Sexualidad, Salud y Sociedad

REVISTA LATINOAMERICANA


ISSN 1984-6487 / n.4 - 2010 - pp.105-126 / www.sexualidadsaludysociedad.org


Eros e seus descontentes:

da Reforma Protestante ao sexo virtual



Julio Cesar Lemes de Castro

Doutor em Comunicação e Semiótica

Pontifícia Universidade Cátólica - São Paulo, Brasil


> jccastro@osite.com.br


Resumo: Este artigo identifica, ao longo da modernidade, duas grandes tendências em ação ligadas aos mundos da produção e do consumo (em termos econômicos) e aos registros do simbólico e do imaginário (em termos da psicanálise lacaniana), e explora os desdobramentos dessas tendências no terreno sexual. O título – alusão, obviamente, a Civilization and its discontents, título que recebeu em inglês O mal-estar na civilização, de Freud (1974b) – remete ao ônus psíquico embutido nos paradigmas sexuais dominantes durante uma boa parte da modernidade e na contemporaneidade, em que o descontentamento está associado, respectivamente, à repressão e ao esvaziamento da sexualidade. As características da sexualidade contemporânea são ilustradas por um fenômeno midiático contemporâneo, o sexo virtual, para o qual confluem o consumo e o imaginário, aspectos que caracterizam a tendência triunfante de nossa época.

Palavras-chave: sexualidade; psicanálise; capitalismo; modernidade; sexo virtual


Eros y sus descontentos: de la Reforma Protestante al sexo virtual

Resumen: El presente artículo identifica, en el transcurso de la modernidad, dos grandes tendencias en acción, vinculadas a los mundos de la producción y el consumo (en términos económicos) y a los registros de lo simbólico y lo imaginario (en términos del psicoanálisis lacaniano), y explora los desdoblamientos de dichas tendencias en el terreno sexual. El título –que alude, obviamente, a Civilization and its discontents, título en inglés de El malestar en la cultura de Freud– remite al onus psíquico embutido en los paradigmas sexuales dominantes a lo largo de una buena parte de la modernidad y la contemporaneidad, en el cual el malestar está asociado, respectivamente, a la represión y al vaciamiento de la sexualidad. Las características de la sexualidad contemporánea son ilustradas aquí por un fenómeno mediático contemporáneo, el sexo virtual, en el que confluyen el consumo y lo imaginario, aspectos que caracterizan la tendencia triunfante de nuestra época.

Palabras clave: sexualidad; psicoanálisis; capitalismo; modernidad; sexo virtual


Eros and its discontents: from the Protestant Reform to virtual sex

Abstract: This paper identifies two great trends at work during the course of Modernity, and explores the way they unfold in the sexual field: one is linked to the worlds of production and consumption (in economic terms), and the other to the registers of the Symbolic and the Imaginary (in Lacanian psychoanalytic terms). Resonating with Freud’s Civilization and its discontents – the title refers to the psychic burden imposed by the sexual paradigms dominant in Modernity and the contemporary, which associate discontent, respectively, to repression and to the exhaustion of sexuality. These characteristics of contemporary sexuality are illustrated by virtual sex, a current media phenomenon in which consumption and the Imaginary converge as the triumphant tendencies of our era.

Keywords: sexuality; psychoanalysis; capitalism; modernity; virtual sex.



Reforma protestante e moral vitoriana

Para o bem e para o mal, afirma Nietzsche (2001:259-260), é a Reforma que prepara o terreno para a modernidade. O ensaio de Weber (2004) sobre a relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo é hoje considerado um clássico. Seu mérito não é, como pode parecer à primeira vista, o de estabelecer um nexo causal entre o desenvolvimento das ideias religiosas e o desenvolvimento do capitalismo (o próprio autor reconhece que a causalidade atua nos dois sentidos), mas o de aprofundar o paralelismo entre as duas séries de fenômenos.

Weber parte das concepções de Lutero, para quem o único modo de vida aceitável por Deus é o cumprimento da vocação secular de cada um, ou seja, das responsabilidades que cabem ao indivíduo em decorrência de sua posição no mundo. Lutero rejeita tanto o ascetismo monástico quanto a exuberância do mundo sensível (incluindo o culto às imagens e o luxo no seio da Igreja) como instrumentos para a glorificação de Deus. O que mais o incomoda é a ideia de alcançar a salvação por intermédio de obras como a caridade e a compra de indulgências. Subjacente às críticas de Lutero à ociosidade, à mendicância, às despesas suntuosas da Igreja ou em prol dela, há um elemento comum, comenta Bataille (1975:153-154): a condenação da improdutividade, da dilapidação de recursos. Sua posição é essencialmente negativa (1975:154); ele representa “uma revolta ingênua, meio camponesa” (1975:147), “uma revolta popular em favor dos honestos, cândidos e superficiais” (Nietzsche, 2001:244).

Entre os numerosos doutrinadores reformistas que sucedem Lutero, Calvino assume papel de destaque. Ele desenvolve a concepção da predestinação, segundo a qual Deus já teria determinado de antemão quem seria salvo e quem seria condenado. Poder-se-ia esperar que esta concepção privasse a vida de sentido e direção e gerasse apatia (Bauman, 2001:240). Seu efeito, porém, é diametralmente oposto: para os seguidores de Calvino, embora os desígnios divinos sejam inescrutáveis, cada um tem o dever de pressupor que é um dos eleitos e investir ao máximo em sua vocação. Por um lado, tal atitude serve para evitar as tentações que possam desviá-lo de seu caminho – a própria dúvida sobre ser ou não um dos eleitos resultaria da ação do Diabo. Por outro lado, ela permite consolidar a confiança em ser escolhido, na medida em que as realizações temporais funcionam como indícios da salvação (Weber, 2004:103-104).

