivas; Estado; mercado


De colores y matices: sujetos, conexiones y desafíos en el movimiento LGBT brasileño

Resumen: En este artículo hacemos un breve recorrido por los 30 años de trayectoria del movimiento actualmente conocido en el Brasil como LGBT (lesbianas, gays, bisexuales, travestis y transexuales), teniendo como telón de fondo el complejo proceso en el cual viene constituyendo como sujeto político entre otros actores sociales, especialmente los que tienen origen en el Estado y en el mercado direccionado a homosexuales. Más que eso, procuramos ofrecer elementos para reflexionar sobre el recorrido de este movimiento y su impacto social frente a los giros que han acompañado las transformaciones han sido aplicadas a la homosexualidad –entendida como lugar social– en el Brasil, en el transcurso de las últimas décadas. Aunque se trace un breve panorama histórico del movimiento y sus desafíos actuales informen el análisis efectuado aquí, el mismo se concentra más específicamente en el período que va de mediados de los años 1990 a mediados de la primera década del siglo XXI.

Palabras clave: homosexualidad; movimientos sociales; identidades colectivas; Estado; mercado


On colors and shades: subjects, connections and challenges in the brazilian LGBT movement


Abstract: In this article we briefly review thirty years of the social movement known in Brazil as LGBT (Lesbians, Gays, Bisexuals, Travestis and Transexuals), examining the complex processes by which its political subject is constituted, in relation to other social actors, particularly those coming from the State and the so’called pink market. We provide elements to think about the trajectory of the LGBT movement and its social impact, in relation to contemporary changes in how homosexuality is understood in Brazil. Although we refer to the history of the LGBT movement, as well as its dilemmas today, our analysis focuses specially on the period from mid-1990’s to mid-2000.

Keywords: homosexuality; social movements; collective identities; State; market





De cores e matizes: sujeitos, conexões

e desafios no Movimento LGBT brasileiro



Em 2008, realizou-se em Brasília uma Conferência Nacional GLBT inédita, com o tema "Direitos humanos e políticas públicas: o caminho para garantir a cidadania de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais”, precedida de reuniões regionais e estaduais. O conjunto das Conferências Estaduais, realizadas entre março e maio de 2008, contou com cerca de 10 mil participantes e resultou num total consolidado de 510 propostas, avaliadas e complementadas na etapa nacional. Na noite de 05 de junho, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, ministros e representantes do movimento discursaram na solenidade de abertura da Conferência Nacional, causando grande impacto na mídia e no movimento. Nos dias que se seguiram, 569 delegados, além de observadores e convidados, reuniram-se em torno de eixos temáticos, e a plenária final aprovou 559 propostas. O Brasil é o primeiro país a promover uma atividade desta natureza que, realizada no ano em que se comemoraram os 30 anos do movimento LGBT no Brasil, selou o compromisso do Estado brasileiro com os direitos de LGBT (Brasil, 2008).

O então chamado “movimento homossexual” nasceu no Brasil em finais dos anos 1970 e transformou-se nos últimos anos em um dos movimentos sociais de maior expressão no país. Em 2008, os eventos de rua que celebram o Orgulho LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) ocorreram em todo o país, em aproximadamente 147 localidades.1 A maior dessas manifestações, a Parada de São Paulo, levou às ruas, em sua décima edição, 3 milhões de pessoas, consolidando-se como o maior evento do gênero no mundo. Existem atualmente nove redes nacionais2 de organizações e/ou ativistas no Brasil, sendo que a maior delas, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), contava, no final de 2008, com 203 grupos LGBT afiliados e 58 organizações colaboradoras espalhados pelas cinco regiões do país.3

As reivindicações do movimento têm se visibilizado a ponto de suscitarem projetos de lei em todos os níveis do Legislativo, assim como a formação de Frentes Parlamentares em âmbito nacional e estadual. Suas estratégias diversificaram-se de modo a incorporar a demanda por direitos via Legislativo e Judiciário,4 o controle social da formulação e da implementação de políticas públicas, a produção de conhecimento em âmbito acadêmico,5 igrejas para homossexuais, setoriais em partidos políticos e até a construção de alternativas de política lúdica, como as paradas e a organização de saraus, festivais e mostras de arte e a apropriação de manifestações já existentes na “comunidade”, como concursos de “miss gay” ou “trans”.

Suas organizações também se diversificaram, abarcando grupos como judeus e advogados gays e universitários pró-diversidade sexual, e algumas especializaram-se não só na defesa e na mobilização mais específica de algum dos “segmentos”, mas tematicamente, de modo que algumas delas se dedicam mais especificamente à organização de eventos de visibilidade, outras à defesa jurídica, outras ainda à atuação acadêmica, outras ao advocacy,6 além das que priorizam o trabalho no enfrentamento à epidemia do HIV/aids. Ainda, apesar de existirem grupos que se identificam como “mistos” e têm uma atuação mais multifacetada, há as organizações mais específicas que se dedicam às famílias LGBT, aos pais e às mães de homossexuais, aos adolescentes LGBT, aos negros LGBT.

Este artigo contextualiza e analisa alguns dos impasses colocados atualmente para esse movimento, com a finalidade de colaborar para uma reflexão sobre suas potencialidades e limites e sobre questões pertinentes a este e a outros movimentos sociais. É também um exercício de articulação de questões abordadas por cada uma das autoras em trabalhos recentes (Facchini, 2005, 2006, 2008; França, 2006a, 2006b, 2007a, 2007b; Simões & Facchini, 2009). A adesão a uma perspectiva que enfatiza as conexões entre movimento social e outros atores sociais vem permeando tais trabalhos, propiciando uma discussão conjunta que procuramos esboçar neste texto. Embora um breve histórico do movimento seja traçado e seus desafios atuais informem a análise aqui empreendida, esta concentra-se mais especificamente no período que vai de meados dos anos 1990 a meados dos anos 2000.



Do homossexual ao LGBT: um breve histórico

A categoria “homossexual” é bastante recente mesmo nas chamadas sociedades ocidentais e seu surgimento integra os próprios processos de consolidação dessas sociedades. A adoção do termo para designar pessoas que mantinham relações sexuais com outras do mesmo sexo fez parte de um movimento geral no sentido de criar categorias e espécies ligadas a comportamento sexuais, movimento este especialmente impulsionado pelas práticas legais (Weeks, 1989) e pela categorização médica no século XIX, num processo de construção da hegemonia do saber médico ocidental sobre outros saberes (Foucault, 1979).

Durante o século XX, a categoria “homossexual” popularizou-se, chegando ao senso comum. Não podemos dizer, porém, que as classificações médicas e/ou legais foram simplesmente transpostas para a população em geral, que as adotou prontamente. Todo o processo relativo à categorização de um “comportamento homossexual” foi permeado, desde então, por conflitos com categorias locais e por apropriações e traduções dessas classificações. Nessa direção, o movimento homossexual não pode deixar de ser visto como um dos atores sociais que disputam o sentido do termo.

No caso brasileiro, a literatura (Fry, 1982; Guimarães, 2004; MacRae, 1990) situa o surgimento do movimento homossexual em meio a um processo de disputa, ainda recente, entre dois modelos de classificação da sexualidade: o tradicional em que os parceiros numa relação entre pessoas do mesmo sexo são hierarquizados e respectivamente relacionados a papéis sociais e sexuais relativos aos dois sexos biológicos (bicha-bofe, fancha-lady)* e o moderno em que os parceiros são vistos a partir de uma lógica igualitária e a orientação do desejo se torna mais importante para nomeá-los do que papéis sociais relativos a masculino e a feminino ou à atividade e à passividade sexual (homossexual-homossexual, entendido(a)-entendido(a) ou gay-gay). Nesse sentido, o movimento ao mesmo tempo colaboraria para expandir – assim como dependeria da expansão de um modelo moderno de classificação da sexualidade, que tomaria por base o sexo do(a) parceiro(a), e não mais a atividade ou a passividade.

