Sexualidad, Salud y Sociedad

REVISTA LATINOAMERICANA

ISSN 1984-6487 / n.1 - 2009 - pp.30-62/ www.sexualidadsaludysociedad.org



Abandono, adoção e anonimato:

questões de moralidade materna suscitadas

pelas propostas legais de “parto anônimo”



Claudia Fonseca

Doctora en Sociologia e Etnologia

PPG Antropologia Social, UFRGS

> claudialwfonseca@gmail.com


Resumo: Propomos neste artigo explorar questões de moralidade materna (abandono, aborto, adoção) suscitadas pelas leis do chamado “parto anônimo”. Seguimos uma linha teórica que recusa as noções naturalizadas de maternidade (ou paternidade), optando ao invés por colocar em destaque os processos políticos que produzem os variados discursos da moralidade materna. Assim, depois de uma primeira reflexão sobre a relação entre abandono e anonimato, passaremos a uma breve consideração sobre os debates em diferentes contextos nacionais (Estados Unidos, França, Brasil) que acompanharam as leis de parto anônimo. Veremos que, em quase todo lugar onde existe, o parto anônimo se justifica através de anedotas sobre bebês “abandonados no lixo”. Entretanto, tentaremos demonstrar como esta medida adquire significados diversos em função de contextos nacionais específicos, isto é, de configurações em que outras tecnologias de maternidade, tais como aborto e adoção, assumem contornos particulares. Subjacente a todo o debate, corre uma indagação sobre os direitos humanos: a saber, o papel do Estado no controle de informações que dizem respeito à filiação e à identidade pessoal.

Palavras-chave: parto, anonimato, adoção, maternidade, direitos humanos.


Abandono, adopción y anonimato: cuestiones de moralidad materna suscitadas por las propuestas legales de “parto anónimo”

Resumen: Nos proponemos en este artículo explorar cuestiones de moralidad materna (abandono, aborto, adopción) suscitadas por las leyes del llamado “parto anónimo”. Seguimos una línea teórica que rechaza las nociones naturalizadas de maternidad (y paternidad), y hemos optado, en lugar de ello, por poner de relieve los procesos políticos que producen los variados discursos de la moralidad materna. Así, luego de una primera reflexión sobre la relación entre abandono y anonimato, pasaremos a una breve consideración de los debates en diferentes contextos nacionales (Estados Unidos, Francia, Brasil) que han acompañando las leyes de parto anónimo. Se verá que, en casi todos los lugares donde existe, el parto anónimo se justifica a través de anécdotas sobre bebés “abandonados en la basura”. Procuraremos, por su parte, demostrar cómo esta medida aquiere significados diversos en función de contextos nacionales específicos, esto es, de configuraciones en las que otras tecnologías de maternidad, tales como el aborto y la adopción, adquieren contornos particulares. Subyace a todo el debate una indagación sobre los derechos humanos, en especial respecto del papel del Estado en el control de informaciones referidas a la filiación y a la identidad personal.

Palabras clave: parto; anonimato; adopción; maternidad; derechos humanos


Abandonment, adoption and anonymity: Questions of Maternal morality embedded in the “safe haven” laws

Abstract: We propose in this article to explore questions of maternal morality (abandonment, abortion, adoption) embedded in legislation known as “safe haven” laws. We follow a theoretical line that refuses naturalized notions of maternity (or paternity), opting instead for the emphasis on political processes that produce the various discourses of maternal morality. Thus, after a first reflection addressing the connection between abandonment and anonymity, we consider briefly the debates that took place in different national contexts (United States, France, Brazil) endorsing or rejecting laws dealing with anonymous abandonment. We will see that, nearly everywhere, the laws are justified with anecdotes about babies found in the trash bin. However, the laws take on diverse meanings in function of the specific national context, that is to say, of a configuration in which other maternal technologies, such as abortion and adoption, assume particular relevance. Throughout the debate runs a reflection on human rights – especially, on the role of the State in the control of information about filiation and personal identity.

Keywords: safe haven laws; anonymity; adoption; maternity; human rights



Abandono, adoção e anonimato: Questões de moralidade materna suscitadas pela noção de “parto anônimo” 1

30/11/2007. Lê-se na manchete da Folha de São Paulo: “Mãe joga filho recém-nascido em lixo de banheiro de hospital”. O artigo segue com detalhes. Na madrugada daquela sexta-feira, numa cidade no interior de São Paulo, Andréia R. S., 21 anos de idade, tinha procurado o pronto-socorro do local por volta das duas da madrugada se queixando de dor na barriga, diarreia e sangramento. Foi encaminhada para consulta com uma obstetra, mas antes de procurar a médica foi ao banheiro. Demorou muito, tanto que o pessoal médico chegou a ir atrás, perguntando se ela estava passando mal. Interpelada, Andréia saiu do banheiro e foi à sala da obstetra como se nada tivesse acontecido. Mas, durante a consulta, uma funcionária da limpeza veio anunciar que tinha encontrado um neném dentro do lixo do banheiro. Só então Andréia confirmou que era dela. Explicou que tinha ficado “muito chocada” ao ver a criança. Não sabia que estava grávida e tinha agido de maneira inconsciente. Entretanto, desde o primeiro parágrafo do artigo, o leitor tem a garantia de que, segundo a polícia, essa “mãe abandonante” deverá responder por tentativa de homicídio.

Na internet, logo abaixo da matéria, encontra-se um link para outras histórias igualmente escabrosas de bebês abandonados. Desta forma, é possível rastrear nos últimos meses meia dúzia de episódios semelhantes. Foi em reação a esse “número crescente de abandonos de recém-nascidos” que o deputado federal Eduardo Valverde (Partido dos Trabalhadores – Roraima, Brasil) propôs em fevereiro de 2008 o projeto de lei 2747/08 do “parto anônimo”, garantindo a toda mulher, “independente de classe, raça, etnia, idade e religião”, as condições para realizar na rede Sistema Único de Saúde-SUS os exames pré-parto e o próprio parto sem ser identificada2. A justificativa do projeto faz referência à “roda dos expostos” – tecnologia antiga, muito comum no século XIX, que tomava a forma de uma portinhola giratória na frente dos hospitais e das instituições caridosas onde mulheres podiam abandonar seus recém-nascidos sem sequer serem vistas. Também faz referência à existência de medidas semelhantes em outros países – França, Luxemburgo, Itália, Bélgica, Holanda, Áustria e vários estados dos Estados Unidos (Carneiro 2008), onde são conhecidas nos idiomas locais como: safe havens, naissance sous-X, babyKlappen, “janela de Moiseés”, etc.

Nossa perplexidade diante do que parece ser uma onda global dessa “nova tecnologia” surge do fato de que no Brasil, assim como na maioria dos outros paises ocidentais, já existe a possibilidade legal de uma mulher entregar seu recém-nascido em adoção, rompendo qualquer vínculo e com garantia de sigilo total quanto à sua identidade.3 Também existem táticas informais às quais as mulheres recorrem quando não querem passar pela burocracia da entrega legal. Podem usar um nome falso (a maioria dos hospitais públicos aceita a parturiente, mesmo quando esta não apresenta documentação), ou podem ir embora do hospital sem levar seu neném junto.4 Qual a novidade trazida pelo parto anônimo? O processo usual de adoção implica o “segredo de justiça” – informações são controladas ou mesmo escondidas, mas existem em algum lugar dos arquivos. O parto anônimo transforma o “segredo de origens” em aniquilamento de origens, pois em termos legais e administrativos o vínculo entre mãe e filho não existe e nunca existiu. Trata-se de uma medida que institucionaliza a informalidade, dando o aval público à ausência de qualquer registro.

Na raiz da proposta existe o fantasma do abandono, termo polissêmico capaz de preencher todos os vazios semânticos. Na linguagem do dia-a-dia, o termo se aplica a praticamente qualquer situação que envolva a separação de mãe e filho. Faz-se uma confusão entre aquelas mulheres que entregam seus filhos legalmente em adoção, aquelas que entregam seus filhos informalmente aos cuidados de outrem (um outro adulto ou uma instituição) sem passar pelos trâmites administrativos legais, e aquelas que deixam seus recém-nascidos em vias públicas ou em outras situações de grande risco. Em todas estas situações, a mulher conscientemente abre mão ou pode ser destituída de seu status materno; contudo, só na última delas é que seu ato é considerado criminoso. No Brasil, por exemplo, conforme a legislação em vigor, entregar um filho para adoção não é crime. “Crime” é expor uma criança, ou deixá-la correr perigo em situação desassistida (artigo 134 do Código Penal brasileiro). Como explicar que, mesmo assim, na imprensa e no linguajar de certos profissionais, o termo “abandono” continua a ser aplicado de forma quase indiscriminada a situações muito diversas? Como entender que os advogados do parto anônimo propõem “descriminalizar” algo que, na grande maioria das vezes, não é crime?