A atividade incessante dos calvinistas, nota Žižek (1991:70), trai o temor de que o inevitável possa afinal não se realizar, como ocorre quando assistimos a um filme narrado de frente para trás: apesar de já conhecermos o desfecho, em vários momentos temos a impressão de que a história poderia seguir outro rumo. Essa ansiedade decorre naturalmente da lógica da predestinação; não seria difícil imaginar Deus respirando aliviado quando um grande pecador acaba por cometer seu crime: “Finalmente você fez! Tenho esperado por isso por toda a sua vida miserável!” (Žižek, 2001:11). Portanto, se Lutero valoriza a ação terrena, o calvinismo acrescenta-lhe um poderoso estímulo. Calvino, que representa as aspirações das classes médias dos centros comerciais (Bataille, 1975:147-148), não desaprova a riqueza enquanto tal, mas apenas os efeitos eventualmente associados a ela: o relaxamento, o apelo da carne, o afastamento da conduta reta. Tudo isso faz do calvinismo – seguido de correntes próximas, como os pietistas, os metodistas e as seitas (ana)batistas – a principal força religiosa que favorece a ascensão do modo de produção capitalista.

Não é difícil perceber a conexão entre as características valorizadas pela ética protestante e o caráter anal descrito por Freud, que tem origem na sublimação do erotismo anal (Freud, 1976a:177) e é típico das pessoas “especialmente ordeiras, parcimoniosas e obstinadas” (1976:175, grifos do autor). Esta conexão é formulada por Erich Fromm (O medo à liberdade) que, no entanto, seguindo a tendência dos neofreudianos, esvazia o conceito de Freud de seu aspecto corporal, traduzindo o caráter anal como “caráter autoritário”, e se torna alvo da crítica de Brown (1985:203-204), numa época, os anos 50, em que Lacan também demarcava terreno em relação aos neofreudianos. Brown (1985:202-233) recorre a elementos históricos para aprofundar a conexão capitalismo/analidade. Ele mostra que Lutero é obcecado pelo Diabo, pessoalmente (narra frequentes encontros com o Diabo) e em sua doutrina. Para Lutero, o corpo e o mundo visível pertencem ao Diabo; o próprio papa é o Diabo encarnado, o Anticristo; o mundo capitalista (e particularmente a usura) representa o Diabo. A figura do Diabo, por sua vez, reporta-se de várias formas à analidade: uma de suas metáforas designa o homem como o excremento que sai do ânus do Diabo.

A austeridade do protestantismo caracteriza também sua visão da sexualidade, que é associada primariamente com a reprodução dentro da estrutura familiar (D’Emilio & Freedman, 1997:v,xi,xv). Nesse sentido, o celibato é atacado e a importância do sexo dentro do casamento é enfatizada, mas ao mesmo tempo são condenados a contracepção, o aborto, a sodomia, a prostituição e o adultério (Garton, 2004:81-82). O comportamento sexual é objeto do escrutínio da comunidade e os desvios são criminalizados, com o intuito de garantir que a expressão sexual seja canalizada para dentro do casamento e vinculada à procriação (D’Emilio & Freedman, 1997:16). O resultado é a imagem clássica do puritano como alguém obcecado pelo “medo avassalador de que alguém, em algum lugar, possa estar sentindo-se feliz”, na frase célebre de Mencken, jornalista conhecido como “o Nietszche americano”.

Nos países católicos, a Contra-Reforma segue caminho semelhante, contrapondo-se ao laxismo do clero e à libertinagem (Guillebaud, 1998:263). O rigorismo no domínio sexual acaba por conferir ao sexo um papel mais importante na vida social. Foucault (1984b:41) observa que, na Antiguidade, a preocupação com a comida era maior do que a preocupação com o sexo; na Idade Média, as duas equivaliam-se; do século XVII em diante, a preocupação com o sexo passa a ser dominante.

A partir do Iluminismo, o controle do desejo ganha um novo impulso. Desenvolve-se uma biopolítica da população, através de intervenções e controles reguladores que enfocam os nascimentos, a longevidade, a mortalidade, o nível de saúde (Foucault, 1984a:131). O malthusianismo coloca na ordem do dia a necessidade de limitar o crescimento da população (Garton, 2004:105-106). Aliando-se ao discurso médico, a burguesia leva a cabo uma gestão rígida da sexualidade, como forma de contrapor-se à “degeneração” aristocrática e à “imprevidência” operária. A preocupação em poupar energias vitais, que ecoa a preocupação com a acumulação econômica, manifesta-se na condenação da masturbação e na regulação da duração e da frequência dos atos sexuais (Guillebaud, 1998:270-277). Para o Dr. William Acton, um dos médicos mais destacados da Inglaterra vitoriana, o corpo humano contém um reservatório finito de energia sexual que declina em função do consumo, de acordo com um modelo hidráulico (Garton, 2004:4, 110). O establishment médico engaja-se numa verdadeira cruzada contra a masturbação, atribuindo-lhe toda sorte de efeitos nefastos sobre a saúde (Guillebaud, 1998:267-270; D’Emilio & Freedman, 1997:68-69; Garton, 2004:111-112).

O juiz alemão Daniel Paul Schreber, autor de Memórias de um doente dos nervos (obra que narra sua experiência psicótica e que foi objeto de análise tanto de Freud como de Lacan), pode ser considerado uma vítima dessa cruzada: seu pai, um eminente pedagogo em seu tempo e um “protofoucaultiano pai disciplinar” (Žižek, 1997:11), concebeu métodos rigorosos para evitar a masturbação infantil e testou-os nos próprios filhos. Outros ingredientes da época vitoriana são o ideal de pureza feminina – médicos e moralistas veem pouco apetite sexual nas mulheres (D’Emilio & Freedman, 1997:70) – e o ideal correlato de autocontrole para os homens – supostamente muito mais atraídos pelo sexo (1997:68, 72-73). Movimentos de reforma moral engajam-se na luta contra a prostituição (1997:140-141, 142-144, 148-150) e contra a pornografia (1997:157, 159-161, 167). A moral vitoriana, que distingue o século XIX e persiste no início do século XX, é assim retratada por Freud:

Se fizermos um histórico extenso da vida sexual de nossa época e sobretudo das classes que são o sustentáculo da civilização humana, seremos tentados a declarar que é a contragosto que a maioria daqueles que vivem nos dias de hoje obedecem à lei de propagar a espécie; sentem-se, nesse processo, diminuídos em sua dignidade humana. Entre nós, somente a classe menos culta de nossa sociedade difere desse ponto de vista sobre a vida sexual. Para a classe mais alta e refinada, ela constitui uma coisa que se oculta, desde que é considerada culturalmente inferior, e quando se permitem dar-lhe vazão, fazem-no contra a sua consciência (1970:89).


