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Sexualidad, Salud y Sociedad

REVISTA LATINOAMERICANA


ISSN 1984-6487 / n.4 - 2010 - pp.80-104 / www.sexualidadsaludysociedad.org



De sapos e princesas”: a construção de uma identidade trans em um clube para crossdressers



Marcos Roberto Vieira Garcia

Doutor em Psicologia Social – Universidade de São Paulo (USP)

Professor da Universidade Federal de São Carlos - Campus Sorocaba, Brasil


> mgarcia@ufscar.br


Silvana Guerra Prudente Miranda

Sandra Carvalho Barbosa

Cléber Eduardo Vicente

Rodrigo Tadeu Pereira

Alessandra Mara Andrioli Antônio

Mônica de Oliveira

Beatriz de Deus Boa Sorte

Alunos de Graduação em Psicologia

Universidade Paulista (UNIP) - Campus Cidade Universitária, São Paulo, Brasil



Resumo: A partir de uma pesquisa qualitativa com membros de um clube para crossdressers residentes no estado de São Paulo, o presente artigo buscou investigar alguns elementos presentes na construção da identidade crossdresser no Brasil. Os resultados mostraram similaridades em relação ao modo de funcionamento e aos discursos existentes nos clubes estrangeiros, como a reprodução do mecanismo de construção de um eu feminino (princesa) entre elas, que passa a coexistir com o eu masculino (sapo) anterior, e a incessante troca de informações relativas ao processo de montagem. O estudo evidenciou o caráter suportivo do grupo, uma vez que este provia a possibilidade de convivência com outras pessoas com desejo de vestir roupas femininas, e também seu caráter normativo, tanto em relação ao que é considerado apropriado na construção da princesa, como naquilo que permitiria maior aceitação familiar e social ao crossdressing.

Palavras-chave: crossdressers; transgêneros; gênero; LGBT; travestismo


De sapos y princesas”: la construcción de una identidad trans en un club de crossdressers


Resumen: A partir de una pesquisa cualitativa con miembros de un club de crossdressers residentes en el estado de San Pablo, este artículo procura indagar algunos elementos presentes en la construcción de la identidad crossdresser en el Brasil. Los resultados mostraron similitudes relativas al modo de funcionamiento y a los discursos existentes en clubes extranjeros, tales como la reproducción del mecanismo de construcción de un yo femenino (princesa), que coexiste con un yo masculino (sapo) anterior, y el incesante intercambio de informaciones relativas al proceso de montaje. El estudio evidenció el carácter de apoyatura del grupo, toda vez que éste daba posibilidades de convivencia con otras personas que deseaban vestir ropas femeninas; y también su carácter normativo, tanto en relación a lo que se considera apropiado en la construcción de la princesa, cuanto en aquello que permitiría una mayor aceptación familiar y social del crossdressing.

Palabras clave: crossdressers; transgéneros; género; LGBT; travestismo


On frogs and princesses: the construction of trans identity in a cross-dressers’ club


Abstract: Drawing on a qualitative survey of members of a cross-dressers’ resident in the State of São Paulo, this article investigates certain elements present in the construction of cross-dresser identity in Brazil.  Social dynamics and discourses are similar to those found at cross-dresser’s clubs elsewhere in the world, such as the construction of a feminine self (the princess), which comes to coexist with the previous masculine self (the frog); and the permanent exchange of information concerning the process of transformation. The study provided evidence of the supportive nature of the group, affording the possibility of a shared environment with others wishing to wear women’s clothes, as well as its normative nature, both in terms of what is considered appropriate in the construction of the princess, as well as what would allow for greater family and social acceptance of cross-dressing.

Keywords: cross-dressers; transgender; gender; LGBT; travestism.


Introdução

O termo transgêneros tem sido utilizado na literatura e nos movimentos organizados LGBT como uma espécie de “guarda-chuva” para diferentes identidades em que a ambiguidade de gêneros tem lugar importante (Feinberg, 1992). A profusão de identidades “trans” é consequência das transformações pelas quais passam diversas sociedades contemporâneas, configurando um período denominado por alguns de pós-modernidade, no qual as identidades nacionais, étnicas e sexuais passam por um processo de fragmentação (Hall, 1992). Ao mesmo tempo, mostra a inadequação das categorias psiquiátricas pelas quais os(as) transgêneros foram classicamente descritos, na medida em que as construções identitárias excedem de forma visível os contornos traçados por tais categorias, como é o caso do travestismo e do transexualismo.1

Uma das identidades “trans” mais divulgadas mundialmente é a dos(as) “crossdressers”,2 que está enraizada em clubes de indivíduos que compartilham a experiência de se vestirem como alguém do sexo oposto ao de nascimento, sem a reivindicação do pertencimento a ele, sendo imensamente mais comum o crossdressing de-homem-para-mulher. Não estamos considerando aqui outras modalidades históricas de travestismo ou crossdressing, como aquelas existentes nos domínios das artes cênicas ou a experiência individual de prazer associada ao ato de se travestir, mas sim o desenvolvimento da identidade específica “trans” da qual trata o presente artigo.

