Sexualidad, Salud y Sociedad

REVISTA LATINOAMERICANA


ISSN 1984-6487 / n.4 - 2010 - pp.182-188 / www.sexualidadsaludysociedad.org



BORRILLO, Daniel. 2009. Le Droit des sexualités. Paris: PUF

Colletion Les vois du droit.



Laura Lowenkron

Doutoranda em Antropologia Social - Museu Nacional/UFRJ


> lauralowenkron@uol.com.br



A partir da segunda metade do século XX, observa-se uma irrupção de questionamentos das regras que durante muito tempo governaram as relações de gênero e as condutas sexuais, acompanhada de um processo de enunciação contínua da sexualidade tendo em vista o paradigma dos direitos humanos. Os movimentos feminista e LGBT (relativos aos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) foram os principais responsáveis por trazer a sexualidade para o centro dos debates políticos desde os anos 1960 e 1970, respectivamente. Inicialmente associado à luta feminista em defesa da igualdade entre homens e mulheres e contra a violência e a discriminação de gênero, o complexo de políticas e reivindicações ligado às sexualidades inclui, de maneira decisiva, demandas de outros sujeitos políticos – como gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, profissionais do sexo etc. – definidos a partir de práticas e/ou identidades sexuais não-convencionais, ou seja, que se afastam da norma heterossexual e reprodutiva.

É nesse contexto que se insere a obra de Daniel Borrillo, Le droit des sexualités. Intelectual argentino radicado na França, o autor parte da análise do contexto político e jurídico francês, em particular, e europeu, em geral, para oferecer um rico panorama dos principais temas e debates que constituem o universo dos chamados “direitos sexuais” no mundo ocidental contemporâneo. O livro procura contribuir, assim, para a construção de uma teoria jurídica da sexualidade, emancipada da moral religiosa judaico-cristã e dos discursos médicos, cujos resíduos constituem, segundo o autor, um obstáculo para um regime democrático da sexualidade pautado na “neutralidade ética do Estado”.

Daniel Borrillo é um militante radical da autonomia da vontade do sujeito erótico. Baseado em uma filosofia liberal que tem suas raízes no Iluminismo, o autor define a relação sexual como uma modalidade de contrato entre dois ou mais indivíduos livres. Com isto, ele defende uma regulação jurídica da sexualidade construída a partir do ideal individualista moderno de sujeito autônomo e responsável, que manifesta sua liberdade a partir de escolhas racionais. De acordo com esta concepção, o jurista entende que o Direito deveria guiar sua intervenção sobre os comportamentos sexuais segundo dois grandes princípios: o consentimento dos indivíduos adultos e a ausência de danos a outros. Desde que não contrarie estas duas condições, o autor considera que toda conduta sexual, assim como qualquer escolha individual, deveria ser considerada igualmente legítima pelo Direito.

Elaborado após uma pesquisa jurídica extensa, que envolveu análise de legislação e jurisprudência em diferentes momentos históricos, e de uma bibliografia multidisciplinar, o estudo proposto neste livro é dividido em três grandes capítulos, subdivididos, por sua vez, em vários tópicos. O primeiro capítulo, intitulado “A regulação da atividade erótica”, introduz os princípios políticos e filosóficos que regulam a vida sexual, passando pelas interdições sexuais, pelos fundamentos da liberdade sexual e pelas tensões entre liberdade, igualdade e dignidade humana.

Inicialmente, o autor vai buscar na interdição do incesto, de forma simultânea, as origens do controle da sexualidade e do mundo normativo. Ao retomar as teorias de Lévi-Strauss e de Freud, que definem a proibição do incesto como principal elemento que marca a passagem da natureza para a cultura, Borrillo mostra como a regulação da sexualidade constitui a matriz das normas e de todo o sistema jurídico. Ainda que o incesto em si não seja criminalizado pela legislação francesa desde o final do século XVIII e que, atualmente, as relações incestuosas só possam ser penalizadas na França por meio de sanções jurídicas indiretas (como circunstância agravante de alguns crimes sexuais e através das regras de impedimento de casamento e de filiação), enquanto mito de origem da cultura, esta interdição revela o lugar central da sexualidade na constituição da ordem social, bem como a natureza intrinsecamente social da ordem sexual.