Sugiro neste artigo que a “solução” de anonimato, proposta com tanta rapidez em tantos lugares para mulheres como Andréia, não é tão simples quanto parece. Seja por médicos ou advogados, a intervenção de terceiros no campo da procriação levanta questões sobre o manejo institucional de informações sobre a identidade dos supostos genitores. Monica Konrad (2005), no seu trabalho sobre a doação anônima de óvulos em clínicas britânicas, traz esta reflexão para o campo da reprodução assistida. As mulheres “doadoras” e “recebedoras” que entrevistou tendem a encarar a transferência de gametas como uma dádiva altruísta que não pede retorno. Com base nesses depoimentos e contrapondo-se à perspectiva de outros antropólogos (ver, por exemplo, Strathern, 1992; Fonseca, 2006), Konrad chega à conclusão de que, neste caso, o anonimato não fere o princípio do dom. De forma significativa, não se questiona quanto à perspectiva dos filhos gerados de esperma ou óvulos doados, isto é, quanto ao desejo eventual destes de derrubarem o anonimato e acederem a informações que identificam a figura apontada como “pai” ou “mãe” genéticos.5

Trazer reflexões do campo das “tecnologias legais” envolvidas no parto anônimo e na adoção evoca justamente esse “outro lado” do anonimato, urgindo que o observador reformule sua análise em termos de uma negociação entre diversas categorias que, por razões de classe ou geração, podem possuir pesos políticos muito desiguais. Meu objetivo não é minimizar a tragédia envolvida em histórias como a de Andréia, mas sim examinar as disputas políticas que surgem em torno delas, atentando para noções de direito e moralidade em determinados contextos. Para tanto, recorro não somente a artigos jornalísticos e a documentos produzidos por diferentes associações, mas também a uma literatura acadêmica multidisciplinar que inclui juristas, psicólogos e cientistas sociais, muitos deles engajados no campo de interlocução feminista. Sigo uma linha teórica – hoje, amplamente difundida nas ciências sociais – que recusa as noções naturalizadas de maternidade (ou paternidade), optando ao invés por colocar em destaque os processos políticos que produzem os variados discursos da moralidade materna (ver, por exemplo, Ginsburg & Rapp, 1995; Tornquist, 2002; Luna, 2002; Rohden, 2003; Meyer, 2005; Clarke, 2007).

Depois de uma primeira reflexão sobre a relação entre abandono e anonimato, este artigo segue com uma breve consideração a respeito dos debates em diferentes contextos nacionais que acompanharam as leis do parto anônimo. Interessam-nos em particular os Estados Unidos de G. Bush, “berço” da recente reedição do parto anônimo, e a França, país com uma suposta “longa tradição” nessa modalidade de abandono. Na discussão final sobre o contexto brasileiro, colocamos em relação a criminalização da “mãe abandonante” e a demanda de pais adotivos por crianças recém-nascidas. Veremos que, em quase todo lugar onde existe, o parto anônimo se justifica através de anedotas sobre bebês “abandonados no lixo”. Entretanto, pretendemos demonstrar como esta medida adquire significados diversos em função de contextos nacionais específicos, isto é, de configurações em que outras tecnologias de maternidade, tais como aborto e adoção, assumem contornos particulares.6 Subjacente a todo o debate, corre uma indagação sobre os direitos humanos de qual seja o papel do Estado no controle de informações que dizem respeito à filiação e, por extensão, à identidade pessoal.


Do abandono e do anonimato

Sabemos dos historiadores que, no início do século XIX, em praticamente todos os países europeus (nas cidades de Madri, Milão, Viena, Paris etc.), entre 20% e 50% dos recém-nascidos eram abandonados à roda dos expostos (Sanger, 1996; Panter-Brick & Smith, 1999). A roda tinha sido originalmente concebida para o depósito de crianças “bastardas”, filhos concebidos de relações adulterinas e outras situações transgressoras, cuja revelação pública podia causar sérios abalos à honra familiar. Nestas condições, a roda fornecia uma alternativa ao infanticídio. Já até o final do século XVIII, a clientela da roda tinha se expandido além de mães solteiras envergonhadas para casais legitimamente constituídos e outros lares que simplesmente não tinham como arcar com o peso de mais uma boca (Depauw, 1972). Com o número crescente de abandonos, tornou-se evidente que o sistema era pouco eficaz: custava caro aos cofres públicos e boa parte das crianças morria antes de chegar à idade adulta.7 Diante de tal quadro, o anonimato assumia novas feições: agora, impedia que os pais pobres “abusassem” dos serviços públicos, transformando o orfanato em pensionato de onde pudessem voltar para retirar os filhos alguns anos depois do “abandono” (ver Donzelot, 1980; Blum. 2007). Nessas condições, antes de amparar moças vulneráveis e prevenir contra o infanticídio, a roda servia para impor certa moralidade familiar, assinalando o alto preço a ser pago pelos pais caso pedissem demasiada ajuda ao poder público.

Houve no final do século XIX uma nova revirada que mudaria a situação das crianças acolhidas. Conforme a historiadora Zelizer (1992), os reformadores vitorianos confrontavam-se com um paradoxo. Noções ligadas à família moderna estavam provocando uma sacralização das crianças; decorria daí o imperativo de removê-las das influências profanas do trabalho infantil e de outros nexos da economia comercial. Entretanto, à medida que a criança ia sendo sacralizada, ela aumentava em valor – simbólico e financeiro – dando origem à noção igualmente moderna de “um mercado de crianças adotáveis”. A imaginação vitoriana passou a ser assombrada por imagens, de um lado, desses lindos “bonecos vivos” e, de outro, de mães desnaturadas e intermediários mercenários, procurando tirar lucro da venda desses objetos preciosos. Se antes o poder público tinha se envolvido pouco na colocação de crianças, agora havia uma demanda crescente de regulamentação.

Mesmo assim, as adoções de então – quer envolvessem ou não as autoridades públicas – não implicavam segredo oficial (Carp, 2004). Os pais adotivos, por vários motivos, podiam tentar ocultar o fato da adoção. Mas em muitos casos a mãe biológica sabia a identidade destes (quando, por exemplo, era ela quem havia escolhido a família adotiva), da mesma forma que os pais adotivos sabiam a identidade dela. E quando existia um registro jurídico da adoção, este era aberto à consulta pelas pessoas envolvidas. Conforme a pesquisadora da área jurídica E. Samuels (2001), a adoção “plena”, com sua premissa de sigilo total, emergiu nos Estados Unidos só em torno de 1960. Ocorreu no clima familista do pós-Guerra, quando a adoção passou a ser pautada como uma completa e perfeita réplica da reprodução biológica. A lógica era: se, na família “natural” existem apenas uma mãe e um pai, então, na família adotiva deve se fazer tudo para afastar a memória de outros pais. Assim, os arquivos sobre adoção foram “chaveados”, assegurando uma ruptura “limpa” entre crianças adotadas e suas famílias de origem. O que tinha começado como um movimento de confidencialidade, reservando a consulta de documentos apenas às partes concernidas, foi se transformando em segredo de justiça que impedia a toda e qualquer pessoa acesso à informação. O segredo total e permanente sobre a identidade dos pais biológicos passou a ser visto não só como natural, mas também necessário e consensual (Samuels 2001).

O segredo tinha sido tradicionalmente justificado pelo suposto caráter indigno dos genitores. Pais adotivos, em especial, teriam motivos para acolher estereótipos negativos sobre “mães abandonantes”, pois estes ajudam a afastar o fantasma de concorrentes pelo afeto do filho. Conforme Ouellette (1996), o medo dessa concorrência seria resultado de uma contradição inerente na concepção “moderna” de filiação adotiva – entre a aspiração de “ser igual à filiação natural” e a insistência em manter o “natural” (ler-se, consanguíneo) como modelo a imitar. Na ótica dos pais adotivos, a eliminação de qualquer pista da família original seria uma maneira pragmática de resolver a tensão. Assim, a criança “exposta” (enfant trouvé, abandonado sem nenhum sinal identificador) seria o adotado ideal. Quando, por outro lado, a identidade dos pais biológicos é conhecida, o afastamento simbólico destes seguiria outras vias, frequentemente envolvendo uma suposição de comportamento tão repreensível que não merecem ser lembrados como pais (Ibid).

Entretanto, no clima das modernas democracias, o reconhecimento da possível interferência de preconceitos de classe exigia justificativas que iam além da condenação moral dos genitores. Assim, veio a calhar a alegação de que, tal como nos primeiros dias da roda, o segredo era consentido e mesmo desejado pelas mães que entregavam seus filhos. Samuels (2001), escrevendo sobre os Estados Unidos, frisa que há pouca evidência empírica para apoiar esta hipótese. Sugere que, mesmo antes da revolução social e sexual dos anos 60, a maioria das mães que entregava seus filhos em adoção não buscava o anonimato. Oriundas de famílias conservadoras, podiam querer discrição (que as protegia contra a condenação moralista de seus vizinhos), podiam solicitar confidencialidade (que lhes permitia parir o filho sem que seus familiares fossem notificados), mas poucas expressavam o desejo de nunca mais saber do filho. As inúmeras associações que surgiram desde os anos 60 – de mulheres procurando informações sobre os filhos que deram em adoção – trazem mais uma indicação de que a demanda por sigilo não vem, em geral, das mães biológicas (Modell, 1994; Wegar, 1997). E, de forma significativa, nesses últimos quinze anos, com a “reabertura” de arquivos em diversos estados dos EUA e outros países da Europa, uma porcentagem relativamente pequena dos pais biológicos se opôs à divulgação de sua identidade.