A história do crossdressing como afirmação de uma identidade “trans” é bastante marcada pela figura de Virgínia Prince, recentemente falecida, editora da primeira revista específica para este segmento – Travestia, fundada em 1960 – e fundadora de vários grupos a partir da década de 60, entre eles a principal organização norte-americana para crossdressers, a Tri-Ess – Society for the Second Self – cujo nome baseia-se na ideia de que haveria um outro eu, do sexo oposto ao de nascimento e de certa forma aprisionado no indivíduo, que poderia ser “libertado” por meio do pertencimento ao clube. A maior parte dos crossdressers ao redor do mundo se identifica com a perspectiva de serem homens com um “lado feminino”, como mostram Bullough, Bullough & Smith (1983).

No presente artigo, optamos pela utilização da forma feminina (a crossdresser), em relação à utilização da flexão de gênero gramatical, como forma de facilitar a leitura. Se seguíssemos a tendência atual nos estudos sobre transgêneros de utilização da flexão usada pelos próprios grupos pesquisados como referência, a utilização mais apropriada seria a da flexão masculina quando os indivíduos estivessem incorporando o eu masculino, e da feminina quando incorporassem o eu feminino. Porém, uma primeira versão do presente artigo feita segundo esta perspectiva tornou a leitura especialmente confusa, o que nos fez contrariar tal tendência. Denominaremos – também por motivos operacionais e seguindo a tendência de nomenclatura na literatura científica e na produzida pelo movimento crossdresser – de orientação heterossexual o interesse afetivo/sexual de crossdressers exclusivo por mulheres, ainda que estejam no momento vivenciando seu eu feminino, e de orientações homo e bissexual ao interesse exclusivo por homens e por homens e mulheres, respectivamente.3

Entre os temas debatidos na literatura científica e no movimento crossdresser está o das motivações para o desejo e o comportamento de se travestir. Muitas crossdressers localizam-se na categoria “travestismo” existente no quadro médico-psiquiátrico. A exemplo do que ocorreu com transexuais em vários locais do mundo, como mostram as análises de Shapiro (1991), Stone (1991), Lewins (1995) e Gordo-Lopez (1996), o referencial médico-psiquiátrico parece ter servido como um importante prescritor para os contornos da identidade crossdresser. Mais recentemente, contudo, houve penetração neste segmento dos estudos antropológicos utilizados por comunidades trans como veículo para a constituição identitária e sua desestabilização, como mostra Bolin (1996), a partir da recusa às categorias médico-psiquiátricas (Plummer, 1996).

Outro ponto de debate dentro do movimento é o da orientação sexual das crossdressers. Prince considerava o crossdressing como uma atividade heterossexual, percebendo aquelas com práticas homossexuais como não-“verdadeiras” crossdressers (Bullough & Bullough, 1993).4 Mais recentemente, contudo, tem havido uma inflexão no movimento em relação à aceitação de crossdressers com práticas homo ou bissexuais. Enquanto a Tri-Ess continua a recusar crossdressers não-heterossexuais, baseando-se no argumento de que a presença de homo ou bissexuais incomodaria as esposas dos membros (Garber, 1992), a Beaumont Society, principal organização britânica, passou a aceitar a presença de pessoas que se identificavam como homossexuais a partir da década de 90.

As descrições da estrutura de funcionamento dos clubes para crossdressers em diferentes países mostram uma semelhança bastante acentuada. Como aponta Docter (1988), o clube australiano analisado por Burich (1976) difere pouco dos existentes nos Estados Unidos e na Inglaterra. Este último autor retrata um clube constituído por homens com idade variada (incluindo idosos), com ocupação também variada, mas em geral de alto nível de escolaridade.5 Os membros não precisam revelar seu nome ou identidade masculinas. O assunto que predomina nos encontros é o das estratégias para se incorporar o eu feminino, o que ocorre pelo uso de roupas, maquiagem e de gestuais, mas não pela mudança da voz. Trocam-se também dicas sobre lojas de produtos femininos, como roupas e maquiagens.