A rigor, o sacrifício do gozo sempre funcionou como chave da organização social (McGowan, 2004:11). É o que Lévi-Strauss demonstra em As estruturas elementares do parentesco, ao analisar o caráter universal da proibição do incesto. É outrossim o que Freud (1974a) postula em Totem e tabu, ao propor o mito fundador em que os irmãos se unem para assassinar o pai da horda primeva e, subsequentemente, se submetem às leis criadas por eles próprios, no que constitui o contrato social inaugural. A proibição mantém a sociedade coesa porque os sujeitos se tornam parceiros na insatisfação, ao invés de rivais no gozo e, experienciando a perda em si próprios, são levados a procurar no Outro o que está faltando (McGowan, 2004:17). O pacto simbólico, efetivado na linguagem, representa essa participação comum na perda (Melman, 2005:109).

Na medida em que o capitalismo, em seu período liberal, reprime o gozo de forma semelhante às sociedades tradicionais, a ruptura moderna à primeira vista não parece tão radical (McGowan, 2004:31). Onde devemos buscar então a singularidade da modernidade? No formato específico que assume nela o sacrifício do gozo: para usar a formulação de Marcuse, o princípio da realidade subordina o desejo à produtividade (Illouz, 1997:7). Ancorada na ética protestante e no Iluminismo, a moralidade moderna é feita sob medida para o homo faber (Bauman, 2003:49); na modernidade temos uma “ética de produção sexual” (Abelove apud Garton, 2004:86).

Contracorrente romântica

Se o capitalismo depende do reinvestimento do capital e da disciplina da força de trabalho, ele depende igualmente do ânimo consumista dos compradores que absorvem a expansão da produção. A evolução do capitalismo é atravessada por uma tensão subjacente entre produção e consumo, pois ambas devem atender a condições diferentes: para que o sistema funcione, assinala Bell (1978:72), é preciso que os indivíduos sejam trabalhadores dedicados durante o dia e hedonistas à noite.

À ética protestante Campbell (1989) contrapõe o que ele chama de ética romântica. Para Campbell, a análise de Weber sobre o protestantismo é parcial, pois se concentra em elementos que evidenciam sua relação com a criação de riqueza. Há vertentes do protestantismo, porém, que favorecem aspectos emocionais ligados ao consumo, e ajudam assim a criar o clima para a revolução do consumo que ocorre no século XVIII, paralelamente à Revolução Industrial. Essa explosão do consumo está associada a produtos supérfluos, à moda, ao lazer, ao papel crescente da classe média e das mulheres, à emergência do amor romântico e do romantismo como movimento cultural. A partir daí, é possível aventar a existência de uma contracorrente romântica que se estende do século XVIII ao século XX, aglutinando facetas que vão do mundo do consumo à cultura e ao comportamento, e que se robustece progressivamente.

Para Campbell (1989), na passagem do hedonismo tradicional para o moderno, a sensação dá lugar à emoção. Esta conecta imagens mentais aos estímulos físicos, proporcionando ao sujeito maior autonomia no controle do prazer. A imaginação amplia o alcance da emoção e, portanto, do hedonismo. Diferentemente do hedonista tradicional, que desejava algo que ele já conhecia, buscando assim a repetição de sensações, o hedonista moderno tem seu desejo enlaçado ao sonhar acordado, e esse sonhar acordado já é fonte de prazer. Quando o desejo é consumado, a fonte de prazer é estancada, levando a um novo desejo, e assim sucessivamente. É essa dinâmica que preside o universo do consumo moderno. Daí porque a publicidade apela mais para sonhos do que para necessidades, e daí porque o gosto, os padrões estéticos e as modas mudam continuamente.

A ideia do amor romântico aparece igualmente no século XVIII (Giddens, 1992:39; Illouz, 1997:27; D’Emilio & Freedman, 1997:42). Tal como os bens de consumo, o amor romântico tem relação com a novidade: diferentemente das sociedades tradicionais, nas sociedades modernas cada um tem a oportunidade de lidar com muitas pessoas estranhas (Campbell, 1989:93-94). Também à semelhança do mundo do consumo, no amor romântico o sonho tem uma posição privilegiada em relação à realidade; no caso específico do amor à primeira vista, a realidade é antecipada pelo sonho e coincide com ele (1989:245, n. 23). O amor romântico associa pela primeira vez a ideia de amor com as ideias de liberdade e de autorrealização. Ele está ligado a uma narrativa de vida individual, fornecendo ao sujeito um canal potencial para controlar o futuro, em lugar de colocá-lo como um refém nas mãos do destino. A emergência do amor romântico relaciona-se também às mudanças nas relações entre pais e filhos, e à valorização da maternidade e do lar (Giddens, 1992:39-45).

Outro fenômeno que ocorre no século XVIII é o que alguns autores qualificam como uma verdadeira revolução sexual (Garton, 2004:81-82). Indícios dessa mudança nos costumes são o menor poder parental para interferir na decisão dos filhos de se casarem (D’Emilio & Freedman, 1997:66), a utilização crescente da gravidez por parte dos jovens como recurso para fazer com que os pais aceitem seu casamento (1997:43), o aumento das separações em função da maior ênfase no amor e na satisfação sexual como requisitos para o casamento (1997:48), a valorização da aparência física das mulheres (1997:42-43), o crescimento da prostituição (1997:50-51). Nessa época desenvolve-se a arte da sedução, a moda expõe de forma mais generosa o corpo feminino, a pornografia ganha espaço. Os libertinos recorrem com mais frequência a acessórios como consolos e camisinhas, passam a contar com clubes para suas experiências sexuais e exploram todo tipo de limites corporais, como mostra o exemplo de Sade (Garton, 2004:91-93).

A relação entre amor romântico e sexualidade é ambígua: o amor romântico ao mesmo tempo estimula a sexualidade, na medida em que envolve ardor e paixão, e distancia-se dela, ao assumir uma dimensão sublime (Giddens, 1992:40, 45). Também é ambígua a relação entre sexualidade e Iluminismo: se este contribui para novas formas de repressão, como vimos, ele também representa uma força liberadora, por conta da postura anticlerical (Garton, 2004:92), da valorização do indivíduo em relação à sociedade, da valorização de tudo o que é natural (D’Emilio & Freedman, 1997:40), da diferenciação entre os corpos masculino e feminino – até então o corpo feminino era visto como uma versão incompleta do corpo masculino – e entre os papéis sexuais masculino e feminino – até então os papéis sexuais eram definidos como ativo e passivo – (Garton, 2004:96-99), da distinção científica entre prazer e reprodução, que torna possível dissociar o ato sexual de seu resultado em termos de procriação (D’Emilio & Freedman, 1997:40-41).