Havia no clima pós-guerra um outro argumento a favor do chaveamento dos arquivos de adoção que passou a ocupar o espaço da cena: o bem-estar dos filhos. No rastro da nova ciência de psicologia infantil (com autores tais como Bowlby, Klein etc.. ver Fonseca, 2009), consolidava-se a crença de que a melhor coisa para as crianças adotadas era ajudá-las a aderir ao modelo “natural” de desenvolvimento infantil, isto é, com forte vínculo com um cuidador principal (se não a mãe biológica, então a mãe adotada), afastando qualquer rastro da família de origem. Nesse clima, o desejo expresso por um adotado de conhecer suas origens tendia a ser visto não somente como desnecessário, mas como patológico. Os poucos adotados que ousavam procurar dados sobre suas famílias consanguíneas eram rotulados de neuróticos – fruto de adoções mal-sucedidas (Samuels, 2001). Ironicamente, foi apenas vinte ou trinta anos mais tarde, quando a nova leva de crianças adotadas chegou à maioridade e, já adultos, iniciaram a “procura de suas origens”, que as certezas sobre os efeitos benéficos desse “segredo de justiça” ruíram.

Nos anos 70, a Inglaterra foi um dos primeiros países que abriram seus registros aos filhos adotivos acima de 18 anos. A partir de 1976, os pais que entregavam seu filho em adoção eram informados que este, chegando à idade adulta, teria o direito de saber a identidade deles.8 Nos anos 80, a preocupação com “o direito às origens” alastrou-se além da iniciativa de um ou outro governo nacional, adentrando as discussões da década internacional da criança declarada pela UNICEF. Este direito, já enunciado pelos adotados e por suas associações, foi reforçado através de dois tipos de debate. Por um lado, o mundo testemunhava um aumento importante de adoções internacionais envolvendo crianças nascidas na Índia, na Coreia, no Brasil e outros que deviam assumir uma nova identidade na Europa ou na América do Norte. Emergiu um consenso de que era do interesse dessas crianças preservar informações sobre sua proveniência nacional, abrindo inclusive a possibilidade de elas cultivarem vínculos com elementos pré-adotivos de suas biografias. Por outro lado, vinham à tona os crimes da ditadura militar na Argentina. O regime militar apropriara-se dos filhos dos desaparecidos (pessoas presas, sequestradas e mortas durante a ditadura) para, sob a proteção do sigilo da adoção, apagar suas genealogias e entregá-los “limpos” em adoção.9 Antes de tudo, inquietações levantadas pelas Madres de Plaza de Mayo sublinhavam abusos potenciais do controle estatal de informações.

Esses debates surtiram efeito. Ao longo da formulação da Convenção dos Direitos da Criança (1989), as críticas se estenderam à desapropriação indevida de crianças em qualquer população política ou economicamente oprimida. Tornou-se evidente que o ocultamento de informações poderia ser usado para encobrir sérias irregularidades. Assim, entraram cláusulas na Convenção que, não obstante certas ambiguidades, afirmavam a responsabilidade do Estado “a preservar a [...] identidade [da criança], incluindo a nacionalidade, o nome e as relações familiares” (art. 8)10 (ver Yngvesson, 2007).


Esta breve retomada da história recente de políticas para a entrega de uma criança não revela um padrão de evolução linear, pelo contrário, mostra idas e voltas que refletem as circunstâncias de variados momentos históricos, de muitos lugares distintos. Sugere que, num dado contexto, as noções que circundam a entrega de uma criança são negociadas entre categorias – autoridades estatais, pais adotivos, genitores, filhos adotivos e outras – que podem ter interesses diferentes e pesos políticos desiguais. É dessa negociação, que ocorre dentro de um determinado “clima moral”, que emergem as orientações sobre os termos de entrega e, em particular, sobre as implicações positivas ou negativas do anonimato. Passamos agora a examinar diversos desses “climas” no cenário contemporâneo.


O parto anônimo norte-americano: uma peça-chave no movimento contra o aborto

A nova onda de parto anônimo foi iniciada, não por acaso, no Texas, em 1999, com o apoio entusiasta do então governador George W. Bush. Ao primeiro projeto de lei oferecendo “abrigos seguros” (safe havens) a recém-nascidos seguiu-se uma “epidemia” de bebês abandonados em terrenos baldios ou na porta de edifícios que, em menos de um ano, deixara um saldo de três mortos na capital do estado. A especialista em estudos jurídicos, Carol Sanger (2006), nos lembra que não foi a primeira “epidemia” norte-americana deste tipo. Dez anos antes, Iowa (outro estado) tinha reagido à situação semelhante com esforços redobrados em torno da educação sexual, incluindo informação sobre aborto. Mas nesse fim de século o clima moral nos Estados Unidos era marcadamente conservador. Os políticos que pleiteavam uma “volta aos valores básicos de família” se elegiam com mais frequência. Entre outras bandeiras visando ao fortalecimento da família, constava a de cercear o direito ao aborto, garantido pela Corte Suprema desde 1973.

Sanger associa essa conjuntura norte-americana à aliança do fundamentalismo cristão, em franca expansão, com uma noção lançada pelo Vaticano: a “cultura da vida”. Em um importante discurso de 1995, a partir do elogio de coisas “obviamente” inatacáveis – generosidade, equilíbrio ecológico, cultura e vida – João Paulo II tinha acirrado seu combate contra “a cultura da morte”. Nesta, entre as coisas maléficas, havia uma forte associação entre aborto e infanticídio. Incorporada à retórica oficial da administração presidencial de Bush, a “cultura da vida” viria a associar-se não somente ao movimento antiaborto (em determinados estados, o parto anônimo foi implementado através dos mesmos centros, de inspiração religiosa, que militavam contra aborto), mas também a um novo estilo de educação sexual, baseada quase exclusivamente na ideia de abstinência. Pesados investimentos financeiros, garantidos pelos cofres públicos (federal e estatais), surtiram efeito.

Acatando a ideia de que a relação sexual extramarital é a raiz de todos os males (Doenças Sexualmente Transmissíveis-DST, Aids, gravidez precoce), um número impressionante de adolescentes americanos passou a usar um anel prateado (comercializado inclusive por Amazon.com), símbolo de relações castas, e conforme estudo realizado em 2001, 10% dos jovens americanos assinaram promessas de virgindade pré-nupcial (Sanger, 2006:817). Ironicamente, a taxa de gravidez na adolescência cresceu nesse fim da administração Bush (Harris, 2007). É diante desse contexto contraditório – por um lado, de pressões sociais e institucionais em favor de uma moralidade sexual conservadora e, por outro, da vida sexual ativa de muito jovens – que os safe haven laws se alastraram pelos Estados Unidos. Em menos de dez anos (1999-2008), alguma forma de parto anônimo foi legislada em todos os estados da União.

Ostensivamente, as leis tinham por objetivo salvar a vida de recém-nascidos. Críticos sublinharam a ironia de tal objetivo logo numa época de cortes orçamentários que diminuíam a proporção de fundos destinados a creches e a outros serviços em prol do bem-estar infantil. Com ainda mais pertinência, profissionais do campo de atendimento à criança e ao adolescente levantaram sérias dúvidas quanto à eficácia das leis no combate ao abandono. Chamava-se a atenção para o fato de que, em certos lugares, anos depois de a legislação passar, nenhuma mulher tinha aproveitado a “oportunidade” do parto anônimo. Em pelo menos um estado, a primeira mãe a entregar seu recém-nascido sob a nova lei tentou voltar atrás, tendo que enfrentar prazos muito mais rígidos do que na adoção usual. E, mais importante: na maioria dos estados, mesmo se algumas poucas mulheres houvessem aproveitado a nova lei, o número de recém-nascidos expostos – isto é, deixados em condições perigosas – não diminuiu (Unintended Consequences, 2003; Greiner, 2003). Os resultados não pareciam melhorar nem com altos investimentos financeiros. Em Nova Jersey, onde houve uma vigorosa campanha publicitária para instruir cidadãos sobre essa oportunidade, um neném foi abandonado justamente na frente de um “outdoor” que publicizava o parto anônimo. Na Califórnia, no âmbito de um hotline estabelecido para promover a lei – 160 telefonistas, trabalhando em 40 línguas – 95% dos telefonemas vinham não de mães desesperadas, mas sim de casais e mulheres interessados em adotar os nenéns assim abandonados (Ibid). Nebraska, último estado a aprovar uma lei de “abrigo seguro”, ampliou os termos para incluir a possibilidade de abandono de crianças de até 19 anos de idade. Com a implementação da proposta em 2008, autoridades estatais depararam-se com um surto de adolescentes abandonados na porta dos hospitais por seus pais que, dessa maneira, procuravam para eles uma vida melhor (ver New York Times, 3 de outubro de 2008).

Na ótica de observadores críticos, os efeitos simbólicos do parto anônimo são bem mais preocupantes do que os eventuais benefícios. Sanger lembra que, nos Estados Unidos, para cada criança morta ou “exposta” em lugar inseguro, há pelo menos 300 abandonados nos berçários hospitalares por mulheres que fogem depois de parir. Seu intuito é sublinhar a desproporcionalidade entre o pequeno número de bebês realmente colocados em risco e a enorme energia investida em combater o problema. A autora vê no parto anônimo um tipo de “simbolismo sorrateiro” (stealth symbolism) que age no sentido de combater o aborto. Por um lado, a atenção direcionada aos bebês “expostos” serve para agudizar simpatias pelo feto ameaçado de aborto. A mãe má representa um perigo para seus filhos de qualquer idade ou estágio da gestação.11 Abuso vai se somando a aborto e infanticídio para justificar medidas extremas de controle sobre o corpo feminino.12 Por outro lado, os apoiadores do parto anônimo o apresentam não como controle, e sim como concessão que exige da mãe uma contrapartida.