No clube há espaços para a montagem, o que é feito com grande prazer e demora pelas crossdressers, utilizando tecidos tidos como femininos (cetim, seda, nylon) nas roupas e nos adereços, usualmente caros. Há, contudo, recato em relação às vestimentas, evitando-se o uso de roupas escandalosas ou de conotação sexual (como lingeries, por exemplo). As regras de decoro incluem também a evitação do comportamento sedutor nas conversas entre si ou com as esposas e da formação de pares de dança entre duas crossdressers. Nas festas pode se ousar mais nas fantasias, imitar e dublar divas, mas mesmo nelas não se busca seduzir outras pessoas. Algumas esposas participam e há o incentivo à troca de experiências entre as esposas, com o objetivo de aumentar a aceitação do crossdressing do marido. Para atrair mulheres menos receptivas aos costumes dos maridos, organizam também festas sem crossdressing para os novatos.

O estudo de Woodhouse (1989) em um clube britânico mostra características semelhantes às descritas em relação à montagem do eu feminino, mas revela regras mais fluidas de pertencimento ao grupo, de decoro e comportamento sexual. No clube por ela analisado há membros que se identificam como transexuais (e que, portanto, passam a se assumir como mulheres em tempo integral), há aceitação maior em relação a formas de se vestir e de se comportar que seriam consideradas ridículas em outros contextos, há a aceitação da incorporação de um eu feminino que corresponda ao estereótipo da “puta” – que inclui roupas e gestuais mais ousados – e também há a presença de relacionamentos afetivo/sexuais entre algumas crossdressers que integram o clube, embora isto não ocorra de forma explícita.

Garber (1992) analisa algumas revistas e anúncios publicitários voltados para o segmento nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha e observa neles a presença constante de alguns elementos. Um destes refere-se à divulgação de redes específicas de lojas, produtos e estratégias para este segmento, uma vez que aquelas tradicionalmente voltadas ao público feminino não acolhem algumas demandas das crossdressers, como a de produtos com numeração diferenciada (caso, por exemplo, de sapatos) e as destinadas a “esconder” as características físicas tipicamente masculinas. Outra é a de exposição de regras de bom-senso em relação ao que é adequado ou não ao grupo quanto a roupas e ao estilo de montagem, como pode se perceber nos constantes avisos para se vestirem de acordo com a idade, para escapar do ridículo. A autora nota nas revistas a construção feita por elas de modelos femininos típicos de segmentos de renda alta, como no caso da incorporação das “ladys” pelas crossdressers britânicas. Observa que as revistas podem ser ao mesmo tempo um lugar de subversão e de contenção das normas associadas ao gênero.


Pesquisa

Este artigo, ao refletir sobre os elementos presentes na construção da identidade entre crossdressers brasileiras, não busca enfocar em profundidade a questão do surgimento e do desenvolvimento do desejo de vestir roupas femininas e incorporar um eu feminino, embora tal questão seja abordada em alguns momentos na medida em que influencie a constituição identitária destes indivíduos.

O Clube pesquisado6 foi organizado primeiramente como um clube virtual, por meio da utilização da Internet como instrumento para o encontro das crossdressers associadas. A organização deste clube virtual permitiu que tais pessoas passassem a se relacionar mais proximamente e começassem a se encontrar, organizando eventos nos quais pudessem estar juntas em crossdressing. A partir desse momento, as associadas ao clube passaram a ser divididas entre associadas reais e virtuais. De acordo com o regimento interno atual do clube, esta divisão se dá de seguinte forma:

ASSOCIADA REAL é aquela conhecida PESSOALMENTE por uma ou mais associadas do [nome do Clube] e tenha sido vista MONTADA, ou seja, devidamente produzida como uma mulher, quando do sexo masculino, ou como um homem, quando do sexo feminino.7 O contato pessoal exclusivamente com a indumentária do sexo genético não coloca a associada na categoria de REAL.

ASSOCIADAS VIRTUAIS são aquelas não conhecidas pessoalmente por pelo menos uma associada que esteja na condição de ASSOCIADA REAL.


As Associadas Reais contribuem anualmente com uma taxa de R$120,00 para despesas de manutenção do clube, sendo facultativa a contribuição das virtuais.

O clube em questão, embora tenha um caráter nacional, organizou-se mais fortemente em São Paulo, em virtude do fato de a grande parte dos membros residir neste município e adjacências. Se somarmos os residentes na Grande São Paulo e em cidades próximas, como nas regiões de Campinas, Santos, São José dos Campos e Sorocaba, este número corresponderia a mais de 40% das associadas, segundo dados fornecidos pelo clube pesquisado. Mais recentemente, alguns grupos regionais filiados ao clube foram criados nos municípios de Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba e Brasília com o intuito de facilitar o encontro das associadas. É significativo o intercâmbio entre crossdressers paulistas e cariocas, que são em número também expressivo, na realização de eventos conjuntos, como festas.