No século XIX, a sexualidade divide-se entre a esfera privada, em que ela aparece como matéria sujeita a gerenciamento individual, e a esfera pública, terreno dos conselhos médicos, da venda de produtos sexuais, da pornografia, da política sexual (D’Emilio & Freedman, 1997:166). Essa divisão superpõe-se a (e numa boa medida coincide com) outra, entre as esferas sexuais feminina e masculina, respectivamente. A separação de esferas substitui o modelo patriarcal da família como uma pequena comunidade – que funcionava ao mesmo tempo como unidade produtiva – sob o comando do homem. No novo modelo, os homens saem de casa para trabalhar em troca de salário, participar da política etc., enquanto as mulheres passam a controlar cada vez mais o ambiente doméstico e a encarregar-se da educação dos filhos (D’Emilio & Freedman, 1997:57; Giddens, 1992:42). O amor romântico e a maternidade são vistos como componentes essenciais da personalidade feminina (Giddens, 1992:42-43).

Ao fixar as mulheres à esfera doméstica, o amor romântico – embora teoricamente igualitário – alimenta um padrão de submissão feminina (Giddens, 1992:62). Ao mesmo tempo, consolida-se uma divisão emocional entre os sexos. Só alguns homens aderem à concepção de amor romântico, e a maioria tende a confundi-lo com técnicas de sedução. No contexto vitoriano, os homens tipicamente têm menos consciência de suas necessidades emocionais do que as mulheres e mais dificuldade em expressá-las, e tendem a ver as mulheres como seres misteriosos (Giddens, 1992:59-62). Para lidar com a tensão entre o amor romântico e a sexualidade, eles acabam dividindo-se entre a esposa e a amante ou prostituta (1992:43). Numa escala maior que em outros momentos históricos, cristaliza-se assim uma nítida oposição entre os dois arquétipos femininos: da santa e da prostituta, da dama e da vagabunda (Cesarotto, 1999:36-37, 77). Essa dupla moral sexual válida para os homens é, nota Freud, “a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita que seus preceitos possam ser obedecidos” (1976b:200).

A contracorrente romântica da modernidade numa boa medida ilustra o papel do imaginário lacaniano. O imaginário, um registro da experiência distinto do simbólico, é o domínio das imagens. Ele dá forma ao que preenche a falta, possibilita visualizar o gozo que falta. Assim, em lugar de reconhecer a falta, o sujeito pode imaginar que não sacrificou o gozo: tendo por exemplo um affaire imaginário, o sujeito goza uma transgressão sem precisar transgredir de fato. Como resultado, os limites da ordem social não parecem absolutos, mesmo para aqueles confinados dentro dele. Embora o sujeito imerso no imaginário permaneça nos limites da ordem simbólica, ele não reconhece esses limites; para ele, sua experiência parece estar fora do simbólico. O estádio do espelho é o protótipo da experiência imaginária: a criança se vê como um todo sobre o qual ela tem controle, um sujeito autossuficiente, mas isso esconde a falta, a sujeição à ordem simbólica. Enquanto a proibição do gozo provoca insatisfação, o imaginário evita a rebelião fornecendo um ganho ilusório, uma válvula de escape. Por isso, não é possível conceber uma sociedade ancorada na proibição, como a sociedade moderna até o século XIX, sem o imaginário (McGowan, 2004:18-20). As fantasias que compõem o mundo do consumo, da literatura, da idealização amorosa, da pornografia cumprem o papel do imaginário na modernidade.

Declínio da ética protestante

É possível situar o início do declínio da ética protestante entre o final do século XIX e o começo do século XX (Campbell, 1989:4-5, 229-230, n.14). Nessa época, surgem os primeiros sinais de que a ética do trabalho pode constituir-se em uma barreira ao desenvolvimento pleno do capitalismo (McGowan, 2004:31). Na medida em que a fase heróica da industrialização fica para trás, os valores ligados à poupança, à sobriedade, ao ascetismo dão lugar paulatinamente àqueles ligados ao consumo, à gratificação, ao prazer (D’Emilio & Freedman, 1997:172, 188-189). Esse processo aprofunda-se até os anos 60, quando o modelo de gestão racional da vida proposto pelo capital desde o início da modernidade deixa de ser o paradigma dominante (Guillebaud, 1998:273). De forma análoga, a ruptura com a moral vitoriana, segundo diferentes autores, ocorre em algum momento entre as décadas de 1890 e 1960 (Garton, 2004:192).

No período fordista, o incremento da produtividade cria a necessidade de intensificar-se o consumo. Nos anos 20, de acordo com o historiador econômico Alfred Chandler, já é possível falar em maturidade do mercado de massa norte-americano (Illouz, 1997:26). Isto coincide com a expansão do imaginário, através de novos meios de comunicação, da publicidade e da moda. Nessa época, nos Estados Unidos, desenvolve-se um sistema nacional de publicidade (1997:27); as agências de publicidade já não são meras corretoras de anúncios para os jornais, mas trabalham em sintonia com as grandes corporações e ditam o gosto do público (1997:34). Ao invés de recorrer a argumentos racionais para tentar vender os produtos, a publicidade propõe imagens com as quais os consumidores podem identificar-se (McGowan, 2004:64).

A publicidade e o cinema tornam-se os principais instrumentos de representação do romance interpessoal, desbancando a literatura (Illouz, 1997:42-43). O consumo é visto como meio de expressão e de construção de identidade individual (1997:35-37). A publicidade de produtos de beleza, por exemplo, inspira-se no amor romântico e no hedonismo (1997:34-35). Mesmo no casamento, sugerem os anúncios, o clima de romance e sedução pode ser mantido mediante o consumo dos produtos adequados (1997:39-42). O cinema elege o romance como tema central, além de cultivar uma aura de romantismo em torno de suas celebridades (1997:31-33), fornecendo um modelo para o amor romântico, por exemplo, entre os adolescentes (1997:43-46). Publicidade e cinema promovem a liberação sexual (Garton, 2004:213), enquanto a moda passa a mostrar cada vez mais o corpo (2004:164). Na interseção entre romance e mercado, as mercadorias são romantizadas e o romance é mercantilizado (Illouz, 1997:26).