Desta forma, certa juíza opinou que, graças ao novo contexto, talvez coubesse uma reconsideração do direito ao aborto. Arguiu que, hoje em dia, a mãe solteira não enfrenta mais ostracismo social; existem programas públicos que oferecem à gestante ampla cobertura médica e diversos serviços sociais. Antes de tudo, a lei do parto anônimo lhe proporciona a opção de deixar seu recém-nascido aos cuidados do Estado sem maiores complicações. A insinuação está clara: diante de tantos fatores a favor da maternidade, só uma mulher ingrata não levaria sua gravidez a cabo (Sanger, 2006:810). Em face de tal interpretação, não é surpreendente que as feministas norte-americanas sejam quase unânimes na sua oposição ao parto anônimo.

Mas há outra categoria que expressa fortes críticas às novas leis: as associações que zelam por uma supervisão mais criteriosa dos serviços de adoção. Nos EUA, há centenas de agências privadas credenciadas para realizar adoções (child-placing agencies). Elas atendem ao mesmo tempo às pessoas que querem dar seus filhos em adoção e àquelas que querem adotar; realizam os estudos sociais necessários, fornecem aconselhamento às diferentes partes e preparam um relatório final. A corte juvenil que dá um desfecho legal à adoção segue em geral a recomendação dessas equipes credenciadas. “Vender bebês” é proibido, mas é praxe os pais adotivos “ajudarem com as despesas” da parturiente – fato que, levando em consideração a preponderância de “pobreza” entre os motivos de abandono, pode carregar muito peso.13 As agências, por sua vez, cobram taxas que variam conforme o tipo de criança que oferecem (recém-nascidos brancos em boa saúde chegando dezenas de milhares de dólares). Desde 2001, algumas dessas agências, com apoio do poderoso National Council for Adoption e com farto financiamento do governo federal, fazem campanhas sobre adoption awareness – incluindo notas na mídia e anúncios no catálogo telefônico – para que haja certeza de que todas as mulheres potencialmente interessadas sejam informadas quanto à possibilidade de entregar seu bebê em adoção (Greiner, 2003).

Críticos deste sistema acusam agências de estarem usando retórica sobre “o nobre sacrifício” e “um futuro melhor para todos” para pressionar mulheres e casais economicamente desfavorecidos a entregarem seus filhos em adoção (Greiner, 2003). A porta-voz do Concerned United Birthmothers (Movimento Unificado de Mães de Nascimento), falando nesse “big business” que gera um lucro anual de quase 1,5 bilhão de dólares, cita mediadores que prometem até bolsas universitárias para quem entregar seu filho (Gerow, 2002). No âmbito desse “mercado de bebês”, o parto anônimo assume conotações nada alentadoras. A fundadora da maior organização dos direitos civis de pessoas adotadas, Bastard Nation (Nação de Bastardos), questiona o envolvimento de novas autoridades – nos hospitais, nas delegacias de polícia, nos postos de bombeiros etc.– completamente fora da rede existente de bem-estar infantil:

Acreditamos que as leis de parto anônimo [...] são simplesmente uma tentativa sorrateira para codificar a adoção secreta e anônima que encoraja a falta de escrúpulos dentro da indústria de adoção e que permite a transferência questionável de crianças de seus pais para estranhos (Greiner, 2003:4).


Além de promover colocações irregulares, as leis estariam agindo como arma do setor mais conservador dos pais adotivos que não quiseram aceitar passivamente a erosão do princípio de segredo. Nos últimos anos, o lobby de filhos adotados tem conquistado em muitos estados a “abertura” dos arquivos de adoção (ver, por exemplo, USA Today, 12/2/2008). O parto anônimo seria uma tática de defesa, tornando essa abertura completamente inócua e, assim, prevenindo contra qualquer possibilidade de reverter “o segredo das origens”.


O parto anônimo na França: direitos individuais em conflito

Do outro lado do Atlântico, na Europa ocidental, as inquietações sobre “mães abandonantes” tomaram rumos muito diferentes. Nenhum lugar, fora os Estados Unidos, provocou o sério questionamento do aborto – direito garantido desde a década de 70. Na Inglaterra, conforme O’Donavan (2002), existe uma visão tão idílica da maternidade biológica que o abandono não é abertamente confrontado: além de poucas pesquisas, simplesmente não há discussões públicas sobre o tema. Na França, por outro lado, as discussões envolvem acirrados debates no Parlamento há mais de um século e, com particular intensidade, desde o início dos anos 90.

As rodas nas Santas Casas francesas tinham fechado já no final do século XIX. Foram gradativamente substituídas por um procedimento considerado mais civilizado, conhecido desde a época napoleônica, que estipulava o direito de uma mulher parir em qualquer estabelecimento público sem ser identificada. Na véspera da segunda Guerra Mundial, no âmbito de um governo pró-natalista, o accouchement sous-x passou a ser um direito universal: qualquer mulher, enfrentando o que considerava ser uma “maternidade impossível”, podia ser admitida no hospital e parir, sendo registrada apenas como Madame X.14 De fato, malgrado referências episódicas a bebês abandonados nos conteneurs (lixão), havia sempre ceticismo sobre a real eficácia do anonimato para prevenir tais atos.15 Assim, desde cedo, o cerne das discussões em torno de “abandono” não parece ser nem a vida dos recém-nascidos, nem o vínculo entre o neném e sua “mãe verdadeira”, e sim a questão de direitos individuais – o direito da mulher de não ser mãe, o direito do filho de “conhecer suas origens” e o direito do homem de ser pai. As contendas, assim como os protagonistas desse debate que chegou por momento a ocupar um espaço quase obsessivo na mídia francesa, foram detalhadas por Lefaucheur (2004). Aqui recuperamos apenas pontos relevantes para a nossa discussão.


França I - Mulheres: o direito de não criar o filho que pariram

O respeito pela autonomia da mulher – e seu direito de aceitar ou não as consequências da gravidez – é uma causa cara às feministas francesas. Tem surtido resultados políticos importantes: não somente a legalização do aborto (já há mais de trinta anos), mas também a exigência de que o Estado forneça alternativas à mulher que, por causa de circunstâncias familiares ou qualquer outro motivo, não deseja ficar com sua criança.16 Foi nesse espírito – o de garantir alternativas à mulher – que as feministas francesas, assumindo uma posição oposta à das norte-americanas, endossaram a versão francesa do parto anônimo – accouchement sous-x. Todavia, esse endosso tem produzido uma situação curiosa, na qual feministas se encontram alinhadas com fundamentalistas religiosos, militantes antiaborto e críticos ferrenhos à parceria civil de casais homossexuais (PAC) (ver Lefaucheur, 2004: 334). É interessante que quando as mulheres mais concernidas pela legislação – as próprias “mães abandonantes” – finalmente assumiram politicamente sua voz, foi para combater a radicalidade do procedimento sous-x. Em 1998, surgiu a Association des Méres de L’Ombre – AMO (Associação das Mães na Sombra), voltada especificamente para as mulheres que tinham parido sous-X. Estas diziam que não tinham entendido as consequências do parto anônimo quando passaram pela experiência, que não foram informadas quanto às alternativas, e que foram levadas a crer que o abandono anônimo era a única maneira de entregar seu filho em adoção (Lefaucheur, 2004; Sageot 1999). Outra associação fundada pouco tempo depois, Les X en colère (algo como “As anônimas no contra-ataque"), acentuava o pleito dos filhos nascidos sous-x. As duas associações juntas passaram a bater numa mesma tecla: que a maternidade dita “impossível” podia ser apenas “aparentemente” ou “imediatamente” impossível. Assim, a mulher deveria ter o direito de reverter o anonimato que ela própria houvera solicitado.

Desde os anos 90, houve uma série de pesquisas realizadas com mães que aproveitaram a oportunidade de parir sous-x. A primeira foi a obra de uma psiquiatra infantil, persuadida de que uma mulher opta pelo anonimato como uma maneira de prevenir seus impulsos infanticidas (Bonnet, 1990). A “mãe abandonante” seria uma mulher que, por causa de abusos (emocionais, físicos, sexuais) ou simplesmente negligência sofridos na própria infância, não é capaz de assimilar os atributos normais da vida adulta: sexo e maternidade.17 Assim, ignora sua gravidez por mais tempo possível e, depois do parto, deseja nunca mais pensar no assunto. Parir sous-X seria não somente o exercício de um direito, seria um gesto de amor – título do livro de Bonnet – pois seria uma maneira de a mãe preservar seu filho apesar de rejeitá-lo. Esta pesquisa, endossada pelas associações de pais adotivos, teve forte influência na decisão do Parlamento francês, em 1993, de incluir o direito ao accouchement sous-x no código civil do país.

Ainda na mesma década, houve mais dois inquéritos que tiraram conclusões de outra natureza – um, realizado pelo Ministério de Assuntos Sociais, o outro, pelo Departamento de Direitos da Mulher. A ênfase estava agora em fatores socioeconômicos e não psicológicos. Avaliando dados sobre todas as mulheres que tinham solicitado anonimato nos últimos cinco anos, a segunda pesquisa revela as parturientes como jovens (a metade tinha menos de 23 anos), sem autonomia financeira (um terço vivia com pais ou companheiro) e vulneráveis a pressões familiares e comunitárias. Referindo-se a vários elementos negativos – pobreza, isolamento e carência financeira da mãe solteira, o status precário de imigrantes, pressões de uma comunidade religiosa conservadora, violência doméstica e outros – chega à conclusão de que

[...] a situação das mulheres que solicitam o segredo (de sua identidade e do parto) remete-se essencialmente à falta de autonomia [...] (Lefaucheur, 2000:6, apud O’Donavan, 2002) [ênfase minha].