O fato de o nome do clube ser em inglês e haver a autoidentificação dessas pessoas como crossdressers em um momento em que esta identidade não era divulgada no Brasil sugerem uma inspiração em clubes similares existentes em outros locais do mundo, que foram analisados anteriormente. Podemos nos referir, neste sentido, a um “global crossdressing” de forma análoga ao “global queering” analisado por Altman (1997), para quem as comunidades homossexuais romperam barreiras nacionais em vários países e se moldaram a partir do contato com comunidades similares internacionais. A utilização de termos em outros idiomas também aponta neste sentido, como é o caso da sigla S/O, adotada internacionalmente para Significant Other, termo de origem sociológica mas usado no meio como referência à esposa ou à namorada que aceita o comportamento do companheiro,8 e de Holiday en Femme, evento usualmente realizado em local privado, como um hotel ou pousada, no qual os membros podem ficar um ou mais dias inteiros travestidos, e que é claramente inspirado nos eventos de mesmo formato e mesmo nome efetivados pela Tri-Ess norte-americana.

Tomando por base a autodeclaração de 277 das integrantes do clube em relação à forma como se identificam, em questionário com respostas fechadas aplicado no momento de sua inscrição, 259 delas (94%) identificaram-se como crossdressers, 12 (4%) como transexuais, duas como dragqueens, uma como travesti e três como simpatizantes.

A apresentação da página na Internet do clube faz referência a ele como um clube criado “por crossdressers e para crossdressers e transgeneristas9 em geral bem como seus amigos e simpatizantes”, o que mostra uma tentativa de dialogar com pessoas que se identificam com outras identidades “trans”. O mesmo podemos observar ali na reprodução de artigos de divulgação e científicos que também se reportam a estas.

Com relação à orientação sexual, um levantamento feito pelo clube em 2005, também a partir da declaração das associadas no momento de sua inscrição, apontou os seguintes dados: 240 (27%) declararam-se heterossexuais; 326 (27%) bissexuais; 56 (6%) homossexuais; e 265 (30%) não responderam à questão. Tais dados contrariam a literatura internacional, vista anteriormente, que aponta a maioria das crossdressers como heterossexuais. É importante ressaltar, contudo, que a mesma bibliografia apresenta uma curva descendente da porcentagem de crossdressers que se identificam como heterossexuais no mundo, sugerindo uma mudança neste sentido também em outros países.

A pesquisa de campo desenrolou-se durante todo o ano de 200710 e foi iniciada com o contato através da homepage do clube na Internet. Houve uma desconfiança inicial das integrantes em relação à pesquisa proposta, o que dificultou a princípio a realização do trabalho de campo De grande ajuda nesse momento foi a intervenção de Eliana Kogut, pesquisadora que já havia realizado um estudo com esta população11 e que apresentou os pesquisadores à diretoria do Clube. A partir de então, o contato foi facilitado e foram realizadas entrevistas iniciais com membros da diretoria do Clube, que indicaram outros membros que aceitaram ser entrevistados.

Foram feitas sete entrevistas abertas com crossdressers. As entrevistadas eram residentes na cidade de São Paulo, com exceção de uma, residente em uma cidade do interior do estado. Todas foram realizadas com elas montadas ou em meio ao processo de montagem. Foram efetivadas também três entrevistas com companheiras (S/Os) das crossdressers entrevistadas.12 As entrevistas foram gravadas e se deram com consentimento livre e esclarecido.13 A duração foi variável: entre 30 minutos e 3 horas, cada uma delas.

Segue uma breve descrição das entrevistadas (nomes fictícios):

Adriana. Está na faixa dos 30 anos.14 É empresária, com ocupação e estilo de vida que mostram alta renda. Usava roupas femininas de forma intermitente na infância e isto se intensificou a partir da adolescência, quando começou a guardar roupas e adereços femininos para usar escondida. Na adolescência, passou a tomar hormônios femininos, mas foi proibida pelo pai, tendo recomeçado e parado, já na vida adulta, com esta prática. Teve alguns namoros com mulheres que aceitavam seu crossdressing, embora algumas não aceitassem a hormonização. Atualmente está se hormonizando há um ano, com apoio da esposa, com quem está casada há poucos anos. Tem relacionamentos eventuais com homens. Mantém uma página na Internet sobre assuntos ligados ao crosdressing.