Na passagem do século XIX ao XX, a pressão por famílias grandes diminui, os métodos anticoncepcionais tornam-se mais eficientes e o sexo ganha autonomia em relação à reprodução (Giddens, 1992:26-27). Famílias menores impõem menos encargos para as mulheres, que começam a sair mais de casa – para frequentar clubes femininos, fazer compras em lojas de departamentos, cursar uma universidade, seguir carreira profissional (D’Emilio & Freedman, 1997:189). Fazer curso superior e trabalhar fora, especialmente, são atividades que minam a rígida separação de esferas entre os sexos que vigorava no século XIX (1997:172). Essas mudanças contribuem para o declínio da moral vitoriana, inclusive porque afetam principalmente as mulheres da classe média que sustentavam o padrão anterior (Illouz, 1997:27; D’Emilio & Freedman, 1997:189-190).

O crescimento das grandes cidades, onde se pode ganhar a vida e viver longe de casa, contribui para engendrar uma cultura jovem orientada para o lazer e misturando os sexos (Garton, 2004:191, 213). O contato livre entre jovens de sexos opostos multiplica-se na rua, nos ônibus, nos espaços comerciais de lazer (dancing halls, jazz clubs, parques de diversões, cinemas etc.) (D’Emilio & Freedman, 1997:194-197; Garton, 2004:164; Illouz, 1997:27). O controle da obscenidade é flexibilizado (D’Emilio & Freedman, 1997:157) e a prostituição prolifera nas grandes cidades (1997:172); ao mesmo tempo, como nota Kinsey, as campanhas de pureza moral do final do século XIX podem ter influenciado os homens no sentido de buscarem maior satisfação sexual no namoro e no casamento (Garton, 2004:212). Os especialistas enfatizam a importância da educação e da informação em questões sexuais (2004:194); os meios de comunicação de massa assumem esta tarefa e popularizam as ideias de Freud e de sexólogos da época (2004:164, 191, 212).

O morticínio na Primeira Guerra Mundial gera uma desilusão generalizada com os valores do passado e a aparição de uma reivindicação do gozo (Melman, 2005:91; Garton, 2004:164). Entre as vanguardas artísticas, o surrealismo – que se arvora herdeiro do romantismo – é quem melhor expressa esse novo estado de espírito. Todos esses ingredientes confluem para fazer dos anos 20 a primeira revolução sexual do século XX (Garton, 2004:211). É também nas primeiras décadas do século XX que devemos buscar as raízes pioneiras da sensibilidade romântica contemporânea (Illouz, 1997:12).

O processo de expansão do consumo aprofunda-se no segundo pós-guerra e leva ao que Galbraith chamou de “sociedade afluente”, nos anos 50 e 60. A comunicação de massa dá um salto gigantesco com o rádio e a televisão. Paralelamente, sucedem-se movimentos culturais na linha que vai do surrealismo ao situacionismo e aos beatniks, e daí à contracultura dos anos 60 – esta já tem as dimensões de movimento de massa e se confunde com o mundo do consumo. Ou seja, ao mesmo tempo em que a racionalidade instrumental atinge seu apogeu no mundo da produção, com o taylorismo/fordismo, a contracorrente romântica atinge um ponto em que coloca em xeque a ética protestante. Somando-se a isso o desgaste do discurso iluminista ao longo da primeira metade do século passado, em função dos totalitarismos, das guerras, das ameaças à natureza, podemos dizer que nos anos 60 começa uma virada.

Até mais ou menos os anos 60 (ou seja, na época correspondente ao fordismo), a injunção do gozo ainda é obscurecida pela proibição do gozo (McGowan, 2004:34). A disparidade das datas propostas por diferentes autores para situar o ocaso da moral vitoriana reflete os limites da liberação ao longo da primeira metade do século XX, quando a revolução sexual espalha-se das metrópoles para as pequenas cidades mas enfrenta resistências (Garton, 2004:191-193, 213-214). Nos anos 60 acontece a segunda revolução sexual do século XX (2004:210-211), uma explosão ligada à pílula e à permissividade (2004:217). Trata-se de um evento multifacetado. De um lado, temos a postura machista e consumista de Hugh Hefner (Playboy) e outros, para quem a revolução sexual é um negócio. De outro, a contracultura critica Hefner e vê a revolução sexual como algo político, mas nela a sedução também dá lugar à carnalidade direta (2004:210, 221-223). Esta postura busca inspiração teórica em pensadores radicais como Wilhelm Reich, Herbert Marcuse e Norman O. Brown (2004:220-221).

A revolução sexual dos 60 é importante especialmente para as mulheres e os homossexuais (Garton, 2004:210-211). Ela se apoia numa nova geração de autoras feministas – como Simone de Beauvoir (Le deuxième sexe, 1949) e Betty Friedan (The feminine mystic, 1963) – que são mais radicais que suas predecessoras e que atacam elementos machistas tanto de Hefner quanto da própria contracultura (2004:218, 223-224). Para os homossexuais, Stonewall marca o início do movimento gay organizado, que avança bastante desde então (2004:225-226). Se os “roaring twenties” foram animados pelo jazz, a contracultura é alimentada pelo rock, que promove o amor romântico (por exemplo, em “I wanna hold your hand”, dos mais apolíneos Beatles) e o sexo (por exemplo em “I can’t get no satisfaction”, dos mais dionisíacos Rolling Stones). No mesmo pacote de liberação de costumes, e em absoluto contraste com o ascetismo e a autodisciplina da ética protestante, cabe listar a popularização das drogas no seio da cultura jovem, completando a tríade “sexo, drogas e rock’n’roll”. Podemos comparar as duas revoluções sexuais do século XX, nos anos 20 e nos anos 60, às duas revoluções russas de 1917 – a social-democrata de fevereiro, liderada por Kerensky, e a bolchevique de outubro, liderada por Lenin e Trotsky – no sentido de que a segunda continua e aprofunda a primeira.