A fundação do primeiro grupo brasileiro a afirmar uma proposta de politização da questão da homossexualidade, o Somos, de São Paulo, ocorreu em 1978, num contexto marcado pela contracultura, pela ditadura militar, por intensa atividade de grupos de esquerda e pelo surgimento e a visibilização das versões modernas do movimento feminista e negro (MacRae, 1990). O grupo nasceu já marcado por uma polarização entre a “esquerda” e a “autonomia das lutas das minorias” que, posteriormente, seria responsável por alguns de seus graves conflitos internos. Num primeiro momento, o Somos era composto exclusivamente por homens, passando posteriormente a ser frequentado por mulheres, que se organizam em grupo separado – o Grupo Lésbico-Feminista – a partir de 1981.

Segundo Edward MacRae, o ideário do grupo carregava muito da contracultura e do espírito contestatório e antiautoritário da época, produzindo um discurso voltado para uma transformação mais ampla, compreendendo a homossexualidade como estratégica para a transformação cultural, sendo capaz de corroer uma estrutura social a partir das margens. Convivia com essa preocupação, por outro lado, uma estratégia de valorização cotidiana de termos socialmente vistos como negativos, em que se utilizavam as palavras “bicha” e “lésbica” de forma positiva. Ainda incorporando em parte as tendências políticas da época, o grupo esforçava-se por preservar relações horizontais, tanto no que diz respeito à sua organização política não-hierárquica, quanto no combate às assimetrias entre homens e mulheres, à polarização ativo/passivo e aos então considerados estereótipos efeminado/ masculinizada.

Outros grupos surgiram nesse período, e frases como “o movimento homossexual é revolucionário e não apenas reformista!” marcavam a ênfase do momento, em que se formularam muitas das principais demandas trazidas pelo movimento até hoje: luta contra a violência e a discriminação voltadas para homossexuais, pelo “casamento homossexual”, pelo tratamento digno na mídia, por educação sexual nas escolas e contra a patologização de homossexuais.

Esse primeiro momento encerrou-se antes de meados dos anos 1980, com uma drástica redução na quantidade de entidades e mudanças na distribuição geográfica dos grupos mais influentes, bem como na postura política mais geral do movimento. Vários fatores podem estar implicados nessa redução quantitativa: o surgimento da epidemia da aids e seu poder de desmobilização das propostas de liberação sexual; o fato de que muitas lideranças tenham se voltado para a luta contra a epidemia; o próprio fim do jornal Lampião, um dos principais meios de comunicação para o movimento; o novo contexto de democracia do país que exigia uma mudança de perfil para a continuidade dos grupos, pois não oferecia mais o “inimigo” externo que unificava todos contra “o poder”. Ao contrário, o fim da ditadura acenava com a abertura de canais de comunicação com o Estado, embora, em relação ao movimento homossexual, tais canais só tenham surgido quando se compreendeu que a epidemia do HIV era um problema de saúde pública e não apenas de “grupos de risco”. Em tempos de aids, vista como “câncer gay”, não se tratava mais de afirmar a necessidade de “abrir abscessos” e de gerar “cânceres” no corpo social.7

A partir de meados dos anos 1980, é possível observar uma mudança da concentração de grupos do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, para o eixo Rio de Janeiro-Nordeste e a presença marcante de dois ativistas: João Antônio Mascarenhas (articulador inicial do grupo de intelectuais que compôs o jornal Lampião da Esquina e fundador do grupo Triângulo Rosa) e Luiz Mott (fundador do Grupo Gay da Bahia GGB).8 Suas atuações demonstram um menor envolvimento com projetos de transformação social, num sentido mais amplo, e uma ação mais pragmática, voltada para a garantia dos direitos civis e contra a discriminação e a violência dirigidas aos homossexuais. Tratava-se de um modelo de atuação que, parafraseando um documento do GGB, colocava “a causa gay em primeiro lugar”. A valorização de relações com o movimento em âmbito internacional e a presença de preocupações como ter uma sede, registrar oficialmente o grupo e estabelecer uma diretoria com cargos e funções claramente definidos podem ser interpretadas no sentido de denotar uma menor resistência à institucionalidade características que também se destacam nesse período.

A forte associação, de caráter negativo, entre aids e homossexualidade, que teve lugar no início da epidemia, levou vários grupos a optarem por não trabalhar prioritariamente com a luta contra a aids. Outros conseguiram conjugar a relação entre legitimidade da homossexualidade e atuação contra a epidemia e têm seu desempenho reconhecido na bibliografia sobre a “construção de uma resposta coletiva à aids”. Nesse período, muitas vezes visto como de desmobilização do movimento, foram obtidas conquistas, como a retirada da homossexualidade do código de doenças do Instituto Nacional de Previdência Social. A adoção e a disseminação da ideia de “orientação sexual” também foram marcantes, assim como um intenso debate acerca da inclusão da garantia de não-discriminação por “orientação sexual” na Constituição Brasileira.

A partir do início dos anos 1990, pode se dizer que o número de grupos/organizações do movimento voltou a crescer, espalhando-se por todo o país,9 ao mesmo tempo em que seus formatos institucionais e suas propostas de atuação diversificavam-se. Por outro lado, nota-se também uma ampliação da rede de relações sociais do movimento e a presença de novos atores nesse campo,10 por exemplo, a mídia, as agências estatais ligadas aos temas justiça e saúde, parlamentares que incluem a bandeira dos direitos dos homossexuais em suas plataformas, o mercado especializado, organizações internacionais e grupos religiosos flexíveis ou especialmente voltados a questões ligadas à sexualidade.

Um exemplo da diversificação de formatos institucionais e da transformação das relações estabelecidas pelo movimento com outros atores diz respeito à relação entre ativistas LGBT e partidos políticos. Nos anos 1990, assistimos à organização de setoriais LGBT em partidos como o PT e o PSTU, bem como o lançamento de candidaturas e a proposição de projetos de lei, o que demonstra uma transformação nas relações entre ativistas e partidos desde os conflitos observados no início dos anos 1980. Em começos dos anos 2000 amplia-se o leque de partidos que têm se aproximado da temática LGBT e de setoriais, das ações de políticas públicas e parlamentares e das candidaturas que se organizam a partir de vários partidos. Essa mudança provavelmente vem sendo operada de modo mais significativo a partir da retomada do regime democrático.

No entanto, as primeiras demonstrações mais vivas de reconhecimento de LGBT nas políticas públicas e nos programas de governo aparecem de modo mais expressivo apenas nos anos 2000. Isto sugere um processo de construção da legitimidade da temática LGBT nos partidos, que ocorre em meados dos anos 1980 e se intensifica nos anos 1990. Nesse processo, a proposição do projeto de lei sobre a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, em 1995, é um marco que indica as primeiras conquistas dessa articulação LGBT pela via partidária. As mudanças, no entanto, não se restringem ao aumento e à diversificação dos grupos e à ampliação da rede de relações do movimento.

No âmbito interno dos grupos, podemos identificar a crescente aproximação do modelo ideal das ONGs esboçado por Rubem César Fernandes (1985) e suas implicações em termos de redução do número de membros efetivos; criação de estruturas formais de organização interna; elaboração de projetos de trabalho em busca de financiamentos; necessidade de apresentação de resultados; necessidade de expressar claramente objetivos e objetos de intervenção ou de reivindicação de direitos; profissionalização de militantes; maior capacidade e necessidade de comunicação e dependência de estruturas como sede, telefone, endereço eletrônico, computador; necessidade de integrar os militantes em um discurso pragmático; adoção de técnicas de dinâmica de grupo em reuniões e atividades; preocupação em ter quadros preparados para estabelecerem relações com a mídia, parlamentares, técnicos de agências governamentais e associações internacionais.

No que se refere à relação entre os grupos, a busca pelos escassos financiamentos estatais ou internacionais passou a produzir um ambiente bastante competitivo. Nesse contexto, os processos de formação de alianças e as tensões, que já haviam sido descritos por MacRae (1990) como característicos do movimento, criam situações de conflito aberto, que podem ser acompanhadas eventualmente por meio da troca de acusações na mídia ou fóruns que não incluam somente militantes, como os cada vez mais numerosos grupos ou listas de discussão na internet.

