Sexualidad, Salud y Sociedad

REVISTA LATINOAMERICANA


ISSN 1984-6487 / n.4 - 2010 - pp.174-181 / www.sexualidadsaludysociedad.org



DUBEL, Ireen & HIELKEMA, André (eds.). 2010. Urgency required: Gay and lesbian rights are human rights. The Hague: Humanist Institute for Cooperation with Developing Countries (Hivos).



Sonia Corrêa

Pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdiciplinar de AIDS (ABIA)

Co-coordenadora do Observatório de Sexualidad y Política (SPW)


> scorrea@abiaids.org.br



A coletânea Urgency required: Gay and lesbian rights are human rights, editada por Ireen Dubel e André Hielkema foi lançada no começo de 2010 (e está disponível em http://www.hivos.net/Hivos-Knowledge-Programme/News/Urgency-Required-Out-Now). Seu conteúdo traduz para o inglês a publicação holandesa Urgentie Geboden, de 2008, que também veio a público nos números 33/34 do Journal of Humanistics. A coletânea é composta de 47 artigos distribuídos em seis seções: 1. A Holanda ontem e hoje; 2. Conceitos; 3. África; 4. Ásia; 5. América Latina; e 6. Estratégias. O novo título agrega a frase “gay and lesbian rights are human rights” retomando o lema feminista para a Conferência Internacional de Direitos Humanos de Viena, de 1993 (os direitos das mulheres são direitos humanos). Interessa à revista Sexualidad, Salud y Sociedad particularmente o conteúdo correspondente à seção 5 – América Latina, mas parece-me necessário situar os seis trabalhos publicados no contexto mais amplo da coletânea.

Não se trata de uma publicação estritamente acadêmica. Traz reflexões teóricas, resultados de pesquisas e resenhas de livros (e de um filme) produzidos por especialistas de renome, como Saskia Wieringa, Rob Tielmen, Arvind Narrain, Shivananda Khan e Juan Marco Vaggione, entre outros. Inclui também depoimentos e trajetórias de ativistas – como Simon Nkoli (África do Sul), Victor Musaka (Uganda), Arsham Parsi (Irã), Pramada Menon (Índia), Dede Oetomo (Indonésia), Belissa Andia (Peru) e Jorge Bracamonte (Peru) – assim como descrições de projetos e episódios relevantes relacionados à luta pelos direitos LGBT. A última seção oferece informação sobre documentos e iniciativas transnacionais, como os Princípios de Yogyakarta, a Declaração de Montreal (adotada durante os Outgames) e os impactos das regras da União Europeia nas normas dos países da Europa do Leste recentemente incluídos no bloco.

A coletânea busca, portanto, produzir interseções entre academia e ativismo, entre experiências vividas e políticas institucionais (policies). Esta escolha não é casual. Reflete o perfil e a trajetória dos/as editores/as. Ireen Dubel é a principal oficial de programas para gênero e desenvolvimento da HIVOS, agência de cooperação holandesa (que publica a coletânea). André Hielkema é historiador e ativista da Aliança Humanista Holandesa, que é a força política que dá sustentação à própria HIVOS.

Como ocorre com outras iniciativas editoriais deste tipo, desigualdades e irregularidades podem ser observadas no conjunto de trabalhos publicados. Claramente fez-se uma opção por textos curtos, o que favorece a diversidade mas, no caso de textos mais analíticos, pode ser uma limitação. Também é possível identificar um razoável esforço para evitar o viés que, neste tipo de publicação, tende a fixar especialistas do Norte como teóricos e pesquisadores, deixando para as/os ativistas do Sul o papel de “portadores de vivências e experiências”. Há ativistas europeus e americanos falando de ativismo, e ativistas do Sul que desenvolvem análises muito sofisticadas. Contudo, o viés não é completamente superado. Também se observam pequenas falhas editoriais, por exemplo, a ausência de pés de página com informações sobre aspectos contextuais que ajudariam na compreensão de algumas análises. No entanto, tais limites, a meu ver, não comprometem o resultado final.

Um primeiro mérito da coletânea, eu diria, é exatamente esse esforço no sentido de vincular produção de conhecimento, ativismo LGBT, política de cooperação e política doméstica holandesa. A HIVOS é hoje uma das poucas agências de cooperação que têm sustentado projetos de mais longo prazo no campo da sexualidade e dos direitos LGBT, e o governo holandês, nas arenas políticas globais, é um ator muito importante nos difíceis debates sobre direitos humanos, gênero e sexualidade. Será, portanto, muito produtivo que algumas das questões discutidas na publicação sejam incorporadas aos debates dos sistemas de cooperação ao desenvolvimento e da diplomacia holandesa.