Injunção do gozo

Como nota Camus (s.d. [1942]:77), o caráter de uma moral comum baseia-se na experiência que ela é chamada a calibrar: os gregos extraíam a moral de seus ócios; os modernos, de seus dias de oito horas. No período mais recente, em que o eixo do processo de socialização desloca-se da produção para o consumo, a escala de valores predominante em boa parte da modernidade perde sentido. A ética do trabalho é substituída por uma “ética do direito ao gozo” (Safatle, 2005:127). Ou, para colocar as coisas de outra forma: a ética do dever dá lugar à ética do direito, a "ética indolor dos novos tempos democráticos" (Lipovetsky, 1992). Ou ainda: a vida em sociedade organiza-se sobre bases estéticas, muito mais do que éticas. Priorizam-se a gratificação imediata, o presente, as aparências. “Os remadores de Ulisses, não mais sob o código da antiga ética do trabalho burguesa, tiveram a cera removida de seus ouvidos, e o próprio Ulisses já não está acorrentado ao mastro” (Kroker & Cook, 1988:15-16).

Podemos dizer que a sociedade pós-industrial fundada no consumo e no hedonismo opera com base numa economia psíquica bastante diferente da sociedade industrial fundada na produção e no ascetismo. A sexualidade está hoje associada primariamente com a intimidade emocional e o prazer físico individual, ficando a reprodução em segundo plano (D’Emilio & Freedman, 1997:v, xii, xv-xvi). Em lugar de sublimar a sexualidade para trabalhar numa linha de montagem de automóveis, o homem atual precisa ter sua sexualidade liberada para usar os automóveis como objetos sexuais (Bauman, 2003:57). Há “uma perda social das balizas do gozo” (Santaella, 2004:151). Passamos de uma cultura ligada à religião, que induz ao recalque e à neurose, para uma cultura que propõe a livre expressão e a realização dos desejos, o que traz consigo a desvalorização dos antigos valores e a desagregação das figuras tradicionais da autoridade e do saber, observa Melman (2005:133). “Não há mais nada no mundo que diga não” (2005:206).

A prática clínica indica hoje a ocorrência de muito menos casos de culpabilidade ou frigidez feminina (Melman, 2005:59-60). De acordo com a filosofia moral vigente, todos têm direito a realizar-se plenamente: o sexagenário a ter um filho, o casal homossexual a casar-se, o transexual a mudar de identidade (2005:38). À parte a pedofilia, todos têm direito a satisfazer suas paixões, a esperar que elas sejam reconhecidas, aceitas, legalizadas (2005:35). Todos nos tornamos funcionários encarregados de assegurar a satisfação dos que nos cercam: por exemplo, os pais devem zelar pelo bem-estar dos filhos (2005:140). A legislação e a justiça tendem a adaptar-se a essa nova economia psíquica, aceitando toda reivindicação como legítima (2005:129-130) e reconhecendo que cada cidadão faz jus à completa satisfação (2005:141). Qualquer obstáculo à satisfação aparece como política e moralmente incorreto (2005:141); quem quer introduzir alguma temperança é tachado de retrógrado (2005:138).

O supereu clássico, paterno, repressor, descrito por Freud, daria lugar a um supereu arcaico, materno, permissivo, segundo a hipótese de Lacan (1998:162): “Será que não há na neurose, por trás do supereu paterno, um supereu materno, ainda mais exigente, mais opressivo, mais devastador, mais insistente?” O gozo não é mais proibido, mas o resultado não é liberador em relação a formações sociais anteriores, pois o supereu substitui a proibição pelo imperativo do gozo. “Nada força ninguém a gozar, salvo o supereu. O supereu é o imperativo do gozo – Goza!” (Lacan, 1975:10, grifo do autor). Žižek (1991:103) acrescenta: “O supereu ‘materno’ não proíbe o gozo, mas, pelo contrário, o impõe, e pune o ‘fracasso social’ de uma forma muito mais cruel e severa, por meio de uma ansiedade insuportável e autodestrutiva”.

A teoria lacaniana, assim, fornece a chave para entender o fato paradoxal de que, “nesta época permissiva, temos injunções superegoicas ainda mais fortes”: “o que o torna culpado hoje não é o fato de você transgredir alguma proibição sexual, mas, ao contrário, o fato de você não transgredi-la, de você não gozar” (Žižek apud Safatle, 2003). É na passagem do supereu proibitivo para o supereu compulsório que “encontramos o ponto de virada da cultura da renúncia e do sacrifício para a cultura do consumo e do prazer permissivo” (Dunker, 2005:74).

O imperativo do gozo é exercido em todas as direções. “A injunção social diz hoje: ‘Goze de todas as maneiras!’ Goze sua sexualidade, realize seu eu, encontre sua identidade sexual, alcance o sucesso ou, mesmo, goze uma ascese espiritual” (Žižek apud Safatle, 2003). Esse aspecto multifacetado do gozo está ligado ao eclipse da figura paterna. O papel do pai, ao impedir a relação incestuosa entre o menino e a mãe, não é o de interditar o desejo. Esta é, observa Melman (2005:92), uma leitura equivocada de Freud. Na verdade, a interdição torna possível o desejo, pois ela é seletiva: promove o desejo permitido (2005:25-26), concede à criança o acesso à genitalidade (2005:151), prepara-a para a vida social, a troca, o amor, o trabalho (2005:41).

Por conseguinte, o declínio do referencial paterno tem como efeito não apenas a diminuição da repressão, mas também o fato de que o gozo fálico deixa de ser padrão. Isto abre espaço para as perversões (Melman, 2005:34-35, 39). “Essa ideia de uma explosão de múltiplas perversões descreve o que se encaixa perfeitamente na ordem do capitalismo tardio de hoje” (Žižek apud Gutmair & Flor, 1998). Reaparece a clássica figura do libertino, com uma importante diferença: agora se trata de libertinagem de massa (Melman, 2005:179). Vivemos a liberação multicultural das múltiplas formas possíveis de sexualidade (Safatle, 2005:128). Esgotam-se os orifícios do corpo (Melman, 2005:138), e os gozos que eram interditos ou limitados de alguma forma são os que parecem valer mais (2005:177). O sujeito ideal é bissexual: relaciona-se com homens e mulheres, para ele qualquer coisa vale (Žižek apud Gutmair & Flor, 1998). Expostas à influência da mídia, as próprias crianças desenvolvem um erotismo precoce.