O jurista P. Murat (1999) chama a atenção para a fragilidade do pacto de segredo quando o desejo materno é colocado à prova do tempo:

É aberrante que quando anos depois da demanda de anonimato a mulher parturiente e o próprio filho, cada um de seu lado, procuram elementos que lhes dizem respeito, [a lei] se adere aos efeitos congelados de circunstâncias do passado que não existem mais” (1999:68).


E levando o debate ainda mais longe, o sociólogo C. Sageot, presidente do órgão público voltado para a busca de origens, inverte o argumento usado por proponentes do parto anônimo, insistindo que esta medida viola os direitos da mulher:

É preciso entender que as mulheres que realizam o parto anônimo estão hoje em uma situação semelhante àquela das Madres de Plaza de Mayo na Argentina [...] em busca de seus filhos desaparecidos, sem nome. Quando o Estado substitui a pessoa para designar o lugar da criança, em quaisquer circunstâncias, há sempre no fundo a sombra de um poder autoritário (Sageot, 1999, s/p).


Analistas que seguem esta linha de interpretação insistem que o segredo de justiça serve para proteger não as mulheres, e sim a honra de suas famílias. Protege o tio abusador, o pai incestuoso, o primo ou vizinho estuprador: “não há mãe, não há pai, não há pistas, não há [possibilidade de] processo penal” (Sageot, 1999, s/p). Mesmo as meninas que engravidaram de um namorado descrevem cenas que sugerem tudo menos sua autonomia de decisão: “São meus pais que decidiram tudo, sem me dizer nada e, durante [x] anos não pude falar disso para ninguém” (Lefaucheur, 2001). Mas vários pesquisadores lembram também que há mulheres constrangidas a pedir o anonimato nem tanto pela vergonha de algum ato sexual ilícito, mas para fugir da extrema reprovação que pesa sobre a “mãe abandonante”. Assim, recomendam que as feministas, em vez de reivindicarem o direito ao parto anônimo, lutem contra o “tabu do abandono”, portanto, contra a atribuição das mulheres do destino inexorável da maternidade (idem).


França II - Filhos: o direito a conhecer as origens

Já no final dos anos 70, a França, tal como a Inglaterra, havia criado um dispositivo legal permitindo a pessoas adotadas através da rede pública acesso aos seus dossiês administrativos. Entretanto, passaram-se mais de vinte anos antes de essa política começar a surtir efeito. Foi em 1993, na ânsia de adaptar os princípios da Convenção dos Direitos da Criança da ONU (1989) ao contexto francês, que o Parlamento voltou a colocar em discussão o accouchement sous-x. Nesse ano, em debates acalorados sobre o direito de pessoas nascidas sous-x de realizarem uma investigação de maternidade, a Câmera de Deputados mostrou séria resistência a esta “tradição francesa”, enquanto o Senado, uma instância tradicionalmente mais conservadora, reafirmou o princípio de anonimato total (Murat, 1999).

Nos anos seguintes, diversos intelectuais uniram-se à causa dos filhos adotados em busca de suas origens. A psicanalista, Geneviève Delaisi de Parseval e seu colaborador, o psicólogo e especialista em adoção Pierre Verdier, publicaram o livro Enfant de Personne (1994), apresentando argumentos contundentes contra o anonimato em processos de adoção. A socióloga e feminista Irene Théry editou um relatório que apresentava o parto anônimo como um assalto aos direitos da criança: “Pior do que enfrentar o silêncio do desconhecido (como no caso de crianças expostas), talvez seja o fato de um indivíduo saber que foi a própria sociedade que orquestrou o apagamento de suas origens” (Thery apud O’Donavan, 1998:179).

Em 1996 foi criada a Coordenação das Ações para o Direito ao Conhecimento de Origens (CADCO) e, em 2002, Ségalène Royal, a então ministra da Família, inaugurou um serviço que deveria ajudar adotados não somente a identificar, mas a localizar e a encontrar membros de sua família biológica: O Conselho Nacional de Acesso às Origens Pessoais (CNAOP). Lefaucheur e Verdier – ambos publicamente contra o parto anônimo – foram nomeados, respectivamente, presidente e vice-presidente do órgão. Entretanto, o mandato de ambos terminou poucos meses depois com mudanças no governo nacional. O novo ministro da família, atento às queixas das associações de pais adotivos, substituiu Lefaucheur e Verdier por uma dupla de médicos menos convencidos da urgência de sua missão (Lefaucheur, 2004).

Enquanto na arena pública intelectuais, políticos, profissionais e feministas debatiam a questão de accouchement sous-x, os adotados passaram a agir individualmente, reclamando aos tribunais o livre acesso aos seus dossiês de adoção. Um primeiro caso de interesse diz respeito à Pascale Odièvre, nascida de uma Madame X em 1965. Na vida adulta, procurou junto às autoridades estatais informações sobre suas origens. Foram-lhe comunicados “dados não-identificadores” de seu dossiê: seus pais já viviam juntos há sete anos quando ela nasceu e ela tinha três irmãos, todos homens.18 Porém, apesar do nome da mãe constar nos registros, Odièvre teve negado o acesso a esta informação – fato que provocou sua decisão de recorrer à Corte Europeia de Direitos Humanos (Odièvre, V. França, 1998).

A análise deste caso revela o uso de muitos argumentos a favor e contra o anonimato já discutidos acima. Odièvre evocava o artigo 8 da Convenção dos Direitos da Criança – o direito de conhecer sua família. O governo francês replicava que sua família adotiva era sua família – a única relevante em termos da lei. A Corte deliberou que a Convenção não se aplicaria neste caso, já que a litigante não era mais criança. Também disputavam-se pontos, como a autonomia da mãe biológica, o direito à privacidade, a eficácia do procedimento sous-x na prevenção do aborto e/ou infanticídio etc. (Lefaucheur, 2004). Depois de longos debates, em 2003, a Corte Europeia – levando em consideração o fato de que o governo francês tinha aprovado uma lei facilitando a investigação de maternidade – decidiu contra a demanda de Odièvre por uma margem de 10 contra 7.


França III - Homens: salvaguardando o exercício de paternidade

Há duas outras disputas que nos últimos anos chamaram a atenção da mídia, sublinhando o direito de uma terceira categoria: a dos homens que engendraram a criança. Na França (como nos Estados Unidos), o homem que procura garantir seu direito paterno em relação a um filho por nascer pode inscrever seu nome num registro oficial de “pais putativos”.19 Em 1997, um homem na cidade de Riom declarou em cartório que certa mulher estava grávida de seu filho. Algum tempo depois, ela pariu sous-x, dizendo para seu (ex-)companheiro que o bebê tinha nascido morto. Quando o homem soube a verdade, a criança – já com quatro meses de idade – estava vivendo com uma família adotiva. Num primeiro esforço de exercer a paternidade, ele saiu vitorioso: a corte francesa concordou em realizar um exame de sangue para verificar o parentesco entre pai e filho. Entretanto, o lobby de pais adotivos, por meio de sua Associação Enfance et Families Adoptives EFA, conseguiu reverter a situação através de um apelo judicial. O juiz da segunda instância deliberou: já que o nascimento ocorreu sous-x, legalmente a mãe – ex-companheira do suposto pai – nunca deu à luz a qualquer criança. Como este poderia pretender ser participante de um evento que nunca ocorreu? (ver Murat, 1999; Lefaucheur; 2004).

Caso semelhante começou no ano 2000, na cidade de Nancy, quando, já antes do pequeno Benjamin nascer sous-x, seu genitor registrou-o numa declaração pré-parto de paternidade. O homem era casado e sua companheira (esta, soropositiva) também, mas cada um com outro parceiro. Ao reclamar a guarda de seu filho, desculpou a decisão da mulher: o marido dela – um alcoólatra – a tinha “sequestrado”, obrigando-a a abandonar o filho. Ainda denunciou a atuação dos trabalhadores sociais:

Se o Serviço Público não tivesse pressionado [minha companheira] para fazer um parto anônimo, eu teria recuperado meu filho imediatamente [...] É meu filho. Eu o desejei. Deve carregar meu nome e viver com seus pais (Grosjean, 2003:s/p).


Conforme esse homem, quando ele e a companheira, mais uma vez juntos, iniciaram seu pleito, a criança ainda se encontrava numa instituição pública. Entretanto, os serviços oficiais não lhe deram apoio, pelo contrário, quando souberam que o (suposto) pai biológico andava atrás, apressaram-se em encontrar um lar adotivo para a criança. Depois de mais de três anos, o homem conseguiu uma decisão judicial para restituir-lhe o filho. Porém, uma corte de apelo, constatando que este já vivia numa família pré-adotiva desde quatro meses de idade (e que a adoção – neste caso, pré-adoção – é irreversível), pronunciou-se contra o suposto pai. Com o apoio da EFA, os pais adotivos (um casal de médicos) justificaram sua insistência não somente apontando para “os graves problemas familiares e de saúde” dos genitores, mas também sublinhando o consentimento da mãe, que agiu com toda a lucidez (en toute conscience), abandonando seu filho “para se vingar do companheiro que tinha largado ela no meio da gravidez” (Idem).