Beatriz. Está na faixa dos 40 anos. É empresária. Mora em uma cidade do interior do estado de São Paulo e recebeu os pesquisadores em sua residência, de padrão de alta renda. Refere desejo de se vestir com roupas femininas desde criança, prática que realizava escondido dos pais em sua casa. Teve alguns relacionamentos longos com mulheres que aceitavam a prática do crossdressing, inclusive sua companheira atual, que a apoia de maneira total. Recentemente tem praticado o crossdressing em público, inclusive na cidade de médio porte onde reside, enfrentando o preconceito. Tem filhos adultos jovens.

Cíntia. Está na faixa dos 50 anos. Trabalha no ramo de finanças. Diz ter se vestido como mulher em tempo integral dos 9 aos 17 anos, quando passou a se vestir com roupas masculinas por exigência da escola. Tem filhos e está casada há alguns anos com companheira que aceita seu crossdressing. Ocupa um cargo de destaque no Clube e tem presença constante nas páginas do clube na Internet, na organização dos eventos e na participação em programas televisivos em que o crossdressing é abordado. Mantém contato com militantes “'trans” brasileiras.

Débora. Está na faixa dos 60 anos. Trabalha no ramo cartorial. Tem filhos jovens. Explica ter começado a usar roupas femininas com cerca de 10 anos, mas sempre escondido, a princípio dos pais e depois da esposa e dos filhos, que sabiam sobre seu crossdressing, mas não aceitavam plenamente. Após a entrada no clube passou a se montar com mais frequência e realizou depilação definitiva de várias partes do corpo. Sua namorada atual aceita o crossdressing e participou também como informante na pesquisa. Tem atuação ativa na organização dos eventos do clube.

Elaine. Está na faixa dos 40 anos. Relata que se identificava em alguns momentos com meninas desde a infância (8 anos), embora não se vestisse com roupas femininas. Passou a usar roupas femininas na adolescência, escondida. Demonstra ter tido amplo contato com a literatura médico-psiquiátrica sobre travestismo e transexualismo e a utiliza como referência na descrição de si e das outras crossdressers. Tem companheira há muitos anos que aceita o crossdressing, mas não participa das reuniões.

Fátima. Está na faixa dos 30 anos. É executiva de uma empresa multinacional. Diz vestir-se com roupas femininas desde a adolescência, mas monta-se em ambientes interpessoais há dois anos. Explica seguir um estilo de mulher “patricinha e elegante” quando se monta. Sua família desconhece o crossdressing. Tem namorada há alguns meses que aceita a prática e participou como informante da pesquisa.

Giulia. Está na faixa dos 30 anos. Trabalha no ramo musical e na confecção de roupas específicas para crossdressers, que vende inclusive para o exterior. Relata ter iniciado o crossdressing no final da adolescência, tendo construído uma persona feminina para poder seguir clandestinamente uma namorada por quem era apaixonada. Nessa ocasião, aproximou-se de uma travesti que a auxiliou com dicas a respeito da montagem. Recentemente passou a se socializar no meio crossdresser, a partir do contato com o Clube. A namorada atual aceita a prática e foi informante da pesquisa.

Também foi utilizado o recurso da observação participante, com registro em diário de campo de várias situações de interação entre crossdressers. Em algumas dessas ocasiões também estavam presentes esposas e, em menor número, filhos. Em todos esses momentos os pesquisadores explicaram seu status e o projeto de pesquisa. Foram feitas observações do cotidiano de encontros das crossdressers, especialmente em um apartamento alugado por algumas delas na região central de São Paulo, situado em rua com alta concentração de vida noturna LGBT. Ali guardam roupas e cosméticos, montam-se e saem para se encontrarem em algum outro local, usualmente algum espaço de lazer (bar ou restaurante). A preferência por espaços LGBT se dá em função do presumido menor preconceito neles existente em relação ao crossdressing.

Os pesquisadores participaram como convidados também de dois eventos especiais patrocinados pelo Clube, um deles realizado à noite em um hotel de São Paulo e outro, em uma pousada no interior do estado durante um fim de semana inteiro. Em várias situações pudemos interagir com muitas delas – inclusive com algumas das entrevistadas descritas anteriormente – em sua persona masculina.

Os resultados da pesquisa foram divulgados às participantes e ao clube que a apoiou. Duas delas (Cíntia e Débora) participaram de um evento interno de divulgação dos resultados na instituição que a sediou (UNIP - campus Cidade Universitária) em suas personas femininas, ocasião em que conversaram longamente com dezenas de alunos.15


Definindo uma identidade

Ainda que de diferentes maneiras, a maior parte das entrevistadas reproduziu a ideia presente na literatura científica e na do movimento, predominantemente estrangeiras, da criação de um eu feminino entre as crossdressers coexistindo com o eu masculino já desenvolvido anteriormente como o principal elemento definidor de sua identidade.16 Ao eu masculino nomeiam sapo e, ao feminino, princesa, em uma alusão lúdica à conhecida história infantil em que um sapo se transforma em príncipe. É comum, neste sentido, a referência das crossdressers ao eu oposto ao que está “incorporado” em um dado momento através da utilização de pronomes e verbos na terceira pessoa.