A partir da década de 1990, o movimento multiplica também as categorias de referência ao seu sujeito político. Assim, em 1993, ele aparece descrito como MGL (“movimento de gays e lésbicas”) e, após 1995, surge primeiramente como um movimento GLT (“gays, lésbicas e travestis”) e, posteriormente, a partir de 1999, começa a figurar também como um movimento GLBT – de “gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros”, passando pelas variantes GLTB ou LGBT, a partir de hierarquizações e estratégias de visibilização dos segmentos.11 Em 2005, o XII Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Transgêneros aprova o uso de GLBT, incluindo oficialmente o B de bissexuais à sigla aceita no país12 e convencionando que o T se refere a travestis, transexuais e transgêneros.13 A solução provisória encontrada pelo XII EBGLT foi posteriormente revogada e, em 2008, o evento já se chamava EBLGBT (Encontro Brasileiro de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). A sigla do EBLGBT acompanhou mudança ocorrida em meados do ano de 2008, a partir da Conferência Nacional GLBT, quando, não sem alguma polêmica, foi aprovado o uso da sigla LGBT para a denominação do movimento, o que se justificaria pela proposta de visibilizar o segmento das lésbicas.

De toda maneira, não se verifica uma concordância absoluta em relação às siglas que procuram definir o sujeito político do movimento, sendo comum a coexistência de diversas maneiras de denominação, que variam regionalmente ou mesmo de grupo para grupo. Além disso, a variedade de estratégias de nomeação do sujeito político do movimento passa a coexistir e a ter que ser pensada em relação a outras siglas associadas a diferentes atores sociais: é o caso do mercado, que origina o GLS14 – “gays, lésbicas e simpatizantes” – ou do Estado, cujas políticas de saúde adotam os termos HSH15 – “homens que fazem sexo com homens” e MSM – “mulheres que fazem sexo com mulheres”.

Tal processo de construção dos sujeitos políticos do movimento não pode ser pensado sem que se leve em conta todos os atores presentes em seu campo e a dinâmica entre eles. Assim, tomamos o movimento como um ator social complexo, necessariamente em relação com outros atores, que o influenciam e são influenciados por ele. Da mesma maneira, não se pode supor uma homogeneidade do movimento, considerando-se ser este composto por organizações de diferentes formatos que, por sua vez, alternam entre a cooperação e o conflito no trato com outros grupos.

Algumas dessas relações com outros atores são fundamentais para compreender a própria configuração assumida pelo movimento a partir de meados dos anos 1990. Acontecimentos como o processo de “redemocratização”; a implementação de uma política de prevenção às DST/aids baseada na ideia de parceria entre Estado e sociedade civil e num claro incentivo às políticas de identidade como estratégia para a redução da “vulnerabilidade” de populações estigmatizadas; o desenvolvimento da segmentação de mercado e o crescimento de um mercado específico para o público gay ou GLS e mesmo os efeitos de processos globais têm algo a dizer sobre a forma pela qual a ideia de uma política de identidade baseada em questões de gênero e sexualidade tem se tornado possível no Brasil,16 apesar da disputa entre modelos classificatórios da sexualidade em que está ainda hoje envolvida. Para além de estímulos diretos ao movimento, como destinação de recursos para as suas atividades, tanto as agências estatais quanto o mercado segmentado têm contribuído para reforçar a adesão a um sistema classificatório moderno, imprescindível para que uma política de identidades LGBT se torne viável.


Movimento LGBT e mercado GLS:17 fronteiras móveis

No contexto brasileiro de finais da década de 1970, registra-se uma ampliação do que era então conhecido como “gueto” gay paulistano, tendo como epicentro a região central da cidade (Perlongher, 1987). Como salienta MacRae (1990), cada novo estabelecimento que surgia era visto como “vitória para a causa” por boa parcela dos frequentadores do “gueto”.

Tal efervescência geral tinha paralelos no incipiente movimento homossexual que passava a se organizar com a criação do Grupo Somos. Entretanto, a relação dos atores do movimento com o “gueto” mostrava-se bastante conflituosa, com constantes críticas dos militantes do Somos a respeito da “integração dos homossexuais à sociedade de consumo” (MacRae, 1990:300). A própria constituição do grupo definia-se em oposição ao “gueto”, com o questionamento dos militantes ao que entendiam como “papéis sexuais hierárquicos” que imperavam no “gueto”, entre outros modelos vistos como opressores.18 Não obstante essas críticas, as relações com os estabelecimentos noturnos de frequência homossexual não deixavam de existir, pois era lá que se poderia encontrar a “base” do movimento. Dessa forma, mais do que uma oposição distanciada do “gueto”, procurava-se desempenhar um papel na tarefa de “conscientizar” os homossexuais e explorava-se concretamente uma ideia de militante homossexual (MacRae, 1990).

Apesar da lacuna a respeito de como o movimento relacionava-se com o “gueto” na década de 1980, parece-nos correto afirmar que o grande ponto de inflexão nessas relações, ao menos em São Paulo, se dá na década de 1990, quando a ideia de visibilizar os então “GLT” e de propor estratégias massivas de manifestação fazia-se presente no movimento, e diferenciava-se claramente de propostas anteriores. À medida que essa postura crescia, também se verificava, especialmente no movimento paulista, a combinação de reuniões dos grupos com atividades de sociabilidade e lazer. Estas duas tendências influenciariam sobremaneira a adesão à proposta de realização das Paradas, que se tornaram no Brasil ocasião de maior visibilidade do movimento LGBT e também, em muitas cidades, de maior interação com o mercado segmentado.

Na década de 1990, assistimos à valorização da atitude do “orgulho” e do assumir-se publicamente. Alguns artistas conhecidos da música popular passam a se declarar homossexuais sem maiores constrangimentos, embora muitos recusem o que consideram ser “levantar bandeiras”. Também nas novelas de televisão aparecem cada vez mais personagens homossexuais, “seja revisitando caricaturas e estereótipos, seja ensaiando uma aproximação a imagens mais ‘modernas’ de gays e lésbicas, e mesmo de travestis ou transexuais” (Simões & França, 2005:312).

Tal contexto, aliado à expansão e à diversificação do mercado GLS em grandes capitais e ao reflorescimento do movimento homossexual, contribuiu para que se afirmasse a ideia de “orgulho gay” e se caracterizasse a segunda metade dos anos 1990 como um período de efervescência, o que foi de certa forma incentivado pela grande imprensa e principalmente pela mídia segmentada, como ilustra o artigo publicado na Revista Sui Generis: “se você ainda não relaxou, aprenda a se divertir. Saia de casa desencanado, nem ligue se vai ouvir desaforos de algum aleijo. Não dá mais para ficar se sentindo ‘inferior’. Essa postura ficou para trás, em algum lugar dos anos 80. Você está nos anos 90, meu bem. É tempo de gozar (com camisinha!). E sentir orgulho disso!” (Hidalgo, 1995:23).

Este espírito também se verifica no âmbito do movimento e na postura adotada por militantes a partir de meados da década de 1990, pautada em boa parte por uma noção de “orgulho homossexual”. Mais do que nunca, a ideia de visibilizar os então GLT (gays, lésbicas e travestis) e de propor estratégias massivas de manifestação fazia-se presente no movimento, e diferenciava-se claramente de propostas anteriores, classificadas como “vitimistas”.

De maneira semelhante, ao menos nas grandes capitais do país, espaços de consumo e sociabilidade passaram a incorporar, em certa medida, elementos do discurso ativista do “orgulho” e da “visibilidade”, explicitando o seu direcionamento a um público de orientação sexual determinada e compartilhando alguns símbolos com o movimento, como é o caso da bandeira do arco-íris, que se tornou comum em estabelecimentos GLS e em muitas atividades do movimento.

No mesmo período, empresários do mercado GLS começam a se ver e a ser vistos como articuladores de uma ação política, no sentido de que estimulam a “autoestima dos homossexuais” e a formação de uma “identidade positiva” através de iniciativas como festivais de cinema, editoras e mesmo espaços de lazer e sociabilidade e fazem circular informações por esse público por meio de sites e revistas especializadas.19

Além disso, se as dimensões de visibilidade e o fortalecimento de uma identidade homossexual trafegam entre o mercado e o movimento, a própria ideia de “comunidade”, cara ao movimento, é também responsável por aproximá-los. Da mesma maneira que os estabelecimentos GLS em certa medida visibilizam a homossexualidade, é também por meio deles que a “população LGBT” se mostra concretamente para o movimento, podendo ser acessada de maneira concentrada. A “comunidade”, então, é muitas vezes referida em termos de como se organiza no conjunto de estabelecimentos GLS.