É no final do século XVIII que o autor reconhece a mudança axiológica decisiva para a liberação da sexualidade em relação à moral tradicional e às premissas religiosas judaico-cristãs que determinavam a economia erótica ocidental até aquele momento. A partir do impulso da filosofia do Iluminismo, o consentimento torna-se o elemento fundamental que determina a licitude da atividade sexual. Este novo paradigma tem como base a ideia segundo a qual a legitimidade de um ato repousa exclusivamente na vontade individual autônoma. A liberdade sexual decorre, portanto, do direito do indivíduo de dispor de seu corpo, parte integrante da noção de autonomia pessoal. Além do princípio de livre disposição de si, a liberdade sexual constitui também um elemento fundamental do direito à intimidade e à vida privada.

Desse modo, a modernidade implicaria, segundo Borrillo, a renúncia de uma erótica uniformizada em prol de uma concepção pluralista das sexualidades, que deveria atribuir o mesmo valor às diferentes escolhas individuais. Porém, apesar de o ideal individualista e voluntarista estar presente nas nossas categorias políticas e jurídicas desde o século XVIII, o autor considera que a regulação da sexualidade encontra ainda obstáculos para assumir os valores da modernidade, em especial, no domínio da liberdade sexual. Paralelamente a um movimento de democratização sexual, no que se refere à crescente garantia jurídica de igualdade e de não-discriminação em relação ao gênero e à orientação sexual, ele identifica o desenvolvimento de uma forma de demagogia sexual que marginaliza as práticas sexuais não-convencionais, ainda que elas envolvam relações consentidas entre adultos.

O autor diagnostica, assim, um retorno progressivo de uma concepção conservadora da sexualidade, que pode ser designado como “pânico moral” e seu corolário, o “pânico sexual”. Trata-se de uma reação moral exagerada de alguns grupos conservadores em face das práticas sexuais, frequentemente minoritárias que eles julgam “desviantes” e “perigosas” para a sociedade. No âmbito jurídico, observa-se a crescente penalização das condutas sexuais e a criação de um regime de exceção no tratamento dos crimes de natureza sexual. Desse modo, Borrillo afirma que o crime sexual representa, na atualidade, o paradigma do mal absoluto e que o delinquente sexual é visto como ser associal, portador de periculosidade por excelência.

Além do discurso conservador mais clássico, que invoca o medo e o perigo, outro argumento ainda mais pernicioso, porque mais sutil, tem servido para limitar a liberdade sexual (e não para garanti-la): a noção de “dignidade humana”. Segundo o autor, este imperativo ético superior é frequentemente acionado por autoridades públicas para condenar determinadas manifestações da sexualidade, tais como a prostituição, a pornografia e as práticas sadomasoquistas.

Se a premissa consensualista permitiu estabelecer que toda sexualidade consentida entre adultos é legítima, o princípio da dignidade humana vem se opor à escolha do indivíduo, seja porque se considera que ele não é verdadeiramente livre em algumas circunstâncias, seja pelo argumento de que o indivíduo não pode agir contra sua própria dignidade. O Estado substituiria, então, o lugar do Criador, mas a lógica transcendente permanece: uma instância superior conhece melhor do que os indivíduos aquilo que é digno ou indigno para si próprio e determina a boa e a má prática sexual. Trata-se, portanto, de um julgamento de valor ideológico sobre o conteúdo do ato sexual que, na perspectiva do autor, não faz parte das competências do Direito em um regime laico e democrático.