O crossdresser propriamente dito não abre mão do sapo, sabe? Quer dizer, estamos aqui agora, estamos nos divertindo, vamos daqui a pouco pra Boate, amanhã vamos fazer zueira lá não sei onde. Mas segunda-feira, todo mundo trabalhando [...] A Débora é um crossdresser ao pé da letra, eu sou um crossdresser, nós somos homens. No dia-a-dia somos homens, trabalhamos, e a gente se monta como mulher. (Cíntia)


Quando estou de sapo, eu sou homem; quando manifesto a Elaine, eu sou mulher. Eu não consigo reprimir o sapo – nem tentei. Tentei quase a vida toda reprimir a Elaine, sem sucesso, mesmo após anos de equivocada psicanálise. E, portanto, não existe mistura. (Elaine)


Esta separação de eus ficou nítida nos casos em que a mesma crossdresser foi abordada enquanto sapo ou enquanto princesa. Em alguns casos, a mudança de um para outro é quase instantânea, como pudemos notar em um contato telefônico, no qual, ao ser inquirido a respeito da princesa (eu feminino), o sapo (eu masculino) respondeu masculamente à ligação, dizendo que iria chamá-la, voltando depois de alguns instantes já assumindo a princesa de forma tipicamente feminina. As S/Os (companheiras de crossdressers) também assumem esta divisão:

Ele é uma pessoa maravilhosa tanto como sapo quanto Débora, pra mim não muda nada” (namorada de Débora).

A frequente separação dos eus masculino e feminino como absolutamente distintos mostra a manutenção da dicotomia de gêneros presente em nossa sociedade. Como coloca Woodhouse (1989) em sua análise de crossdressers britânicas, com a separação dos universos masculino e feminino, um homem só pode fazer algo considerado feminino se assumir um eu também feminino. Na medida em que constroem estes eus como dissociados entre si, contribuem para a ideia da existência de uma masculinidade oposta à feminilidade.

A construção do eu feminino entre elas não segue, porém, um padrão único, ainda que alguns procedimentos, como depilação e maquiagem sejam comuns. Embora predomine o “estilo” de mulheres mais recatadas, algumas enfatizam o prazer de usar roupas associadas a um estilo de mulher sensual:

Nara Leão [respondendo sobre o modelo de mulher que a inspira na montagem]; naquele tempo do Chacrinha, pode pegar a foto dela, é igualzinho. Eu adorava ela. Tanto é que eu tinha o cabelo assim quando era pequena e eu briguei pra ter uma peruca assim também. Eu me espelho na Nara Leão, eu acho muito bonita. (Cíntia)


Descobri que tinha um tesão danado por mulher de espartilho, e um dia descobri que dava mais tesão usar a lingerie, e fui descobrindo que tinha muito tesão pela roupa feminina em si; nessa época eu fui morar sozinho, passei então a comprar calcinha, camisola, depois uma saia, um vestido, e então apareceu a internet e descobri que esse fetichismo não era uma coisa tão exclusivamente minha, então, fui conhecendo pessoas iguais a mim, até que há dois anos atrás eu saí pela primeira vez montado. (Fátima)


Algumas das entrevistadas revelaram contato com as definições médico-psiquiátricas sobre o travestismo que influenciaram na construção de sua visão sobre o crossdressing. Em sintonia com estas definições, algumas o classificaram como um distúrbio, ainda que por vezes de forma ambivalente:

Não é uma doença que dá pra tratar, não é um problema que dá pra curar, é uma coisa que você é. Não tem jeito. É como ser homossexual, gosta de homem e não tem jeito, vai continuar sendo. [...] Temos essa autoimagem, esse distúrbio de identidade de gênero, como a gente gostar de se olhar no espelho de mulher. (Adriana)


É um desvio de personalidade, claro, é inadequado, né? Mas eu não vejo maldade nisso, pelo contrário, eu acho que ser crossdresser só melhora a vida do indivíduo, então, eu nunca procurei ajuda, eu nunca quis mexer com isso, eu nunca quis mudar, eu nunca quis deixar isso, pelo contrário, à medida que eu vou vivendo, eu tenho encontrado muitas facilidades na vida por ser crossdresser, certo? (Beatriz)

Somente na idade adulta eu descobri que eu não era uma aberração, que sou apenas um entre milhões de homens com a mesma disforia de gênero. Sim, milhões! (Elaine)