Entretanto, o conjunto de bares e casas noturnas não apenas torna palpável a “comunidade”,20 como é também aí que se revelam processos de estratificação sexual21 e de produção de diferenças a partir de marcadores sociais como classe, geração, gênero, sexualidade e cor/“raça”.22 É importante notar que o “mercado GLS” que se segmenta e se espraia para diferentes regiões da cidade absorve os espaços de sociabilidade homossexual sem diluir suas diferenciações internas, fixando-as em determinados lugares. O seu desenvolvimento é, desse modo, atravessado por relações de poder que empurram “mais gordos”, “mais velhos”, pobres, negros, travestis, michês e “efeminados”/“masculinizadas” para os espaços marcados por um menor prestígio social e menor integração a circuitos globais (Simões & França, 2005; França, 2006a; Facchini, 2008; França, 2009). Associar tais espaços de sociabilidade a uma determinada identidade, ou reforçar categorias identitárias de maior visibilidade em detrimento de outras é perder de vista as relações de poder que perpassam esse processo.

Por outro lado, apesar de a expansão e a diversificação do mercado segmentado destinado ao público homossexual carregar com ele relações de poder que valorizam determinadas categorias e desvalorizam outras, um dos aspectos importantes a ressaltar é o de que quase todas as categorias são absorvidas de uma maneira ou de outra. No entanto, seu caráter excludente surge com força quando olhamos para as pessoas nas pontas socialmente mais marginalizadas. O caso das travestis é emblemático: muitas vezes são barradas ou maltratadas em estabelecimentos destinados a homossexuais, evidenciando os limites de inclusão do mercado segmentado (França, 2006b).

O movimento LGBT, por sua vez, tem se empenhado numa reflexão crítica a respeito da segmentação no “mercado GLS”. As discussões invariavelmente acabam por abordar o conjunto de lugares GLS, e não raro chegam ao consenso de que é importante a diversidade de estabelecimentos e a diversidade de estilos relacionados a espaços determinados, mas que se incorre no risco de muitas vezes as diferenciações serem entendidas segundo uma lógica segregacionista e hierárquica. Situações de conflito ocorrem quando identidades abraçadas pelo movimento são repudiadas pelo mercado, gerando tensões entre os dois atores sociais. Grande parte do mercado GLS e do seu circuito noturno de lazer não considera bissexuais, travestis e transexuais como integrantes da “comunidade” para a qual oferecem seus serviços, enquanto o movimento tem essas categorias como constituintes do seu sujeito político e parte da “comunidade” à qual se dirige.

Mecanismos de diferenciação também são acionados por militantes em momentos em que a categoria “militante” é questionada ou ameaçada pela indiferenciação em relação a atores do mercado. Em que pesem, porém, os mecanismos de diferenciação e os conflitos entre movimento e mercado, tais reações fazem parte de um contexto mais amplo que marca atualmente a aproximação entre mercado GLS e movimento LGBT, definindo a arena das relações permeadas de implicações políticas que envolvem o consumo.

Outro ponto que vale a pena destacar é o fato de que o movimento de empresários do mercado GLS em direção à afirmação de uma “identidade positiva” e da “visibilidade” se faz acompanhar também do surgimento de uma nova postura entre o público consumidor, que atua na garantia de seus direitos ao consumo como um caminho para a conquista de cidadania. Assim, é preciso ressaltar o posicionamento de consumidores quando entendem que seus direitos estão sendo desrespeitados em razão de sua sexualidade, exigindo igualdade por meio de ações relacionadas ao consumo.23 Isto se expressa claramente nas reações às restrições quanto à demonstração pública de afeto entre pessoas do mesmo sexo: os “beijaços”24 em bares e restaurantes não explicitamente direcionados aos homossexuais, mas frequentados por este público, têm se tornado cada vez mais comuns desde meados da década de 1990, sinalizando uma atitude em direção à exigência de igualdade de tratamento em espaços públicos.

Embora muitos dos “beijaços” sejam articulados pelo movimento LGBT, uma parcela considerável deriva da organização dos próprios frequentadores, ou da ação conjunta entre frequentadores e movimento, quando os primeiros procuram organizações LGBT denunciando estabelecimentos de consumo. Outras alternativas, como mensagens de denúncia na internet, ou mesmo na mídia segmentada, relativas a estabelecimentos que coíbem expressões de afeto entre pessoas do mesmo sexo também desempenham esse papel.

Esta tendência que conecta cidadania a práticas de consumo se faz acompanhar de um movimento mais amplo, que envolve também ações relacionadas ao Estado.25 Nos últimos anos, surgiram leis antidiscriminatórias em âmbito municipal e estadual, prevendo punição para estabelecimentos públicos que discriminem cidadãos em razão de sua orientação sexual. Apesar de muitas dessas leis, como ocorre no estado de São Paulo, abrangerem estabelecimentos não-comerciais e outras formas de discriminação não relacionadas a espaços públicos, elas têm sido bastante utilizadas na direção de estabelecimentos comerciais. Outras leis do mesmo tipo têm abrangência mais limitada, determinando penalidades claras apenas para estabelecimentos comerciais.

Ainda não foi suficientemente estudado o uso praticado pelas pessoas em face dessas leis, considerando também seu impacto sobre o mercado. Outro ponto ainda pouco abordado é o da emergência recente de associações de empresários voltados para o “setor de gays e lésbicas” e sua atuação na produção de um discurso sobre esse público direcionado a atores do mercado de modo mais geral. Além disso, não deixa de ser interessante o fato de atores do mercado articularem-se também com atores do Estado, efetivando ações conjuntas relacionadas à interação entre cidadania e consumo, o que não tem sido alvo de pausada reflexão.

De todo modo, tais aspectos mais amplos da relação entre cidadania e consumo integram um contexto de interação entre mercado e movimento responsável por um ganho no alcance e no impacto dos discursos ativistas vinculados à homossexualidade, mas requerem, ao mesmo tempo, maior precisão desses discursos, situados em meio a um rol de iniciativas encabeçadas por outros atores sociais. Se tais iniciativas influenciam marcadamente os contornos adquiridos pelo movimento, também é de fundamental importância que consideremos o papel desempenhado pelo Estado, tanto investido do lugar de contraponto, como no período da ditadura militar, quanto no lugar de interlocutor privilegiado na luta por direitos, no período pós-redemocratização.


Estado e sociedade civil: conexões e porosidades

Desde os anos 1980, temos assistido a uma mudança substancial na relação entre Estado e movimentos sociais, bem como na forma de operar políticas públicas no Brasil. Numa retrospectiva acerca de gênero e políticas públicas, Farah (2004) delineia um processo no qual a redemocratização do Estado brasileiro – que envolveu a democratização de processos decisórios e a inclusão de novos segmentos populacionais como beneficiários de políticas públicas – coincide com o fortalecimento dos movimentos de mulheres e feministas. Sob uma tensão permanente entre o vetor “eficiência” – relacionado a pressões do Banco Mundial – e o vetor “democratização dos processos decisórios e do acesso a serviços públicos”, surgem, a partir do início dos anos 1980, as primeiras políticas focalizadas em mulheres e aprofunda-se um processo de participação do movimento social no desenvolvimento da formulação, da implementação e do controle de políticas públicas. Processos igualmente complexos, envolvendo uma gama diversa de atores políticos em âmbito nacional e internacional, cresceram em relação a outros sujeitos políticos ou a segmentos populacionais a partir dos anos 1990.

Mesmo em tempos de “Estado minimalista” (Santos, 1997), as demandas por reconhecimento legal e por formulação e aprimoramento de políticas públicas foram centrais no cotidiano do movimento LGBT na virada do século XXI, colocando irremediavelmente o Estado em seu campo de relações. No entanto, essas relações se tornam muito mais complexas e permeáveis a partir do momento em que a sociedade civil é tomada como “parceira” na tarefa de propor, implementar e avaliar políticas públicas. Os processos que se desdobram em função da produção de “resposta coletiva” à epidemia de aids no Brasil são, sem dúvida, um exemplo paradigmático para se pensarem as mudanças pelas quais o Estado e os movimentos sociais têm passado no país e as dificuldades de estabelecimento de papéis e de limites entre Estado e sociedade civil.