A passagem da primazia da palavra para a imagem, na cultura contemporânea, corresponde, em termos psicanalíticos, à mudança de ênfase do simbólico para o imaginário. Assim como a palavra e a ausência de gozo são centrais na sociedade de proibição de boa parte da modernidade, a imagem e a ilusão de gozo são centrais na sociedade contemporânea. A imagem possibilita que os sujeitos imaginem que estão cumprindo a injunção de gozar, embora esse gozo seja meramente imaginário, por isso a prevalência da imagem está relacionada com a emergência da sociedade de gozo (McGowan, 2004:59).

Permitindo que o sujeito escape de certa forma à proibição do gozo, a imagem separa o sujeito do Outro. Na sociedade de gozo, o sujeito existe num estado de isolamento narcísico que fornece um sentido de gozo imaginário. O eu, formado de acordo com Lacan no estádio do espelho, é imaginário, passa uma ilusão de completude; o narcisista toma seu eu como objeto de amor, e isto gera um gozo que supera a falta em si mesmo e no Outro. O isolamento do eu, por ser imaginário, não elide as restrições sociais, mas permite que o sujeito evite reconhecer que a subjetividade emerge da falta, que o gozo total é inacessível. O sujeito procura refúgio na segurança ilusória do eu porque a falta no Outro (por exemplo, ninguém sabe o segredo da popularidade, porque ele não existe) é perturbadora. Sem ver a falta no Outro, o objet petit a, o narcisista não tem acesso ao gozo real (McGowan, 2004:66-69).

Apenas o gozo imaginário – do eu, da televisão, da tela do computador, do mundo das mercadorias – oferece um canal aceitável para obedecer à injunção do gozo: uma ilusão de gozo e liberdade totais, sem perturbar a estrutura social, sem a dimensão traumática do gozo real. O sujeito mantém-se ancorado em sua identidade simbólica, respeita as barreiras, mesmo que tenha a ilusão de transgredi-las. Como o gozo imaginário não sai dos confins do simbólico, ele não ameaça a ordem social e funciona como uma força estabilizadora. Por isso, a Lei não demanda que o sujeito sacrifique o gozo imaginário para entrar na ordem social. O imaginário, portanto, oferece uma zona em que o sujeito é aparentemente livre para gozar, uma zona em que a Lei não interfere, e é essa aparência de liberdade que torna a experiência do imaginário tão atrativa para os sujeitos contemporâneos. E quanto mais aderimos ao gozo imaginário, menos sentimos falta da alternativa real.

Enquanto uma autoridade simbólica forte cria sujeitos insatisfeitos, porque os força a sacrificarem o gozo para entrarem na ordem simbólica, o imaginário mantém o sujeito satisfeito, não com o real de seu desejo, mas com sua imagem. O gozo imaginário aparentemente desdenha a autoridade simbólica, mas esse gozo torna os sujeitos dóceis, seu perigo para a autoridade simbólica é um perigo imaginário. Se o sujeito se sente gozando, seja isso verdade ou ilusão, é menos provável que ele se revolte, ou mesmo que se preocupe com o social em geral (McGowan, 2004:59, 70-73)

Sexo virtual

O fenômeno do sexo virtual ilustra a ênfase no imaginário em detrimento do simbólico como meio de reprodução social.

É um fato bastante conhecido que toda nova mídia não demora muito para ser utilizada para conteúdos sexuais. A tipografia, cuja primeira aplicação é a impressão da Bíblia, logo serve para produzir livros eróticos. Algo semelhante ocorre com a fotografia, o telefone, o cinema (mudo e falado), a televisão a cabo, o videocassete. E a Internet não é exceção (Gackenbach, 1998:145; Joinson, 2003:110). Em certos casos (como o do videocassete), a pornografia representa a killer application que impulsiona uma nova mídia (Joinson, 2003:111; Wallace, 1999:159). No que tange às tecnologias mais recentes, cabe ressaltar a tendência de que o consumo da pornografia se torne cada vez mais privado (peep shows, televisão a cabo, videocassete, Internet) (Joinson, 2003:110-111).

A constituição de uma infraestrutura para comércio eletrônico (sistemas de pagamento, servidores seguros) permite a operação comercial de vários serviços eróticos na rede: Web sites profissionais, hot chats, live shows etc. Trata-se de serviços acessados apenas por usuários que pagam uma taxa ou assinatura. Além disso, a facilidade de uso favorece a proliferação de conteúdos sexuais mantidos por amadores, em Web sites pessoais, newsgroups, fóruns, blogs etc. Mecanismos como chats, comunicadores instantâneos e Web cams possibilitam a interação em tempo real entre usuários, com transmissão de texto e imagens, o que dá margem à simulação de atos sexuais. Provavelmente a área passível de maior evolução em matéria de sexo na Internet seja a chamada teledildonics (termo cunhado em 1974 por Ted Nelson, o inventor do hipertexto), que conjuga ferramentas mais convencionais da rede a brinquedos eróticos controlados remotamente.

A disponibilidade de material erótico na Internet e o acesso a esse material são facilitados pelas características próprias do meio. Devido à abrangência internacional e à estrutura rizomática da rede, que tornam difícil controlá-la, seu conteúdo escapa a muitas restrições legais à obscenidade que afetam outros veículos. O caráter privado do acesso poupa os internautas dos possíveis constrangimentos enfrentados por quem adquire ou aluga material erótico em bancas de revistas, sex shops e videolocadoras. Os usuários também são protegidos em certa medida pelo anonimato enquanto navegam. Esses fatores contribuem para que a distribuição da pornografia via Internet tenha alcance maior que aquela feita por outros meios (Wallace, 1999:169) e também para que o material pornográfico veiculado na rede seja mais alternativo, com maior peso para fetiches e práticas bizarras (Wallace, 1999:169; Joinson, 2003:112-113).