Mais uma vez, a disputa girava em torno do direito da mulher “autônoma” de decidir unilateralmente o destino de seu recém-nascido. Este argumento foi derrubado apenas em 2006 quando, em decisão inédita, a Corte Superior decidiu a favor do pai, anulando a adoção realizada pelo casal de médicos (Le Monde, 8/4/2006).20 É evidente que, além de representar um pesadelo para todos os envolvidos, essas disputas põem a nu o calcanhar de Aquiles do accouchement sous-x. Diferentemente das mães biológicas e dos filhos adotivos vistos acima, esses homens estão pleiteando muito mais do que livre acesso à informação: querem exercer plenos direitos de paternidade, incluindo o direito de criar seus filhos.

Ironicamente, nos debates públicos, defensores do parto anônimo têm se amparado em teorias caras às ciências sociais, contra o essencialismo biológico e a favor de uma noção socialmente construída do parentesco. Nesses termos, acusam os críticos do parto anônimo (vistos como antipáticos à adoção) de “sacralizar a biologia”. Uma primeira resposta a essas acusações sublinha a desigualdade socioeconômica entre os litigantes na maioria de disputas e descreve o parto anônimo como mais um mecanismo de discriminação de classe. Estendendo o combate contra o parto anônimo ao combate contra o segredo em geral, tal argumento pretende que “Afinal, abrir mão do anonimato arrisca revelar o que ninguém quer assumir: que a adoção em geral diz respeito à transferência de crianças de grupos extremamente pobres para grupos mais abastados” (Lapeyre, 2000:135-6).

Uma segunda resposta envolve a sofisticação dos próprios modelos analíticos usados por cientistas sociais. Lefaucheur, por exemplo, sugere que, em vez de insistir no dilema parentesco de sangue versus parentesco socialmente construído, seria mais útil “tentar abrir uma alternativa no sentido de reconhecer a ‘pluripaternidade’ da sociedade francesa (e ocidental)” (2004:339). Reforçando uma perspectiva que também foi expressa em decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos (Gaskin, V. UK, 1989), esta linha de argumentação pleiteia o direito da pessoa de exigir do Estado detalhes de sua história de vida – a informação necessária para entender seu desenvolvimento durante a infância e a juventude (O’Donavan, 2002). Alguns desses pesquisadores afastaram-se do apelo retórico ao “direito às origens” (expressão que pode encerrar conotações racistas), sugerindo que se deveria falar, ao invés, em termos do “direito à história pessoal”. Em outras palavras, procuram esclarecer a perspectiva de que “Não se trata tanto de uma verdade biológica, mas sim de uma verdade biográfica” (Cadoret, 2004:280).



Brasil 1: as mães que expõem seus recém-nascidos. A situação de perigo

Chegamos agora ao cerne do argumento dos proponentes da legislação sobre parto anônimo: a alegação de que tal possibilidade previne a morte ou a “exposição” de recém-nascidos. Já vimos acima levantamentos indicando que lá, onde existe a “roda” (antiga ou moderna), não há diminuição do número de bebês expostos. Analistas sugerem que há uma grande diferença entre as mulheres que parem sous-x, isto é, aquelas que, para magoar um ex-companheiro, fugir da miséria ou outro motivo, fazem contato com um hospital antes do parto, organizando o “abandono” da criança, e aquelas que descartam o neném em condições que o expõem a risco. Abstraímos de notícias da imprensa brasileira elementos para tentar visualizar essa diferença. Evocamos, como exemplo, o caso de Andréia, que abriu este artigo. Como explicar que esta mulher, “infanticida” em potencial, foi parir logo no banheiro do hospital, abandonando o recém-nascido num lugar tão público que seria impossível não detectá-lo logo? Podemos supor que não planejou o parto no hospital não mais do que premeditou o descarte do bebê. Seu ato sugere um estado de confusão tamanha que não permitia uma decisão racional.

Os estudos sobre mães que cometeram neonaticídio sublinham sistematicamente a hipótese de grande confusão mental. Trata-se em geral de mulheres que escondem sua gravidez desde o início ou, então, entram num estado de negação total (“pervasive denial”), ignorando até o fim que estão grávidas.21 “Algumas mulheres ficam chocadas quando entram no trabalho de parto, imaginando que estão com cólicas intestinais” (Meyer & Oberman apud Sanger, 2006:799). Por um processo de despersonalização radical, convencem-se que não estão tendo um neném, entram em um estado “disassociativo”, perdem temporariamente o sentido de realidade, e frequentemente não lembram o que fizeram com a criança. No seu comentário sobre um caso na França – de uma estudante que pariu no banheiro do colégio e descartou a criança no lixo – Lefaucheur também emite profunda dúvida sobre a eficácia do parto anônimo para prevenir tal tragédia: “Para [uma mulher] solicitar o segredo na admissão hospitalar, é preciso, primeiro, que ela reconheça que está grávida ou pronta para dar à luz [...] Para levar um recém-nascido à roda, é preciso ver [nesse objeto] uma criança e não um excremento” (Lefaucheur, 2001).

Há certo perigo de apoiar-se em discursos sobre a fragilidade mental da parturiente. Estes podem reforçar noções essencialistas do comportamento feminino, tal como nas interpretações sobre a loucura puerperal, discutidas por médicos e juristas desde o século XIX (Rohden, 2002).22 A hipótese da confusão mental é uma entre outras possíveis. Mas certamente é interessante notar como em determinado lugar um discurso é privilegiado em relação a outro. O’Donavan (2002), por exemplo, explica que, na Inglaterra, o abandono de bebês é considerado não um assunto policial, mas sim assistencial.

Enquanto quaisquer maus-tratos por pai ou mãe contra crianças mais velhas são vistos como algo monstruoso, há uma relativa compaixão pela parturiente – considerada vítima – que inadvertidamente causa dano ao seu recém-nascido. Em vez de processar a mulher criminalmente, as autoridades esforçam-se para persuadi-la a se comportar como mãe. Quando a polícia intervém no caso de um recém-nascido “deixado na lixeira” é com um tom de ajuda, com notícias no jornal sublinhando que “a mãe pode estar precisando de cuidados médicos [...] pediríamos para ela se apresentar o mais rápido possível”. E há evidência de que, sob políticas com esta filosofia, a grande maioria de “mães abandonantes” não somente é localizada, como reunida pelo menos temporariamente com seus filhos. Se, por um lado, tais atitudes sugerem uma noção essencializada de maternidade (é possível que algumas mães não queiram essa reunião), por outro lado, demonstram um clima moral muito diverso daquele que aparece nos jornais brasileiros.

No artigo de jornal sobre Andréia, consta já na segunda frase a informação: “Segundo a polícia, ela deverá responder por tentativa de homicídio ou infanticídio” (Folha de São Paulo - FSP, 30/11/2007). Não é exceção. Em outras matérias sobre casos semelhantes, lemos que “a mãe suspeita já foi presa” (FSP, 2/2/2006), ou que foi “autuada em flagrante pela Polícia Civil por tentativa de homicídio” (FSP, 2/10/2007). Ou então a polícia oferece desculpas por que a mulher não foi autuada, por exemplo, “o período de flagrante expirou” (FSP, 22/2/2007) e prevê que a mulher será processada (FSP, 19/1/99) ou, no mínimo, “vai ser indiciada por abandono de incapaz” (FSP, 22/2/2007). Tais afirmações parecem vir ao encontro das expectativas do público. Vizinhos ameaçam linchar a mulher “abandonante” se sua identidade for descoberta, e delegados colocam a mulher numa cela individual, para evitar agressões de outras presas. Em outras palavras, no Brasil, a atitude que mais desponta em relação a essas mulheres parece ser a sede de punição.

Podemos ver essas atitudes como parte de um movimento geral, observado por analistas nos últimos anos, que implica uma ampliação de controle penal sobre as diversas esferas da vida social (Azevedo, 2003).23 Nas condenações de “mães abandonantes”, há um agravante de gênero. Não obstante a retórica sobre “paternidade responsável”, os avanços contraceptivos dos últimos anos concentraram os mecanismos de controle sobre o corpo da mulher. Numa progressiva individualização da maternidade, entendemos que a “escolha” é da mulher, já que “seu corpo lhe pertence” (Scavone, 2004; Gutmann, 2007; Imaz Martinez, 2007). Contudo, esse “poder” também implica uma culpa cada vez maior que pesa sobre mulheres pelas gravidezes (e filhos) que não dão certo. O Brasil não é exceção. Nesse contexto, no qual encontramos na mídia e nas políticas públicas uma idealização quase obsessiva “da boa mãe” (Meyer-Estermann, 2005; Klein, 2005), a demonização da “mãe abandonante” desponta como o revés assombroso da medalha.