Atualmente, o envolvimento da sociedade civil na elaboração e na implementação de políticas públicas coloca em xeque o próprio lugar de “outro do Estado”. Com a “resposta coletiva” à epidemia do HIV/aids e outras experiências de “parceria” entre Estado e sociedade civil, vários sujeitos políticos têm encontrado saídas para a visibilização e o encaminhamento de suas demandas, e até mesmo para a manutenção da estrutura necessária à atuação de suas organizações. No entanto, os efeitos do envolvimento da sociedade civil nas atribuições tradicionalmente tidas como de responsabilidade do Estado não são ainda muito claros ou previsíveis, embora certamente se estendam para além do impacto já citado sobre o formato das organizações, os modos de atuação e a dinâmica das relações internas ao movimento.

Ao refletir sobre os impasses e os desafios colocados pelo processo de construção de homossexuais como sujeitos de direitos no Brasil, Carrara (2005) assinala o fato de que as relações entre movimento homossexual e Estado no Brasil pós-aids colocam em foco novas modalidades do exercício do poder político, nas quais o “Estado minimalista” em certa medida organiza a sociedade civil ao financiar encontros e projetos de intervenção social. O autor propõe uma reflexão sobre possíveis processos de capilarização do poder aí implicados, bem como de “clientelização” da sociedade civil, ou mesmo de estabelecimento de pontos de apoio para novas pressões “de baixo para cima”.

Verónica Schild (2000) já apontava, nos anos 1990, o impacto da passagem e da distribuição pelo Estado de recursos internacionais destinados a organizações de mulheres no Chile no que diz respeito à possibilidade de controle das pautas do movimento. Sem dúvida, a especificação de públicos-alvo e de prioridades de atuação em editais para financiamento público para as ações de ONGs tem repercussões no processo de construção de sujeitos políticos e em pautas e ações da sociedade civil no Brasil. No entanto, se isto representa um risco de controle da sociedade civil pelo Estado, talvez ainda seja o caso de observar mais detidamente os desdobramentos desse processo, uma vez que o efeito pode não resultar necessariamente no total controle ou mesmo na “clientelização” ou na “colonização” da sociedade civil pelo Estado, como sugerem algumas das abordagens que se referem a um processo de “onguização” dos movimentos sociais.

Almeida (2005), pesquisando a partir de organizações do movimento lésbico brasileiro, demonstra como uma maior abertura às demandas de LGBT no campo da prevenção às DST/aids em meados dos anos 1990 contribuiu para que um sujeito político, que oscilava entre relações de colaboração e dependência – ora quanto ao movimento feminista e ora quanto ao movimento LGBT – fosse se constituindo de forma mais autônoma. Embora o campo da prevenção estivesse voltado prioritariamente para a aids e não houvesse dados epidemiológicos capazes de sustentar políticas de prevenção entre lésbicas, tais fatores não constituíram impeditivos a esse processo, que implicou também a construção de discursos acerca de um “corpo lésbico”, num caminho que levava da invisibilidade à vulnerabilidade.

Mesmo que as iniciativas, ainda bastante incipientes, de uma política pública de saúde levando em conta a população formada por “mulheres que fazem sexo com mulheres” tenham demorado a surgir, foram recursos do Ministério da Saúde que colaboraram para o fortalecimento do movimento lésbico através do apoio aos primeiros Seminários Nacionais de Lésbicas (SENALE). Se, no decorrer desse processo, houve um direcionamento das pautas do movimento para a saúde, houve também um fortalecimento desse mesmo movimento a ponto de que seu sujeito político se legitimasse, tornando-se o foco de duas redes nacionais: a Liga Brasileira de Lésbicas e a Articulação Brasileira de Lésbicas. A partir daí, também se estabelecem condições para a busca de outras fontes de financiamento público, mais voltadas à redução das desigualdades de gênero e à promoção de direitos humanos, áreas de atuação que não desapareceram da pauta do movimento (Facchini & Barbosa, 2006; Facchini, 2008).

Pensar a complexidade das relações entre Estado e movimento LGBT no Brasil contemporâneo exige ainda a atenção para alguns processos recentes que se encontram pouco estudados. O mesmo Estado, que pode exercer algum nível de controle do movimento por meio da definição de editais, também parece depender cada vez mais da existência da “sociedade civil organizada” para a proposição, a legitimação ou mesmo a execução de políticas públicas, ou ainda para que, através do “controle social”, os recursos investidos se mantenham em seus destinos originais.

Se a política de prevenção à aids adotada no Brasil direcionou temporariamente as pautas para a saúde, estimulou a expansão do movimento para fora das capitais e dos circuitos de classe média e manteve o foco da atenção no nível das políticas federais, outros processos, como o de descentralização da política de saúde e o de preparação da Conferência GLBT em âmbitos municipal, estadual e federal, têm exigido o fortalecimento do controle social em nível local, recolocando a polaridade entre Estado e sociedade civil e exigindo maior capilaridade do próprio movimento. Sob pressão da sociedade civil e de processos políticos internacionais, as agências estatais especializam-se em públicos e questões cada vez mais específicas – políticas para “negros”, “mulheres”, “comunidades tradicionais”, de “combate à homofobia” – e retroalimentam a multiplicação de “sujeitos vulneráveis”. Por outro lado, cada vez mais se fala em “transversalidade” nas políticas públicas.

Essas mudanças colocam problemas que não têm respostas óbvias. A questão da negociação entre os modos de definir o público-alvo de políticas públicas e como as populações de lugares cada vez mais diversos se entendem e são entendidas em âmbito local é um dos desafios que têm sido bem pouco estudados no campo da sexualidade. São ainda insuficientemente exploradas as formas pelas quais a demanda por transversalidade vinda do Estado tem se conjugado à necessidade de articulação entre movimentos sociais proveniente de parcelas da sociedade civil. Pouco se sabe também a respeito da maneira como isto tem se traduzido na formação de sujeitos complexos, como “negros LGBT” ou “estudantes pró-diversidade sexual”, ou em experiências de colaboração entre movimentos perpassadas pela ampliação do escopo das demandas. A repercussão política das diversas estratégias adotadas também carece de reflexão.

Além disso, pouco se tem falado a respeito do impacto da disputa das redes que foram se fortalecendo e multiplicando no movimento, sobre as agências estatais voltadas à produção de políticas públicas e sobre as próprias políticas geradas nesse contexto. Ou, ainda, sobre como o recrutamento de técnicos e gestores públicos entre a geração formada por ativistas que investem cada vez mais na especialização e na profissionalização tem repercutido nas políticas públicas e nas relações entre integrantes do movimento e entre movimento e Estado. Outra questão relevante, relacionada a esta última, é o modo como a transformação no perfil dos ativistas, observada nos últimos 15 anos, e sua aproximação do perfil de técnicos e gestores de políticas públicas impacta as relações entre Estado e sociedade civil.

Stuart Hall (2003) assinala os efeitos transruptivos da “questão multicultural” na direção da desestabilização das fundações do Estado constitucional liberal. Segundo ele, a “questão multicultural” coloca em xeque duas importantes bases do universalismo liberal ocidental: a cidadania universal e a neutralidade cultural do Estado. Por um lado, expõe o fato de que os direitos de cidadania nunca foram universalmente aplicados e, por outro, deixa claro que a neutralidade do Estado funciona apenas em face da pressuposição de uma “homogeneidade cultural” entre os governados e de uma separação estrita entre as esferas pública e privada. A demanda por reconhecimento de direitos de mulheres e LGBT tem levado a uma crescente intervenção no campo do privado, borrando as fronteiras entre público e privado e politizando cada vez mais este último domínio. Isto tem obrigado Estado e sociedade civil a repensarem os limites entre público e privado, provocando em alguns setores da sociedade civil uma reflexão sobre as potencialidades, os limites e os riscos envolvidos na regulação estatal para a garantia de determinados direitos relacionados à sexualidade.