É pertinente assinalar aqui que a virtualidade é uma característica do simbólico. O melhor exemplo disto é a castração simbólica: o que a distingue da real é justamente seu caráter virtual; a simples ameaça da castração já tem efeitos castradores. Do mesmo modo, o poder se baseia em elementos virtuais: um juiz sem a sua insígnia e tudo que ela implica é alguém impotente. Mesmo o pênis é impotente se não estiver acoplado ao falo, uma espécie de duplo virtual dele que é fonte de seu poder (Žižek, 1997:150-151). A virtualidade está associada à falta constitutiva do simbólico; em termos de narrativa, essa falta está associada à ambiguidade. Na série Arquivo X, por exemplo, não está clara a relação entre os extraterrestres e a agência governamental misteriosa que sabe da existência deles: o governo usa os extraterrestres para aumentar seu poder ou é impotente diante dos extraterrestres e não fala de sua existência para não criar pânico? Outro exemplo é o filme Tubarão, de Spielberg: a figura do tubarão é ameaçadora porque não se sabe exatamente o que ela significa – poderia ser um símbolo da ameaça do Terceiro Mundo aos Estados Unidos, da exploração capitalista desenfreada, da ameaça de recessão econômica, e assim por diante (Žižek, 1997:157-158).

Uma das manifestações contemporâneas do declínio da reprodução social através do simbólico é justamente a eliminação da falta. Por exemplo, alguns hackers fizeram uma manipulação de episódios da série de TV Jornada nas Estrelas, interpolando algumas cenas de maneira a explicitar elementos homoeróticos que estariam latentes no original. Este tipo de manipulação pressupõe não apenas condições e competência técnicas, mas também a suspensão da função de significante-mestre, sem a qual não há nenhuma versão definitiva. Na mesma linha, publicou-se na Alemanha um livro de contos em que grandes narrativas do Ocidente são recontadas do ponto de vista das mulheres envolvidas: a história de Édipo do ponto de vista de Jocasta, a história de Fausto do ponto de vista de Margarida, e assim por diante (Žižek, 1997:151-152).

Ora, quando se reconta uma narrativa preenchendo suas lacunas, mostrando explicitamente o que no original era apenas sugerido, o elemento de virtualidade subjacente ao simbólico e necessário ao seu funcionamento é eliminado. Este é um fenômeno bem conhecido dos criadores e dos críticos de televisão nos Estados Unidos, que costumam dizer que uma série entra em declínio quando os protagonistas se envolvem ou se casam – o que ocorre aqui é que o amor platônico, a tensão sexual latente, que davam sustentação à trama, acabam por desfazer-se.

O computador permite preencher a falta de vários modos. Por exemplo, em contraposição à máquina de escrever, o processador de texto facilita tanto o ato de escrever que oblitera a distinção entre esboço e texto final. Este agora tem sempre algo de provisório, de condicional, ou seja, é possível reescrever, aperfeiçoar o texto indefinidamente, atualizar o que nele é virtual (Žižek, 1997:151). Devido às características do ciberespaço, podemos dizer que nele também está presente uma marca da sociedade contemporânea – a passagem do simbólico para uma atuação nos bastidores. Os ambientes online frequentemente não têm regras de funcionamento; quando há regras, faltam sanções para quem as transgrida; quando há sanções, falta uma autoridade para implementá-las; quando há uma autoridade, faltam meios de identificar os transgressores. Por exemplo, mesmo com as normas rígidas adotadas por provedores de acesso e as legislações instituídas por vários países contra o spam (mensagens não solicitadas enviadas a um grande número de usuários), ele teima em proliferar.

Além disso, a virtualidade é tomada como indicativo de certa inocuidade, como a dos desenhos animados, em que é possível sobreviver a qualquer catástrofe e a sexualidade adulta é reduzida a um jogo infantil (Žižek, 1999:117). A percepção de inocuidade que circunda as ações virtuais atenua as inibições a comportamentos antissociais. Num caso famoso, envolvendo um estupro na comunidade virtual LambdaMoo (Turkle, 1997:251-253), até os que se indignaram com o fato não estavam de acordo se era possível encará-lo realmente como um estupro. Noutras situações, a ausência de inibições permite mesmo àqueles que normalmente são tímidos engajar-se em relacionamento romântico ou em sexo virtual com estranhos. A rarefação do simbólico no ciberespaço aparece igualmente como apagamento da falta. Quando se teoriza sobre o sexo virtual, é comum, afirma Žižek (1997:155-156), relacioná-lo com o amor platônico, como o que Kierkegaard nutria por Regina, com quem rompeu o noivado e que preferia amar à distância, mesmo ela tendo se casado depois com outro homem.

O sexo virtual também seria uma anulação do objeto real. Esta analogia, no entanto, é enganosa. Regina era o vazio em torno do qual Kierkegaard construía seu discurso, enquanto o parceiro do sexo virtual é hiperpresente, bombardeia incessantemente o indivíduo com fotos e declarações. Na medida em que o simbólico é virtual, podemos dizer que o problema no ciberespaço – e do próprio sexo virtual – não é o excesso de virtual, mas a falta dele. E, como resultado, pode se especular que o sexo no ciberespaço se torne menos atrativo (Wallace, 1999:169-170).

O que preenche a falta é o imaginário. No ciberespaço, é possível contornar a insatisfação com o outro, evitando o encontro com ele em sua dimensão real, e a insatisfação comigo mesmo, criando uma imagem virtual de mim. Com a satisfação obtida a partir da imagem perfeita do outro e/ou de mim, evito a sensação de falta (McGowan, 2004:70). Enquanto no amor platônico há um corte do real, no sexo virtual o real é submerso em imagens e mensagens (Žižek, 1997:156). A rarefação do simbólico no ciberespaço leva à conflação do imaginário e do real sob a forma de simulacro, portanto, a uma perda na percepção da realidade. O outro, reduzido a mero instrumento de meu prazer, torna-se descartável; esta visão do outro como objeto liga-se à visão do outro como irreal:

O Outro estando portanto verdadeiramente excluído, o que concerne ao sujeito é dito realmente pelo outro com minúscula, pelas sombras de outro [...]. O outro com minúscula apresenta com efeito um caráter irreal, tendendo ao irreal (Lacan, 1981:64-65).


Ora, esse outro evanescente é exatamente como o outro do ciberespaço, sem materialidade, de identidade incerta, que pode ser afastado de nossa presença a um clique do mouse. E sabemos que além dele há muitos outros disponíveis, como mercadorias nas prateleiras de um supermercado sem fim.


Recebido: 04/fevereiro/2009

Aprovado para publicação: 20/fevereiro/2010



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