Existe ainda outra especificidade do contexto brasileiro que merece destaque: a impossibilidade de realizar um aborto legal. Um outro caso, o de Elisabete (FSP, 10/10/2007), serve não somente para reforçar a hipótese da “sede punitiva” contra mulheres “abandonantes”, como também sugere como a criminalização do aborto parece propiciar esses trágicos desfechos. Diarista no interior de Minas Gerais, a moça, com 25 anos de idade, foi “indiciada por homicídio doloso qualificado por motivo torpe, motivo fútil e uso de asfixia” por ter jogado seu bebê, nascido prematuro com sete meses de gravidez, no córrego próximo à sua casa. Tendo na véspera ingerido substâncias abortivas, pariu sozinha na sua casa, dando fim a uma gravidez que tinha escondido do ex-namorado e dos pais. Depois, não lembrou exatamente o que fez: se atirou a criança pela janela, dentro do rio Arruda, ou se deixou o recém-nascido ao lado do tanque. A polícia estranhou que, quando autuada, “a mulher não demonstrou emoção ou chorou quando relatou o crime” (Ibid). Diante da falta patente de remorsos maternos, o IML de Minas Gerais prontamente emitiu um laudo atestando a “normalidade psíquica” de Elisabete. “Sem qualquer quadro de doença ou perturbação mental”, era “capaz de entender o caráter criminoso de seu ato”. Assim, logo depois da autuação, a mulher foi levada à penitenciária onde deveria aguardar julgamento.

Quinze dias depois (passado o choque do momento?), a mulher chorou copiosamente durante todo o interrogatório oficial. Disse que acreditava que o neném tinha nascido morto, já que não dava sinal de vida. Relatou que fizera diversas tentativas caseiras de aborto ao longo da gravidez mas, ironicamente, em vez de aumentar as simpatias por Elisabete, esta informação parece ter firmado a sua condenação. Além do mais, a vizinha foi indiciada por co-autoria do crime, pois foi ela quem recomendou, na véspera do parto, um chá e um comprimido de efeito supostamente abortivo. Podemos perguntar se não é esse clima moral – que obriga a mulher desesperada a tentar soluções “caseiras” – que contribui para seu pânico e confusão na hora do parto. Sem possibilidade de aborto hospitalar, a mulher que não quer levar adiante a gravidez não se beneficia com acompanhamento médico e dificilmente discerne as etapas da gestação, a saber, quando o embrião se transforma em bebê viável.

É difícil imaginar como a alternativa oferecida pelo “parto anônimo” levaria mulheres como Andréia ou Elizabete (i.e., que nunca aceitaram o fato da gravidez) a um regime de acompanhamento e parto seguros. Por outro lado, por ter recebido certo destaque na mídia, não é improvável que o “parto anônimo” acabe eclipsando formas já existentes de “abandono”, induzindo aquelas mulheres que não querem ficar com seus recém-nascidos a “optar” pelo anonimato como se fosse um procedimento rotineiro. É possível que elas venham a aceitar o anonimato como castigo “justo”, permitindo-lhes uma forma de expiação pelo crime (moral, senão legal) da “mãe abandonante”. O caráter imutável do acordo serve como endosso tácito à ideia de que qualquer mulher que não quer criar seu filho é um monstro – uma aberração da natureza – que, se tivesse contato, poderia colocar (se já não colocou) seu filho em grande perigo (Yngvesson, 1997; Sanger, 1996). Nesses termos, a medida apresentada como maneira para “descriminalizar o abandono” pode ironicamente produzir o efeito inverso.


Brasil 2: a escassez de recém-nascidos. Disponíveis para adoção

Analistas que trabalham no campo de atendimento a crianças em diferentes partes do mundo descrevem o extremo desconforto de profissionais diante da premência de uma separação entre mãe e filhos (Motta, 2005; Gaas, 2004). Sugerimos, contudo, que boa parte desse desconforto é devida à radicalidade de medidas legais que prevêem uma rápida transição entre a colocação da criança em abrigo (ou lar substituto) e sua adoção plena – implicando não somente separação física (o que poderia ser, em muitos casos, uma decisão consensual envolvendo pais biológicos), mas também um “corte limpo” de quaisquer pistas ou informações ligando a criança a seus pais e à parentela de origem. O parto anônimo leva essa radicalização ao último grau e em nome de quê? Se não previne infanticídio, se não é uma alternativa desejada (ou sequer aproveitada) pelas próprias gestantes, o que justifica uma medida tão extrema? Esta pergunta nos leva, por fim, a considerar as expectativas de pais adotivos.

Hoje, para muitas pessoas, o problema reprodutivo de maior importância não é o nascimento de filhos indesejados, mas sim o desejo frustrado de ter filhos. Pessoas que não encontram ou não querem parceiro heterossexual, mulheres profissionais que passaram da época de maior fertilidade, ou simplesmente casais com dificuldades de saúde reprodutiva, todos desejam e não conseguem engravidar (ver Grossi, Porto & Tamanini, 2003; Inhorn & Van Balen, 2002). Para as mulheres que optam por uma maternidade “assistida”, surgem as novas tecnologias médicas de procriação. Mas devemos lembrar que as tecnologias legais também “assistem” a esse desejo de maternidade, legislando sobre a transferência de crianças de uma família para outra, isto é, sobre adoção.24

Em certos aspectos, o campo de adoção no Brasil não é muito diferente do de qualquer outro país ocidental. No final do século XX, com a grande acessibilidade de tecnologias contraceptivas, a proliferação de subvenções sociais e uma reviravolta na moralidade sexual, há cada vez menos mulheres entregando seus recém-nascidos em adoção. Daí resulta uma escassez de bebês adotáveis. Na Europa e em certas partes da América do Norte, os candidatos à paternidade adotiva puderam recorrer à adoção internacional para suprir suas necessidades, buscando filhos na China, na Etiópia, na Guatemala etc. (hoje, bem mais da metade de crianças adotadas na Europa Ocidental e no Canadá vêm do Terceiro Mundo). Entretanto, esta opção, sendo cara, é inacessível à maioria de brasileiros.25 E, apesar de muita publicidade na mídia sobre um “enorme” número de crianças abrigadas, nem a adoção nacional pode ser considerada fácil.

Devemos lembrar que no Brasil os hospitais, as maternidades e as casas de parto (muitas vezes de inspiração filantrópica ou religiosa) foram o foco principal do processo de adoção até o início dos anos 80 (Abreu, 2002; Fonseca, no prelo). Foi no esforço de profissionalizar esse campo, assegurando uma equação equilibrada entre os direitos de todos os envolvidos, que a administração da adoção foi gradativamente retirada dos hospitais e entregue nas mãos de autoridades centrais do governo. Escândalos ligados à adoção internacional durante os anos 80 chamaram a atenção para o perigo de a adoção ser um pretexto para desapropriar famílias pobres de seu mais precioso recurso: os filhos (Abreu, 2002; Cardarello, 2007). Tal preocupação deu origem ao artigo 23 do ECA, afirmando que nenhum pai ou mãe seria destituído do pátrio poder só por causa da pobreza.

Ao longo dos anos 90, Juizados de Infância e algumas associações de pais adotivos aprofundaram esta reflexão, chegando a deslocar a ênfase, no atendimento a crianças em risco, da adoção para o princípio de convivência familiar. Trata-se de uma política progressista que, aproximando-se de tendências da Europa Ocidental, torna uma criança disponível à adoção só depois de se esgotarem todas as possibilidades de acolhida por parentes ou por outros membros na comunidade de origem. É, contudo, uma política pouco conformada à demanda dos adotantes em potencial inscritos na longa lista de espera do Juizado. O que estes querem – como, aliás, o que querem os pais adotivos na maior parte do mundo ocidental – é um neném o mais novo possível.26 Assim, tacitamente combatendo os esforços investidos no princípio de convivência familiar, zelam pela alacridade dos processos de adoção.

Diante desta situação de opções limitadas, existe uma crítica da parte de certas pessoas ao que é visto como o excessivo controle pelo Juizado: o poder público persiste em complicar a “liberação” de bebês, frustrando assim os milhares de candidatos ao status de pais adotivos. Para esses postulantes, o projeto brasileiro de parto anônimo é bem-vindo, primeiro, porque prevê que a criança será levada à adoção após oito semanas da data em que chegou ao hospital.27 É bem-vindo, em segundo lugar, porque propõe quebrar o monopólio do Juizado, concentrando boa parte do processo adotivo nas mãos de administradores e profissionais dos hospitais e das casas de parto. Finalmente, é bem-vindo justamente por causa do caráter anônimo do parto. Com a possibilidade de a mãe não deixar identificação alguma, cria-se uma categoria de adotados que nunca poderão realizar a “busca de origens”. Resta saber se estas novidades representam um equilíbrio de interesses entre as diferentes categorias envolvidas (criança, família de origem e pais adotivos). Se a experiência de outros contextos nacionais já suscitam dúvidas, há circunstâncias no Brasil que exigem ainda mais cautela.

Ao todo, encontramos uma configuração muito conservadora das tecnologias legais de parentalidade no Brasil. Ele é o único país, visto neste artigo, onde o aborto não chegou a ser descriminalizado. Também no Brasil não existem registros de paternidade pré-parto e houve pouco esforço para rever a política de segredo nos processos de adoção e doação de gametas.28 A ausência destas alternativas pesa sobre o significado do parto anônimo e levanta questões sobre a ancoragem política dos debates.

Vimos neste artigo que, nos mais diversos contextos, são as associações de pais adotivos que têm lutado contra a busca de origens, contra a abertura de arquivos e a favor do parto anônimo. Durante boa parte do século XX, os pais adotivos rechaçavam qualquer presença, quiçá qualquer menção, da família biológica de seu filho. Nos últimos anos, vemos se delinear uma cultura mais aberta de adoção. Nos EUA, por exemplo, além da gradativa abertura de arquivos, a chamada “adoção aberta” é hoje amplamente aceita – medida que prevê a participação dos pais biológicos na escolha da família adotiva, inclusive com a possibilidade de eventuais contatos (Grotevant & McRoy, 1998; Yngvesson, 1997). Devemos lembrar, contudo, que não se trata de uma possibilidade concedida pacificamente pelas famílias adotivas. A adoção aberta foi consequência da luta de pais biológicos que, não querendo assumir a etiqueta de “abandonantes”, reivindicaram essa participação como sine qua non ao seu consentimento à adoção (Modell, 1994; Carp, 2004). Na França também, a lenta mudança de atitudes tem sido conquista de movimentos sociais que uniram, sob uma mesma bandeira, pais biológicos e adultos adotados na infância, todos à procura de informações sobre consanguíneos.