Por outro lado, a afirmação de identidades promovida por movimentos como o LGBT tem agido de modo a fazer com que o Estado se reposicione acerca da neutralidade cultural na administração de conflitos entre as diversas “comunidades” que compõem a nação. Se a nação pode ser definida como uma “comunidade política imaginada”, e imaginada como “inerentemente limitada e soberana” (Anderson, 2008), atualmente tem crescido a possibilidade de que seja também pensada como composta por uma série de “comunidades”. Tais “comunidades” são, em geral, imaginadas a partir de diferenças essenciais compartilhadas por conjuntos de cidadãos. Na linguagem das políticas públicas, cada um desses conjuntos corresponde a um “segmento” mais ou menos “vulnerável”.

A virada de século no Brasil foi profundamente marcada pelo debate acerca de políticas afirmativas e pela criação de secretarias e ministérios voltados a “segmentos”. Assim, a demanda, ainda bastante difusa, por “transversalidade” cresce entre gestores, acadêmicos e ativistas. Para uma parcela dos atores presentes no campo do movimento, vem se fortalecendo a ideia de que chegamos a um limite: não basta acrescentar letras às siglas ou trocar a ordem das letras – transformar o nome do movimento não dirime magicamente as assimetrias de gênero e não alça lésbicas, travestis, transexuais ou bissexuais à condição de “iguais”. Afinal, dentro do universo das letrinhas residem disputas internas de poder e hierarquizações que, muitas vezes, destoam dos objetivos de promoção da igualdade dentro e fora do movimento.

Se a demanda por “transversalidade” sugere uma crítica ao caráter essencial, estanque e homogêneo não raro atribuído às “comunidades”, as próprias políticas estabelecidas e a disputa por recursos sempre mais escassos estimulam a emergência de sujeitos políticos – portanto, “comunidades” – cada vez mais específicos. Mais do que criar letrinhas e novos sujeitos, talvez seja necessário evitar as armadilhas presentes na adoção de uma perspectiva essencialista, em que os sujeitos políticos são percebidos como estáveis, homogêneos e dados de antemão, e na especificação cada vez maior de sujeitos que justapõem eixos de diferenciação social na direção de uma “soma de opressões”.


Solidariedade: um caminho possível?

A criação de um conjunto de nomes para sujeitos que possuem determinados desejos e práticas eróticas surgiu junto a todo um dispositivo de sexualidade (Foucault, 1979) no século XIX. Alguns desses nomes – “homossexual”, em especial – passaram a ser usados tanto para defender quanto para limitar direitos de sujeitos concretos. O “movimento homossexual” utilizou-se desta categorização para a reivindicação de direitos civis, invertendo seus sinais e imprimindo-lhe um caráter positivo.

Neste artigo, percorremos brevemente os 30 anos da trajetória do movimento conhecido atualmente no Brasil como LGBT, tendo como pano de fundo o complexo processo pelo qual vem constituindo seu sujeito político em meio a outros atores sociais, notadamente os oriundos do Estado e do mercado direcionado a homossexuais. Mais do que isso, procuramos oferecer elementos para refletir sobre o percurso desse movimento e seu impacto social em meio às reviravoltas que acompanharam as transformações que têm se aplicado à homossexualidade – entendida como lugar social – no decorrer das últimas décadas no Brasil.

Há muitos avanços, mas também dilemas e dificuldades. Se iniciamos este percurso evocando a grande conquista representada pela realização da Conferência Nacional GLBT, há de se notar também dificuldades de encaminhamento de demandas via Legislativo e um acolhimento via Judiciário que, embora importante, tem se limitado a decisões tomadas por juízes ou localidades considerados mais “progressistas”. Há iniciativas importantes, como a construção e o fortalecimento de Frentes Parlamentares, a elaboração e a proposição de projetos de lei, e mesmo o estabelecimento de normativas de associações profissionais que combatem a patologização e a discriminação de LGBT. Contudo, há também uma reação conservadora muito forte, que tem se expressado a partir de uma linguagem híbrida, combinando elementos de discurso fundamentalista religioso e fragmentos deslocados de discursos acadêmicos ou ativistas, com o intuito de gerar um efeito de pânico moral em torno de imagens de “homossexuais pedófilos” que “optam” ou querem se livrar de uma “perversão”.

Para além dos avanços e das dificuldades, há alguns dilemas e desafios inerentes à ação política que abordaremos, concluindo esta reflexão, de modo mais detido nos próximos parágrafos, e que certamente são comuns a outros campos de atuação política e social.

Se a possibilidade de ação política constitui-se dentro de um campo pré-configurado e que inclui outros atores sociais, precisando tornar-se inteligível nesse campo, o paradoxo entre igualdade e diferença apresenta-se como um dilema. Como lidar com as desigualdades que suscitam a ideia de diferença sem encerrar esta última em si mesma, impedindo a constituição de alianças com outros sujeitos políticos? Como tratar a diferença sem tomá-la de modo essencial e estanque, concorrendo para gerar outras formas de normatização e exclusão? Como evitar que a demanda por reconhecimento de “especificidades” resulte num processo de “segmentação da segmentação”? Como obter reconhecimento, evitando operar por meio da lógica de uma “soma de opressões”, quando diferenças são vistas de modo estanque e essencial? Como se posicionar num contexto que tem tornado cada vez mais comum avaliar ou afirmar o grau de legitimidade de um sujeito político e de suas demandas com base na quantidade de itens que preenche a partir de uma lista crescente de “vulnerabilidades”? Como lidar com as diferenças que se constituem no universo das letrinhas (gays x lésbicas, homossexuais x bissexuais, orientação sexual x identidade de gênero, travestis x transexuais) sem restringir a capacidade de atuação do movimento ou contribuir para a sua fragmentação, sem tampouco fazer vistas grossas a hierarquias e a desigualdades?

Nesse campo, em que “fronteiras móveis” e “porosidades” são evocadas em referência a atores políticos tradicionalmente pensados como distintos e com diferentes papéis, emergem outros dilemas. Como manter o equilíbrio entre a proximidade, propiciada pelo compartilhamento de um perfil cada vez mais semelhante entre ativistas e técnicos, e a diferenciação, que se faz necessária quando nos remetemos a termos como “controle social”? Que limites e que potencialidades se configuram quando pensamos na porosidade que tem caracterizado boa parte das relações entre movimento e Estado? Por outro lado, como pensar a atuação de um movimento relativo à sexualidade que tem o acesso à sua “base” mediado por espaços regulados pelo mercado? Como lidar com o fato de que, além de disputar o sentido de categorias como gays ou lésbicas, o mercado interfere diretamente na constituição e na difusão de categorias de identidade?

Tais questões combinam-se ainda a outras, tendo como pano de fundo a configuração que o movimento vem assumindo no Brasil, os processos de produção de sujeitos políticos e os desafios e os impasses que nos parecem estar se configurando nas últimas décadas: como esse sujeito é informado por categorias oriundas do vocabulário das políticas públicas ou das estratégias do mercado segmentado? Como reage às acusações que são crescentemente arremessadas por fundamentalistas religiosos? Qual o custo político de tais reações?

Neste artigo, procuramos construir uma análise atravessada pelas perguntas delineadas acima, com base também na literatura brasileira a respeito do tema. De toda maneira, temos para nós que tais impasses não comportam saídas simples e que estas não devem ser pensadas como meros reflexos de modismos teóricos, uma vez que respondem a contextos e a demandas locais, ainda que necessariamente conectados a processos internacionais.

A expansão de um sistema classificatório moderno, a proliferação de categorias observada nos locais de sociabilidade e lazer e na composição do sujeito político do movimento, e os paradoxos relacionados à articulação entre igualdades e diferenças nos parecem permitir, no entanto, a aproximação entre a reflexão aqui realizada e algumas das reflexões tecidas por teóricas feministas que se depararam com processos semelhantes em outros contextos (Butler, 2003; Brah, 2006; Haraway, 2004; Scott, 2005). Confrontadas pela crítica levada a cabo por negras, lésbicas e mulheres de diferentes origens étnicas e nacionais à universalidade do sujeito “a mulher” e à noção de uma mesma “opressão” compartilhada, teóricas feministas têm gerado reflexões que talvez possam se somar à nossa no que concerne aos desafios colocados para o movimento LGBT brasileiro.