É interessante observarmos aqui o quanto o referencial médico-psiquiátrico acaba por contribuir para a própria configuração de algumas identidades transgenéricas e, ao fazê-lo, as constroem através do prisma da anomalia e do desvio, contribuindo ainda mais para a sua estigmatização. Alguns estudos sobre a inserção dos discursos médicos por parte de transexuais – com a consequente incorporação da estigmatização neles embutida – como os realizados por Shapiro (1991), Stone (1991) e Gordo-Lopez (1996), mostram este fenômeno acontecendo de forma intensa naquele segmento. Processo semelhante parece ocorrer entre as crossdressers pesquisadas, ainda que em grau menos intenso, já que as referências a si mesmas a partir do referencial citado não são onipresentes em seu discurso.


Problematizando uma identidade

A separação entre os eus masculino e feminino presente nos discursos das crossdressers não é feita, contudo, pelos mesmos critérios, estando por isto sujeita a inúmeros abalos. Alguns que puderam ser observados claramente dizem respeito à aceitação do comportamento homossexual e ao uso dos procedimentos de depilação e de hormonização.

Em relação à aceitação de práticas homossexuais por parte de crossdressers, observamos diferenças significativas. O critério de heterossexualidade como algo que as definiria, ainda defendido em algumas organizações para crossdressers em outros países, como a Tri-Ess norte-americana, encontrou eco entre algumas entrevistadas:

Gosto de me sentir mulher, eu gosto de me vestir como mulher, é... Mas tô absolutamente satisfeito com minhas características masculinas mesmo, eu me relaciono só com mulheres [...]. Eu tenho um monte de amigas que se dizem crossdresser e não são, se arrumam, se montam, às vezes de uma forma até um tanto vulgar, mas com o intuito de atrair os homens. (Beatriz)


Outras admitem relacionar-se sexualmente com os homens, mas buscam diferenciar o que seria um comportamento homossexual devido a um desejo homossexual daquele vinculado a um desejo de ser desejada enquanto mulher. Somente o segundo caso é que seria “aceitável’ para uma crossdresser:

Esse ano eu transei uma vez com homem, então assim dá vontade, eu entro na Internet, chamo o cara, marco com ele em algum lugar e tal... Mas é como eu falei, o homem é um meio pra eu me sentir mais feminina, mais desejada. (Elaine)


Algumas, finalmente, descolam completamente o crossdressing de uma presumida heterossexualidade, o que, como vimos, é uma tendência crescente na literatura produzida pelo próprio movimento no exterior:

Tem CD que gosta do mesmo sexo, tem CD que gosta dos dois, tem CD que é hétero, tem de tudo, eu acho que o fato de ser CD não implica em ser hétero ou ser homo. (Fátima)


Se o uso de roupas femininas é obrigatório entre elas como regra para o reconhecimento de alguém como crossdresser, como vimos nas regras de funcionamento do clube, a utilização de procedimentos depilatórios é bastante variável. Embora as entrevistadas mantivessem o rosto impecavelmente barbeado, não havendo sinais perceptíveis de barba, principalmente sob a maquiagem – algumas haviam realizado inclusive depilação definitiva – outras que estavam presentes no evento mantinham o rosto com barba (ou com barba “malfeita”), mesmo enquanto princesas, o que era motivo de questionamento por parte das demais:

Um dia a gente estava indo pra uma festa, e tinha uma lá que ia barbuda... mandei ela fazer a barba na hora... Por quê? Porque não é nem pra gente, é pra ela, não ia se sentir bem, legal... não é nem pra nós, é pra ela mesmo. E isso a gente cuida, acontece muito isso entre a gente. (Cíntia)


Para manter a possibilidade de incorporação do eu masculino e de utilização dos procedimentos depilatórios, algumas delas ressignificam a masculinidade como algo compatível com a não-existência de pelos ou com a maquiagem, incorporando o estilo de homem “metrossexual” divulgado pela mídia:

Eu vou estar de rabo de cavalo, você vai ver minha sobrancelha que está sempre cuidada, vai ver minha unha – hoje tá um lixo – sempre feita. Então, tem algumas coisinhas, sabe? que vão dizer pra você “olha eu sou uma crossdresser”. Alguns podem confundir com um metrossexual. (Beatriz)


Eu não sei por que o homem não pode pôr uma sombra, por exemplo, porque fica colorido; eu não sei por que o homem tem que ser que nem o ator da Globo, aquele lá, o Tony Ramos. Quer dizer, por quê? Aquilo não é másculo, aquilo é um macaco. Antes de tudo é higiênico. (Cíntia)