Nesse sentido, cabe recomendar a leitura da seção 1, bem como a de um artigo da seção Strategies, que recupera a trajetória do debate interno na HIVOS quanto a decisões no sentido de investir em HIV/AIDS (1989) e em direitos LGBT (1999). Isto porque são muito elucidativos os artigos que recuperam a história da luta homossexual na Holanda, ao longo do século 20, em especial o papel desempenhado por Anton Shorer (que está na origem da Fundação de mesmo nome, hoje com uma presença importante no Brasil), pela COC (Dutch Society for the Integration of Homossexuality) e os vínculos de Shorer e da COC com o movimento humanista. Embora parciais, são também instigantes as análises e os depoimentos que tratam das tensões e dos dilemas vividos atualmente pela sociedade holandesa no terreno da interseção entre o respeito radical pela diversidade sexual e as posições (e as ações) dos migrantes islâmicos, porque ela não só reflete como alimenta as controvérsias globais sobre os direitos LGBT.

Outro tema relevante tratado na coletânea diz respeito às nomenclaturas e às políticas de identidade. Já na introdução, Dubel e Hielkema refletem criticamente sobre terminologia, explicitando diferenças e convergências entre os termos lgbtl e lgbtqi (que incorporam queer e intersex), reconhecendo que os autores e as autoras usam em seus trabalhos os termos gay e lésbica sem maior precisão (com forte dominância do termo gay, na minha avaliação), mas a questão é retomada em outros textos a partir de novas angulações.

Thomas Worgoor (“The emancipation of transgenders”) diferencia os termos transexual trangênero de travesti e intersexual. Alejandra Sardá-Chandiramani (“Recovering lost memories of bravery: Latin American non-normative sexualities in the 21st century”) especifica o sentido do termo travesti na política sexual latino-americana. Saskia Wieringa (“Lesbian Identity and Sexual Rights in the South: An exploration”) reflete sobre os limites do termo lésbica para nomear relações entre mulheres, considerando-se a diversidade das culturas sexuais. Propõe, inclusive, o uso de termos como pessoas de corpo feminino (female body persons) e mulheres em relações do mesmo sexo (women in same sex relations) como terminologia que poderia solucionar esse problema. Wieringa também lembra que, em muitos contextos, lésbicas assumidas e envolvidas em ativismo podem inadvertidamente desvelar práticas de mulheres que até então podiam proteger suas relações e identidades.

A questão ainda é tratada em duas claves distintas por Gert Hekma. Num primeiro artigo (“The World Minimized, the Homosexual Maximized”), o autor afirma que as versões locais do que seja ser homossexual, gay ou lésbica sempre existirão e não coincidirão com o “modelo global gay”, cujo maior problema é a arrogância, ou seja, um senso de superioridade moral do Ocidente em oposição ao resto do mundo. O tema é revisitado pelo autor num recorte local na resenha do livro de Graeme Reid, How to be a real gay. Emerging gay spaces in small towns in South África. Já o artigo de Shivananda Khan (“Following the rainbow: MSM, HIV and Social Justice in South Ásia”) analisa invenção, trajetória e usos do termo HSH e, inevitavelmente, aborda o desafio da multiplicidade das experiências homossexuais masculinas. Finalmente, Robert Davidson (“Queering Politics: Desexualizing the Mind”) explora a questão da fluidez e/ou fixação das identidades sexuais em termos de potenciais e riscos para uma política emancipatória a partir da teoria queer.

É porém significativo que a quase totalidade das/dos ativistas – em seus testemunhos, perfis e análises – não levantem maiores questões quanto à terminologia, seja em termos do viés ocidental (colonial) da sigla LGBT, seja no que diz respeito aos traços biomédicos das categorias orientação sexual e identidade de gênero. Por exemplo, Thomas Worgoor (Holanda) examina em detalhe as distinções entre as experiências de discriminação e as demandas de gays e transgêneros para marcar diferenças identitárias “fortes” e, para isto, usa termos marcadamente nosológicos, tais como “disforia de gênero”. Vozes ativistas dos países em desenvolvimento tampouco expressam maior preocupação em relação ao viés de terminologia e aos riscos apontados pelos autores acima mencionados, afirmando, em muitos casos, que foi positivo em suas vidas o encontro com comunidades LGBT. Jorge Bracamonte, como se verá a seguir, nesse sentido, é uma exceção. Este é um paradoxo da política sexual contemporânea que merece ser debatido com mais atenção.