Uma primeira contribuição segue no sentido de desnaturalizar a concepção de que os sujeitos políticos apenas descrevem essências previamente dadas e de reconhecer que todo e qualquer sujeito político é construído a partir de contextos específicos (Butler, 2003, 1998; Brah, 2006; Haraway, 2004). Não se trata de refutar a utilização de categorias que façam referência ao sujeito do movimento, visto que são necessárias à ação política: manifestações, esforços legislativos ou visando ao acesso a políticas públicas precisam fazer reivindicações em nome de sujeitos determinados. Trata-se apenas de manter um olhar atento às inclusões e às exclusões e também às possibilidades e aos limites que se colocam no processo cotidiano de trazer dado sujeito político e suas demandas para o espaço público. Tal olhar possibilita tomar os sujeitos enunciados pelo movimento como termos sempre abertos a inclusões, acolhendo novas e diferentes demandas e questionando arranjos hierárquicos.

Uma segunda contribuição ressalta, por sua vez, a necessidade de compreender como se articulam diferentes eixos de diferenciação social e fontes de desigualdades, reconhecendo que o poder e as desigualdades não se articulam necessariamente por meio de operações de soma (Brah, 2006; Haraway, 2004). Isto implica pensar que “comunidades“ ou “segmentos” não são homogêneos, mas constituídos e atravessados por várias outras “comunidades”. Implica ainda que diferenças não sejam concebidas de modo essencial e estanque. Não se trata de contestar o sentimento de fraternidade ou a necessidade política de agrupar ou visibilizar sujeitos que se pensam como gays, lésbicas, bissexuais, travestis ou transexuais. Trata-se, antes, de enfatizar o caráter politicamente contingente da “comunidade”, uma vez que a fraternidade pode – a qualquer momento e a partir de necessidades igualmente legítimas para os que a delimitam – ser reconstruída em termos de outros eixos de diferenciação.

Para finalizar, gostaríamos de lembrar, seguindo Joan Scott (2005), que ao posicionarmos igualdade/diferença como opostos perdemos de vista suas interconexões e deixamos de reconhecê-las como conceitos interdependentes, em constante tensão num processo político dentro do qual se negociam identidades e os termos das diferenças entre elas. Uma tarefa urgente nesse sentido parece ser, retomando Avtar Brah (2006), encarar a complexa e necessária tarefa de identificar as especificidades de “opressões particulares”, entendendo suas interconexões com outras formas de opressão e descortinando, assim, possibilidades de construção de uma política de solidariedade. Para além das práticas de construção de coalizões políticas mais ou menos pontuais, que estão presentes há décadas nos movimentos sociais brasileiros, estratégias como a articulação política a partir de bandeiras de luta compartilhadas com outros sujeitos coletivos possibilitariam a ação sem que as diversas causas e os diversos sujeitos fossem hierarquizados ou encastelados neles mesmos, e que sujeitos políticos específicos ficassem fragilizados pelo isolamento ou por disputas internas.

Recebido: 10/março/2009

Aceito para publicação: 03/novembro/2009



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1 Dado proveniente de consulta ao site da ABGLT – www.abglt.org.br – realizada em 18 de outubro de 2008. Dos dados existentes no site da entidade, foram excluídos outros eventos do Orgulho, como seminários e festivais.

2 As nove redes nacionais atualmente existentes no Brasil são: Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), fundada em 1995; Articulação Nacional de Transgêneros (ANTRA), atualmente Articulação de Travestis, Transexuais e Transgêneros, criada em 2000; Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), criada em 2003; Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL), criada em 2004; Coletivo Nacional de Transexuais (CNT) e Rede Afro-LGBT, criadas em 2005; Coletivo Nacional de Lésbicas Negras Feministas Autônomas (Candace), criado em 2007; E-Jovem, que tem se articulado desde 2001; e Associação Brasileira de Gays (ABRAGAY), fundada em 2005.

3 Dados colhidos em consulta ao site da ABGLT – www.abglt.org.br – realizada em 18 de outubro de 2008.

4 Para um mapeamento da situação dos direitos sexuais relativos à orientação sexual e à identidade de gênero no Brasil, ver Vianna & Lacerda (2004).

5 É possível perceber uma rápida incorporação de temáticas relacionadas à homossexualidade nas pautas dos centros de pesquisas e nas universidades brasileiras. Silvia Ramos (2005) relata que uma busca na Plataforma Lattes (banco de currículos de pesquisadores mantido pelo CNPq) usando as palavras “homoerotismo”, “homossexualidade”, “gay”, “lésbica” e “queer” resultou em 3.520 trabalhos, associados a 1.420 pesquisadores. Uma busca semelhante, realizada em junho de 2001, havia encontrado 490 trabalhos associados a 212 pesquisadores.

6 No contexto do movimento, as ações de advocacy referem-se a estratégias de incidência política em diferentes âmbitos. Uma importante tendência de atuação diz respeito às estratégias em favor da aprovação de leis, como o PLC 122/06 (Projeto de Lei da Câmara, nº 122 de 2006, que criminaliza a homofobia no Brasil, cuja aprovação tem se configurado como uma das principais demandas do movimento, ocasionando uma variedade de iniciativas em torno da campanha por sua aprovação. Outro projeto de lei sobre o qual recai parte das ações de advocacy é o que reconhece a união civil entre pessoas do mesmo sexo, embora atualmente as discussões se deem em torno da reformulação do projeto, considerado obsoleto em alguns aspectos, dado o seu longo período de tramitação na Câmara dos Deputados.

* N. del E.: En los países latinoamericanos de lengua castellana, las categorías bicha-bofe podrían ser traducidas como marica-bufarrón; en tanto fancha-lady podrían traducirse como machona-lady.

7 Esse tipo de argumentação é atribuída a João Silvério Trevisan – liderança muito influente no período – por MacRae (1990:81).

8 Para conhecer melhor a trajetória de ativistas e intelectuais brasileiros ligados ao Jornal Lampião e à “primeira onda” do movimento brasileiro, ver Silva (1998); para um relato da trajetória do Grupo Triângulo Rosa e da adoção do termo “orientação sexual” no Brasil, ver Câmara (2002); e para uma recuperação mais detalhada da trajetória do movimento até o final dos anos 1990, ver Facchini (2005).

9 Se entre 1984 e 1991, os Encontros Nacionais do movimento restringiram-se a cerca de cinco entidades participantes em cada um dos eventos, 1992 parece ser um ano de grande expansão para o movimento, que se torna crescente a partir de então. Ao VIII Encontro Nacional, realizado em 1995, compareceram 40 grupos GLT. Em 1998, a ABGLT listava 68 entidades GLT brasileiras num documento preparado para um evento internacional. Ao final de 2006, 141 entidades GLBT estavam listadas apenas entre as afiliadas à ABGLT, número que subiu para 157 no início de 2007.

10 De acordo com o modo como o conceito elaborado por Marc Swartz (1968) foi aplicado por Carlos Nelson F. dos Santos (1977), o conceito de campo aplica-se “aos atores envolvidos diretamente no processo sob estudo”, mas é tido como “suficientemente flexível, podendo se contrair ou expandir para fora dos limites da arena”, que se refere a “uma área social ou cultural imediatamente adjacente ao campo [...], onde estariam os que, ainda que envolvidos diretamente com os participantes do campo, não estivessem envolvidos em seus processos definidores”. Nesse sentido, no campo do movimento estariam todos os atores sociais diretamente envolvidos no cotidiano do movimento, como as organizações militantes, as agências estatais e os poderes públicos com os quais se relaciona e os atores do mercado que abrem espaço ou se dirigem a homossexuais. Na arena estariam todos(as) aqueles(as) que poderiam se reconhecer ou serem reconhecidos como homossexuais, no entanto, sem estarem diretamente envolvidos no cotidiano da militância.