O segundo capítulo do livro, sob o título “Liberdade, igualdade e criminalidade sexuais”, oferece as ferramentas conceituais e terminológicas necessárias para que mesmo o leitor menos familiarizado com a temática tenha condições de transitar no campo discursivo dos direitos relativos à sexualidade. Inicialmente, são definidas noções como sexo, gênero, sexualidade e orientação sexual, e apresentados os movimentos de dissociação (a partir da evolução dos métodos contraceptivos e da legalização do aborto) e de associação (por meio da análise dos argumentos de oposição ao casamento e à filiação homossexuais) entre sexualidade e reprodução. A seguir, é apresentada uma crítica desconstrucionista aos pressupostos essencialistas que servem de base para o sexismo e a homofobia, propondo-se uma dissolução dos mecanismos que garantem a reprodução da supremacia simbólica de heterossexualidade (heteronormatividade).

Ainda no segundo capítulo, o autor aborda superficialmente a questão da capacidade/incapacidade jurídica em relação ao consentimento sexual, passando pelo tema das maioridades (civil, penal e sexual). Mas é sobre a questão da igualdade entre os sexos (homens e mulheres) e principalmente entre as sexualidades (homossexualidade-heterossexualidade) que o autor se debruça com maior profundidade nesta parte do livro. Ele traça um histórico da mudança do estatuto das mulheres e dos homossexuais na sociedade, analisando a evolução dos instrumentos jurídicos que asseguram a igualdade de oportunidades, de um lado, e a penalização das discriminações baseadas no gênero e na orientação sexual, do outro. É possível constatar, assim, a coexistência de dois movimentos contraditórios: um que defende um crescente apagamento das diferenças, em nome da igualdade, e outro que reivindica um tratamento diferenciado em função das necessidades ou das vulnerabilidades especiais de determinados sujeitos, demandando uma proteção particularizada do Estado.

Especial destaque é conferido à passagem da criminalização da sodomia à penalização da homofobia, fazendo com que, em um curto período de tempo, a homossexualidade passasse a ser não apenas tolerada, a partir de sua descriminalização no início dos anos 1980, mas progressivamente protegida contra toda forma de discriminação por parte dos Estados, das empresas e dos indivíduos. Segundo Borrillo, apesar de as desigualdades subsistirem no nível dos casais homossexuais e das famílias homoparentais, em função das restrições ao casamento e à filiação, a análise das transformações da legislação e da jurisprudência das cortes francesas e europeias, tanto em âmbito civil como penal, permite reconhecer um progresso considerável em matéria de luta contra a discriminação dos indivíduos por sua orientação sexual.

Militante defensor do casamento homossexual, o autor considera a sua legitimação pelo Estado como a última fronteira para a igualdade entre as sexualidades: “o acesso ao casamento a todos os casais, independentemente do sexo dos parceiros, permitiria abolir a hierarquia das sexualidades e romper com a supremacia social, cultural e jurídica da heterossexualidade” (:105. Tradução minha). Em contraponto, seria interessante retomar as observações de Judith Butler, em seu artigo “O parentesco é sempre tido como heterossexual?” (2003). Sem ignorar os benefícios simbólicos e materiais provenientes da legimitação pelo Estado, a autora sugere que o casamento homossexual reorganizaria as hierarquias, ao invés de aboli-las, ao produzir o deslocamento de uma deslegitimação coletiva para uma deslegitimação seletiva entre gays casados e não-casados. Não se trata de uma oposição ao casamento homossexual, mas de uma crítica ao fato de determinados bens simbólicos e sociais estarem condicionados ao casamento.

O terceiro capítulo, “Prescrições e proscrições sexuais”, apresenta e analisa exemplos concretos de regulação das sexualidades não-convencionais, organizadas em função da suma divisão defendida pelo autor: sexualidades consentidas e sexualidades submetidas. No primeiro grupo, aparecem a homossexualidade, a prostituição (diferenciada da exploração), a pornografia, o sadomasoquismo, a sexualidade dos presidiários e dos doentes mentais. O grupo das sexualidades não-consentidas, por sua vez, é formado pelas práticas sexuais reguladas pelo direito penal, a saber: o estupro e as agressões sexuais em geral, a exibição sexual, o assédio sexual, a difusão de mensagens contra a decência, a pedofilia e a pedopornografia, as mutiliações sexuais (em especial, a excisão), o proxenetismo, a transmissão voluntária de HIV e a necrofilia.