Antes de examinar mais de perto os seis artigos da seção “Latin América” quero dizer ainda que li com muito prazer os testemunhos e os perfis de ativistas cujas trajetórias de vida são exemplares, inspiradoras e evocam outras memórias. Um exemplo é Simon Nkoli, que morreu de AIDS em 1998. Sua experiência como militante gay do Congresso Nacional Africano faz pensar em Herbert Daniel e nos questionamentos radicais do moralismo sexual que grassavam na esquerda brasileira nos anos 1980. É também curioso (e instigante) o aparecimento da palavra “amor” no vocabulário do ativismo LGBT. Martha McDevitt-Pugh fala dos “exilados do amor”, analisando os efeitos das disparidades legais em termos de casamento e união civil que afetam casais do mesmo sexo cujas nacionalidades são diferentes. Já Wendelmoet Boersema usa o termo “dissidentes do amor” para analisar a política sexual na Polônia dos anos 2000.

Quero mencionar ainda que alguns artigos que examinam as questões dos direitos LGBT na sua relação com os contextos políticos, econômicos e culturais mais amplos são excelentes: “Challenging sodomy law in India: Story of a continuing struggle”, de Arvind Narrain; “Queer Jihad, a View from South África”, de Scott Kugle; “Homosexuality in Cameroon. Identity and persecution”, de Peter Geschiere; e, especialmente, “The Struggle of the tonghzi. Homosexuality in China and the position of the Chinese comrades”, de Ties van de Werff, no qual descobrimos que o termo “tonghzi”, usado por gays e lésbicas chineses para se autodefinirem, tem como origem a palavra russa camarada (tovarich), usada durante a revolução. Finalmente, é excepcional a análise desenvolvida por André Hielkema dos textos literários Maurice e Brokeback Mountain e dos filmes neles inspirados.

A seção latino-americana conta com seis trabalhos. Alejandra Sardá-Chandiramani faz em poucas páginas um balanço da política sexual contemporânea na região, tarefa que ela mesma anuncia como impossível. O artigo de Marcelo Ferreyra (“Gender Identity and Extreme Poverty”) examina a aplicação dos princípios de Yogyakarta a situações de exclusão econômica vivenciadas por travestis e transexuais na América Latina. Juan Marco Vaggione trata do tema adoção por casais do mesmo sexo a partir da resenha de três livros recentemente publicados: Conjugalidades, parentalidades, gays e travestis (Miriam Grossi, Anna Paula Uziel e Luis Mello [eds.]. Garamond, 2007); Homoparentalidades. Nuevas Famílias (Eva Rosemberg e Beatriz Agrest Wainer [eds.], Lugar Editorial, 2007); Homossexualidade e Adoção (Anna Paula Uziel, Garamond, 2007). Há ainda os testemunhos de Jorge Bracamonte e Hazel Fonseca Navarro e um perfil de Belissa Andia.

Uma primeira observação a ser feita é que, no caso dos demais contextos regionais tratados na coletânea, as análises são temáticas ou têm recortes nacionais. Mas a América Latina é tratada a partir de uma perspectiva analítica regional. Ainda que o trabalho de Sardá-Chandiramani seja como um voo de pássaro em que detalhes e diferenciais se diluem, ele projeta uma razoável unidade de tendências, a qual contrasta com a relativa fragmentação que se observa no caso das demais regiões. Creio que seja importante interrogar criticamente este traço latino-americano.

Nossa política sexual é, de fato, mais homogênea? Ou este seria mais um efeito da construção que dela fazemos, cujo sentido é exatamente marcar uma identidade regional mais homogênea? Sardá-Chandiramani sugere que esta pode ser a resposta quando afirma que:

[...] os movimentos latino-americanos têm buscado em si mesmos apoio e solidariedade e nem tanto nas organizações internacionais, o que permitiu à região uma maior autonomia em termos de definição de agendas e construções de relações políticas (sejam elas de confrontação ou de colaboração, dependendo das circunstâncias) com as instituições, o que explica, em grande medida, os ganhos em termos legais em anos recentes (:199-200. Tradução minha).


É bastante significativo, contudo, que a autora indique como um desafio para o futuro a superação do que ela denomina de insularidade (linguística e política).