No Brasil, por outro lado, vigora uma situação de grande desigualdade socioeconômica. A maioria esmagadora de crianças adotáveis é oriunda de famílias miseráveis, muitas vezes analfabetas e sem capacidade de articulação política. Existem pais que entram individualmente na Justiça para reaver um filho que foi adotado por outrem. Entretanto, não existe nenhuma associação de mães biológicas, e uma associação de filhos adotivos, recentemente fundada em Porto Alegre, está em perigo de extinguir-se por falta de apoio oficial.29 Diante de tal quadro, as políticas de reprodução propostas na arena pública são decididas por especialistas falando em nome do bem-estar dos outros. É possível, neste caso, que a extrema desigualdade de classe torne mais fácil a condenação moral de pais biológicos, inevitavelmente pobres. De que outro modo seria possível contemplar a possibilidade do parto anônimo, uma medida que apaga a genealogia materna e faz abstração total da presença masculina na procriação? Ao que tudo indica, sem a participação dos diferentes atores concernidos, o perigo aqui não é simplesmente o de criar políticas distantes da realidade. Ao promover fantasmas sobre mães ameaçadoras, o projeto de parto anônimo pode estar reforçando o estigma e exacerbando a violência que pretende combater.

Recebido: 26/12/2008

Aceito para publicação: 16/03/2009


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1 Uma primeira versão desse artigo foi apresentada na Fazendo Gênero 8 (Florianopolis, 2008), na Mesa Redonda, “Novas Tecnologias Reprodutivas e Maternidade”, organizada por Marlene Tamanini. Gostaria de agradecer a Dra. Soraya Fleischer e às bolsistas de iniciação científica Luciana Pess e Ana Arosi que tiveram todas importante contribuição para essa pesquisa.

2 O projeto foi seguido por outro semelhante, PL 3220/08, apresentado em abril de 2008 por Sergio Barradas Carneiro, este trazendo o endosso da entidade prestigiosa IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família). No dia 3 de setembro de 2008, a Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) do Congresso Nacional votou por unanimidade contraproposta 2747 com argumentos não muito diferentes dos expostos neste artigo. O movimento brasileiro a favor do parto anônimo perdeu ímpeto, mas a iniciativa legislativa abriu um debate que merece ser aprofundado.

3 De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990, art. 47), a criança adotiva é registrada no nome de seus pais adotivos, sem nenhuma menção dao status adotivo. O registro original onde no qual constam os nomes dos genitores é cancelado e arquivado pela autoridade judiciária. É só com autorização do juizado, mediante farta justificação, é que é permitida a consulta a essa documentação.

4 Nos Estados Unidos, só no ano de 1997, 30.800 recém-nascidos foram deixados por suas mães no hospital, contra 105 abandonados na via pública, em situação de perigo (Unintended, 2003:3).

5 Ver Volkman (no prelo), Legrand (no prelo), Seligman (no prelo) sobre o movimento norte-americano de filhos nascidos de gametas doados à procura de seus antecedentes genéticos.

6 Ver Jasanoff (2005) sobre as vantagens do método comparativo para ressaltar as “epistemologias cívicas” distintas de cada contexto.

7 A França esteve entre os primeiros países a reconhecer que o antídoto para essa situação seria um sistema de abono familiar, pago diretamente aos pais para que criassem eles mesmos os filhos (Donzelot, 1980; Lefaucheur, 2004). A nova filosofia foi consolidada na segunda parte do século XX quando o direito à subvenção foi estendido a todas as crianças do país.

8 Hoje, nesse país, existem serviços públicos e site patrocinado na internet para facilitar o acesso do adotado à sua certidão original, na qual constam os nomes dos pais biológicos. Em 2005, o direito de acesso a informações foi estendido ao campo das novas tecnologias reprodutivas, garantindo às pessoas, a partir daquele momento, que viessem a nascer de esperma ou óvulo doados, o conhecimento da identidade de seus pais genéticos. Ver no site http://www.adoptionsearchreunion.org.uk/Channels/. A-cessado em 17/10/2008.

9 A revogação de uma dessas adoções levou a um questionamento geral do princípio de segredo, desembocando na Lei de Adoção de 1997 (Argentina). Essa lei orienta que os adotantes devem manter seu filho informado quanto a sua “realidade biológica”, além de prever acesso dos adotados (maiores de idade) aos seus dossiês administrativos. Também Argentina passou a ser um dos únicos países da América Latina que reconhece a adoção simples (onde o adotado, além de sua filiação adotiva, mantém um vínculo legal com sua família de origem). A escolha entre adoção plena e a adoção simples é feita pelas partes; não cabe ao juiz decidir que tipo é o mais conveniente (ver Villalta, 2006 e 2008).

10 Há intérpretes afirmando que até hoje essas cláusulas não foram levadas ao pé da letra por nenhum governo pois, quando muito, se permite aos adotados acima de 18 anos acesso aos seus registros, isto é, quando já passou a sua infância (O’Donavan, 2002).

11 Para boa parte dos americanos – os que apoiam o embargo de financiamento federal para pesquisa em células-tronco, os que fazem visitas natalinas a seus embriões congelados e os que adotam embriões congelados para salvá-los de destruição – não há dúvida de que a vida humana começa com a concepção (Thompson, 2005).

12 Em um dos exemplos mais chocantes desta tendência, jovens grávidas viciadas em crack (a grande maioria negras) são condenadas a passar o período de gestação algemadas à cama hospitalar para impedir que provoquem danos ao feto (Roberts, 1999).

13 Pannor, Reuben, 1999, apud Gerow, 2002. "Poverty now prime consideration in decision to relinquish". American Adoption Congress Decree 1, p. 8.

14 Estima-se que desde 1941 nasceram cerca de 400.000 pessoas sous-x. No fim dos anos 90 eram cerca de 600 por ano (O’Donavan, 2002).

15 Conforme Lefaucheur (2001), já em 1850, uma comissão de inquérito do governo francês chegou à conclusão de que não há nenhuma relação entre a taxa de infanticídios e a existência (ou inexistência) da roda dos expostos.

16 Ver a pesquisa de Weiss (1998) sobre crianças nascidas com má-formação física para uma análise dos resultados desastrosos da política que obriga famílias a ficarem com um filho que rejeitam.

17 Ver Hacking (1999) para uma análise da categoria “abuso infantil” que, nos anos 70, expandiu de tal forma que pesquisadores norte-americanos podiam alegar a existência de tal experiência na biografia de 30 a 60% da população.

18 Lefaucheur (2004) nos informa que, ironicamente, esta informação era absolutamente imprecisa.

19 Parness e Arado (2008) lembram que, pelo menos nos Estados Unidos, os registros de “pai putativo” são mal divulgados, sendo a possibilidade de um reconhecimento pré-natal ignorada pela maioria dos homens. Os registros tampouco resolvem o problema de pais presumidos (marido legal da mãe) cuja mulher opta pelo parto anônimo.

20 A essa altura, os adultos envolvidos chegaram a um acordo: a criança permaneceria com seus pais adotivos, mas mantendo o laço jurídico e contatos com seu genitor, a adoção plena sendo substituída por uma adoção simples (Wikipédia, http://fr.wikipedia.org/wiki/N%C3%A9e_%22sous_X%22). Acessado em 6/10/2008.

21 A pesquisa de Imaz Martinez (2007) sugere que, mesmo em condições “normais”, a gravidez física não é circunstância suficiente para que a mulher assuma consciência ou identidade de mãe.

22 O Código Penal Brasileiro (art. 123) define o infanticídio como um crime exclusivamente feminino: “Matar, sob influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”, apenado com detenção de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

23 Ver Rifiotis (2007) sobre a ironia de uma concepção de direitos humanos que pretende avançar acirrando os instrumentos de punição.

24 Ver Ramirez (2006) para uma reflexão sobre a relação entre adoção e novas tecnologias reprodutivas.

25 Nos Estados Unidos, calculam-se despesas de um mínimo de 20 mil dólares (ver, por exemplo, http://www.holtinternational.org/adoption/fees.shtml#application. Acessado em 17/10/2008).

26 O resultado da política brasileira aparece claramente nas estatísticas sobre a adoção transnacional. De todos os países “fornecedores” de filhos, o Brasil é quem envia crianças mais velhas. Em 2002-03, 65,4% das crianças brasileiras adotadas nos USA tinham acima de 5 anos; em 2004, 70,7% dos brasileiros adotados na França tinham mais de 5 anos (ver Selman, 2006).

27 A Lei de Adoção aprovada na Câmara também prevê prazos relativamente curtos para o Juizado disponibilizar em adoção crianças abrigadas. Arosi (2008) chama a atenção para o fato do movimento a favor do parto anônimo ter diminuído depois da aprovação da Lei de Adoção.

28 Houve nesse sentido um início de abertura previsto na “Lei de Adoção”, aprovada pela Câmara de Deputados em 20/08/2008.

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