Sobre o plano da sexualidade consentida entre adultos, para o autor, nenhum pressuposto moral justificaria a limitação da liberdade sexual, nem mesmo em relação às práticas mais extremas, como o sadomasoquismo, a extirpação do clitóris e o bare-backing. A respeito do plano da criminalidade sexual, Borrillo considera que a norma penal deveria tratar essas infrações com as ferramentas jurídicas comuns e não sob um regime de exceção. Segundo ele, não se trata de propor impunidade para os criminosos sexuais, mas de ter um olhar crítico sobre o estatuto específico da sexualidade no sistema penal, caracterizado pela desmedida repressão, a supervitimização e a psicologização dos atos criminosos. O autor defende ainda algumas teses polêmicas, como a despenalização da necrofilia (juridicamente tratada enquanto crime de violação de cadáver), caso a pessoa, antes de morrer, tenha manifestado o seu consentimento sexual, assim como ocorre com a doação de órgãos.

Vale notar que o único tópico que aparece de maneira naturalizada e não problematizada é o que se refere à pedofilia. Apesar de optar por uma categoria clínica (que não faz parte das classificações do direito penal, mas da psiquiatria) para reunir um conjunto de infrações sexuais envolvendo crianças, o autor destaca que, juridicamente, o que determina a infração não é o caráter psicológico do ato, mas o fato de que ele seja praticado com uma pessoa incapaz de consentir livremente, tratando esse pressuposto de incapacidade em relação à idade de maneira naturalizada. Não se trata de questionar a interdição das relações sexuais com crianças, mas de se perguntar por que ela não pode ser abordada do mesmo modo que as demais normas e proibições, a partir de uma perspectiva histórica e social, ao invés de apresentá-la de maneira essencializada.

Na última parte do capítulo, é apresentado um estudo das principais convenções internacionais relativas aos direitos sexuais e reprodutivos, considerados principalmente a partir de um bias reprodutivo e de um ângulo médico (saúde sexual), por meio de temas como contracepção, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e educação sexual para a reprodução. O capítulo aborda ainda a regulação do direito de asilo para as minorias sexuais perseguidas em seus países de origem e a luta contra o turismo sexual envolvendo menores de idade. No que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos, o autor ilumina uma dimensão biopolítica nem sempre tão explícita nos debates e nas análises sobre o tema, ao destacar que a problemática da superpopulação no Terceiro Mundo e o interesse no controle demográfico serviram de base para a comunidade internacional apoiar os direitos das mulheres em matéria sexual.

Por fim, vale destacar que, embora proponha uma regulação jurídica da sexualidade emancipada das premissas religiosas (que separam o sexo em moral e imoral) e dos modelos médicos (que dividem o sexo em normal e patológico), a ordem sexual defendida pelo autor, pautada na supremacia do consentimento e no princípio de não-dano aos outros, não deveria ser entendida como uma perspectiva “neutra”, como ele próprio sugere. A obra pode ser lida, antes, como um manifesto, inserido em um processo político mais amplo, que defende uma nova economia moral do uso dos prazeres. Pecado por excelência, pelo qual o homem fora expulso do paraíso, a sexualidade foi transformada, a partir do final do século XX, em um valor e, assim, em um direito. Ao menos, em Le Droit des sexualités, a sexualidade parece constituir um dos domínios mais valorizados da atividade humana, na medida em que é apresentada como locus privilegiado de realização da autonomia da vontade.



Referência bibliográfica


BUTLER, Judith. 2003. “O parentesco é sempre tido como heterossexual?” Cadernos Pagu. (21) pp.219-260.

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