Sardá-Chandiramani também identifica como outro traço marcante das políticas relacionadas aos direitos sexuais na região o esforço de diálogo e a construção de alianças no interior do movimentos LGBT, mas também “para fora”: com as feministas, grupos afro-latinos e indígenas, sindicatos. Deve se dizer que no conjunto da coletânea esta questão é tratada poucas vezes: por Narrain, em sua análise da luta contra o artigo 377 do código penal indiano; na trajetória da relação entre Simon Nkoli e a ANC; e na análise desenvolvida por Peter Purton sobre a pauta dos direitos LGBT na agenda sindical britânica.

Como bem sabemos, há nos esforços de diálogo que têm ocorrido na região uma inquietação com o padrão de desigualdade que caracteriza as sociedades latino-americanas. Este é o pano de fundo do artigo de Marcelo Ferreyra, que tem como objetivo estabelecer parâmetros para os direitos econômicos e sociais das pessoas trans. A proposta desenvolvida por Ferreyra retoma os dados da pesquisa realizada pela Asociación de Lucha por la Identidad Travesti y Transexual (ALITT) sobre condições de saúde, trabalho e renda da população trans. Esses dados foram apresentados pelo Relator Especial para os Direitos à Saúde, Anand Grover, quando de sua visita à região em 2009, e também constam de um relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU pela Relatora Especial para Pobreza, Magdalena Sepúlveda. Esses esforços são, a meu ver, muito significativos, pois interrogam a percepção dominante (à esquerda e à direita) de que a sexualidade seja uma frivolidade que não tem relevância em face das questões sociais mais importantes.

Parece também necessário sublinhar dois outros desafios apontados por Sardá-Chandiramani como temas que estão merecendo debates mais sistemáticos na América Latina. O primeiro diz respeito ao tema do financiamento. Continuam escassos os recursos internacionais para apoiar a pesquisa e o ativismo LGBT; fontes tradicionais têm abandonado esse campo e entram em cena financiadores que, segundo a autora, impõem modalidades específicas de trabalho e condicionalidades. Paralelamente, vem se ampliando o apoio governamental, especialmente no Brasil, a projetos de promoção dos direitos LGBT. Em relação a este último aspecto, vale retomar sua análise de que na região “a sorte do movimento LGBT está fortemente vinculada à sorte da tendência política em direção à centro-esquerda nos governos da região, e pode sofrer um impacto muito negativo caso os ventos da política comecem a soprar em direção a um retrocesso conservador” (:196. Tradução minha). Com bem sabemos, o Chile é hoje o contexto em que esta hipótese poderá ser testada.

Já a resenha elaborada por Vaggione nos lembra que demanda por adoção é um dos temas mais difíceis da pauta de direitos LGBT, porque se sobrepõe de maneira conflitiva a certas interpretações das normas relativas à agenda de proteção dos direitos das crianças. Entretanto, como bem demonstra o autor, os três livros analisados indicam que, embora ainda sejam muitos os obstáculos, mudanças significativas podem ser observadas nas sociedades e nos sistemas judiciais em relação à possibilidade de adoção por pessoas cuja sexualidade é diferente da norma ou por casais do mesmo sexo. Como se sabe, no Brasil e em outros países da região, essas transformações coexistem e entram em conflito com impasses no plano legislativo e os ataques virulentos por parte do conservadorismo religioso.

Para concluir, quero retomar algumas ideias desenvolvidas por Jorge Bracamonte que dialogam com os temas mais significativos do debate regional e com questões tratadas em outras seções da coletânea. O ativista peruano considera que os movimentos LGBT muitas vezes são distraídos por disputas internas quanto a se alinharem com governos ou a privilegiarem a resistência cultural. Isto faz com que sejam diluídos os vínculos com as experiências de discriminação e injustiça relacionadas à identidade sexual, à classe, à raça ou à idade que são vividas pelas pessoas. Ele também lembra que a suposta existência de uma pessoa LGBT “universal” tem dificultado a compreensão de questões como a violência que afeta as mulheres em relações do mesmo sexo, ou os efeitos das leis criminais em outros países e em outras regiões, ou o significado dos crimes de ódio contra travestis e transexuais. Segundo Bracamonte:

Nada no ativismo LGBT terá significado ou fundamento ético se o movimento perder sua capacidade de indignação e empatia com a experiência das pessoas LGBT cujas vidas não são respeitadas e cuja dignidade não está garantida” (:217. Tradução minha).