11 No final da década de 1990, houve a incorporação, a partir de grupos de São Paulo, do termo “GLBT”, em que “T” significa “transgêneros”, com a intenção de visibilizar um segmento cada vez mais presente no movimento e, ao mesmo tempo, criar uma sigla que fosse consonante com o movimento internacional (o “B” de “bissexuais” acabou por ser incluído também na sigla) (Facchini, 2005). Em âmbito nacional, a denominação do movimento seguiu essa tendência, embora suas instâncias nacionais incorporassem o “B” apenas em 2005.

12 A inserção de bissexuais na denominação do sujeito político do movimento na forma em que se deu não acompanhou o seu reconhecimento efetivo como integrantes deste sujeito político, da mesma maneira que não houve muito empenho no sentido de transformar a imagem negativa muitas vezes atribuída a bissexuais, dentro e fora do movimento. Não raro, ativistas que se identificam como bissexuais deparam-se com uma situação um tanto esquizofrênica: como se houvesse um espaço destinado a eles no movimento, mas que tem de ser conquistado mediante a comprovação de uma ação política organizada. Em resposta às manifestações contrárias à incorporação do segmento, militantes autoidentificados como bissexuais levaram ao XII EBGLT, além de uma carta aberta solicitando inclusão, a proposta de formação de um coletivo nacional. Desse modo, o XII EBGLT, de 2005, incorporou formalmente o “B” de “bissexuais” ao conjunto de letras utilizado para referir seu sujeito político, decisão que se manteve no XIII EBLGBT, realizado em 2008.

13 A denominação, em que T agrega as categorias de “travestis, transexuais e transgêneros”, parece ter se configurado como uma tentativa de encontrar uma letra que passasse ao largo de um debate no interior do segmento de “pessoas trans”, que muitas vezes opunha as categorias “travestis e transexuais” a “transgêneros” de forma inconciliável. Discussões ao interior do movimento de “pessoas trans” em favor da substituição do T genérico por “travestis” e “transexuais” resultaram em nova alteração, chegando à formulação do atual EBLGBT (em que “T” significa “travestis” e “transexuais”, considerando-se “transgênero” termo um tanto alheio ao contexto brasileiro) (França, 2006; Simões & Facchini, 2009).

14 A sigla GLS foi criada por atores relacionados ao mercado na primeira metade da década de 1990 e tinha a proposta de definir um segmento de mercado direcionado a “gays e lésbicas”, mas que tivesse potencial inclusivo de consumidores “heterossexuais”, agregados como “simpatizantes”. Uma espécie de tradução do termo gay friendly ao contrário: se gay friendly denomina lugares não voltados para gays, mas que podem recebê-los, GLS denomina lugares ou iniciativas de mercado direcionadas para “gays e lésbicas”, mas abertas a “heterossexuais”. No início, a sigla indicava um público “moderno”, sintonizado com as últimas novidades em termos de música, moda e “cultura pop”. Com o tempo, porém, houve uma popularização da sigla, hoje muitas vezes utilizada apenas como sinônimo de algo que é gay ou direcionado a gays.

15 A sigla HSH – homens que fazem sexo com homens – foi introduzida no Brasil nos anos 1990, no contexto das políticas de prevenção às DST/aids. O objetivo de seu uso é fazer referência direta às práticas sexuais, contornando o problema representado pela não-coincidência entre práticas e identidades, que faz com que categorias como gays ou homossexuais não sejam adequadas para definir todos os sujeitos que poderiam ser alvo dos programas de prevenção. A utilização dessa sigla vem sendo questionada por ativistas, que criticam o uso de uma categoria que não remete a identidades e invisibiliza o sujeito político do movimento que demanda tais políticas. Assim foi que o uso das categorias HSH e “mulheres MSM deu lugar, ao longo dos últimos anos, a definições como “lésbicas, bissexuais e outras MSM” e a “gays, HSH e travestis”. Pesquisadores têm observado o risco de que categorias como HSH e MSM possam “dissolver a questão da não-correspondência entre desejos, práticas e identidades numa formulação que recria a categoria universal ‘homem’ com base na suposta estabilidade fundante do sexo biológico” (Carrara & Simões, 2007:94 - nota 35).

16 Para uma análise mais detalhada da relação entre as políticas de prevenção às DST/aids, o desenvolvimento do mercado segmentado e o reflorescimento do movimento homossexual nos anos 1990, ver Facchini (2005).

17 Adotamos o uso de GLS neste texto como categoria êmica (sobre a sigla, ver nota 12). Isto não significa que a sigla seja capaz de abarcar todos os bens e os serviços consumidos por pessoas que se relacionam afetivo/sexualmente com outras do mesmo sexo, e nem mesmo que possa traduzir ou indicar a totalidade de serviços voltados para esse público. Todavia, embora os usos do termo GLS possam ter variado ao longo do tempo, ele concentrava as iniciativas do mercado com os quais o movimento estabeleceu relações de meados dos anos 1990 até meados de 2000, período no qual este artigo se concentra. Era em referência a um “mercado GLS” e a um “movimento GLBT” que as relações de colaboração e conflito e de aproximação e diferenciação se davam então, e mesmo a discussão e o estabelecimento de fronteiras entre tais categorias ilustram essas relações (Facchini, 2005; França, 2006a, 2007b). Convém observar ainda que nossos trabalhos recentes direcionam um olhar mais atento às ambiguidades que cercam os processos de inclusão e exclusão nos “roteiros GLS” (Facchini, 2008; França, 2009).

18 Em 1983, MacRae escreve um artigo a respeito desta postura intitulado “Em defesa do gueto”, em que ressalta a importância do “gueto” para além do espaço delimitado dos estabelecimentos, considerando o seu impacto social como um todo, já que o “gueto” possibilitaria aos homossexuais “testar[em] uma nova identidade social”, que poderia ser, posteriormente, “assumida em âmbitos menos restritos” (MacRae, 2005299).

19 É bastante comum, inclusive, que esses veículos destinem determinados espaços a informações relativas ao movimento LGBT, e mesmo à publicação de colunas ou artigos de militantes. Boas relações com a mídia segmentada são um aspecto valorizado pelos militantes, pois a partir daí podem visibilizar seu trabalho e usufruir um canal direto de comunicação com a “comunidade”.

20 Fazemos referência à categoria êmica de “comunidade” tomando em consideração a noção de “comunidades imaginadas” de Benedict Anderson (2008).

21 O termo faz referência à análise desenvolvida por Rubin (1993) acerca de como várias práticas eróticas são classificadas e hierarquizadas, criando uma escala que distingue o “bom” do “mau sexo”.

22 Aqui entendemos “raça” como um conceito “sob rasura”, para usar o mesmo arcabouço teórico desenvolvido por Stuart Hall. As aspas funcionam como indicativo de que, quando falamos em “raça”, não estamos pensando em uma diferença a partir de um substrato, mas em suas formas “destotalizadas e desconstruídas” (Hall, 2003:104).

23 Miller observa crescente tendência de transformação do consumo em uma arena permeável à ação política, considerando que as demandas dos consumidores nem sempre se igualam à atuação dos empresários, ou seja, não há nenhuma conexão direta entre anseios do consumidor e atuação dos empresários. Assim, tem surgido uma série de ações que cobram “responsabilidade social” do mercado, enfatizando um controle social dos consumidores em relação às esferas de produção e circulação de mercadorias. No entanto, Miller faz a ressalva de que “não há nenhuma razão particular para otimismo”, já que “existe uma distância considerável entre o encontro de interesses entre sociedades consumidoras e negócios, de um lado, e a formação de uma cidadania responsável e moral, preocupada com as consequências de suas demandas” (Miller, 1995:45).

24 O “beijaço” é um tipo de protesto que vem se tornando comum no movimento homossexual desde o início de 2000. Nos mesmos moldes do kiss-in, tática política do movimento nos Estados Unidos e na Europa, o “beijaço” consiste em uma demonstração pública de afeto entre homossexuais em locais em que esta prática é coibida, buscando visibilidade para esse público.

25 Em janeiro de 2006, a fundação PROCON, Serviço de Proteção do Consumidor, do estado de São Paulo, organizou um seminário intitulado “As relações de consumo e a discriminação homofóbica”, integrando as atividades que marcam os seus 30 anos de existência.