O recurso à hormonização para a construção de uma aparência mais feminina, contudo, é objeto de questionamentos mais severos. No caso do grupo, um dos membros (Adriana) estava passando por um processo de hormonização contínuo nos últimos dois anos, além de ter se hormonizado anteriormente em períodos curtos de sua vida. Isto levantava discussões a respeito da legitimidade de ela se considerar uma crossdresser:

Eu acho que quem parte para a hormonização deixa de ser crossdresser. (Beatriz)


Como a gente tava falando agora há pouco, o caso da Adriana, ela já não é uma CD, porque ela se hormoniza e tal, então, ela já é uma travesti, porque ela se hormoniza [...] Mas nós não temos hormônio, é tudo falso. (Cíntia)


Hormonização é complicado; os efeitos adversos são muitos, além de prejudicar a vida social do sapo. Bem que eu gostaria de ter um corpo feminino, mas não pretendo seguir este caminho. [...] É raríssimo você ver algum no grupo que fale assim: cortei [referência à cirurgia de transgenitalização], me hormonizei ou coisa parecida, tá? O crossdresser propriamente dito não abre mão do sapo. (Elaine)


Adriana, por outro lado, respondia às críticas à sua posição identitária apontando nas colegas a existência do desejo de se hormonizarem, o que não ocorria por uma suposta falta de coragem ou em função da possibilidade de prescindirem de sua vida como sapo. O critério utilizado por ela para continuar a se identificar como crossdresser era sua presumida heterossexualidade:

Dentro do [nome do clube] percebo muita gente que queria tomar hormônio, que queria mas não pode por causa da vida, por causa da família, do trabalho, uma série de coisas. Quanto mais a pessoa se produz, quanto mais ela vai aprendendo a se produzir, vai aprendendo a agir, falar, se comportar como mulher, mais elas vão ficar satisfeitas. (Adriana)


Eu gosto do jeito que eu sou, como eu falei pra vocês, eu não gosto de homem, eu gosto de mulher [...] Então, assim, eu não tomo hormônio por causa de homem, eu não me visto por causa de homem. É pra mim. Eu faço isso pra mim, eu gosto de me olhar no espelho e estar legal. (Adriana)

Diferenciando uma identidade

Na construção da identidade crossdresser, um dos elementos que surgem frequentemente entre as entrevistadas é a necessidade de diferenciá-la de outras identidades trans. Isto ocorre especialmente em relação à identidade travesti, certamente a mais conhecida e divulgada dentre elas em nosso país. A discriminação realizada pelas pesquisadas entre crossdressers e travestis é altamente estigmatizante quanto às últimas, que são tidas por elas como eminentemente violentas, praticando sempre o comércio sexual:

Não sei se é essencial, mas é conveniente lembrar: a expressão "crossdresser", que eu detesto mas uso por não encontrar outra que a substitua, foi criada para nos distinguir dos travestis que fazem programas. Na prática, somos todos travestis. A diferença é que aquelas vivem fulltime como mulheres, e vivem de fazer sexo. São homossexuais, mas não transexuais. Não rejeitam seus genitais. Ao contrário, precisam que estejam funcionando perfeitamente. Ao passo que a maioria de nós vive vida dupla, uma delas secreta. Tem vida social como sapo irrepreensível. (Elaine)


Já os travestis, por exemplo, chegam a dar briga, né? Principalmente se você encarar o travesti, e o travesti propriamente dito é aquele que vai pra rua, que faz programa, né? Quer dizer, dá briga, porque se eu for trabalhar na Indianópolis, lá onde tem ponto de travesti, eu vou caçar briga lá, por quê? Porque ali tem quem toma conta, tem que achar quem é a chefe etc. e tal. Nós já não temos isso, sabe? A gente já procura ajudar um ao outro, por quê? Porque na realidade nós somos homens ao pé da letra, e, ninguém quer deixar de ser homem, tá? [...] Porque nós temos família, nós temos lar, nós temos emprego, nós temos tudo, que é diferente de um travesti, que mora em cima de um sapato que hoje tá aqui, amanhã tá ali, que hoje faz ponto aqui, que amanhã faz ponto ali. (Cíntia)


Em relação às drag-queens, a diferenciação é feita a partir da atribuição do exagero e da caricatura destas:

É diferente, por exemplo, de uma Drag, que a Drag já vai pra fazer festa, pra ir pra um palco pra fazer um teatro, já é uma coisa caricata, já é bem diferente da gente. Nós já não, nós já caminhamos para um rumo diferente. (Cíntia)


A constante identificação das crossdressers como travestis por parte de terceiros é um elemento tido por elas como problemático, pelo fato de herdarem o estigma associado às últimas, o que leva, por exemplo, à recusa em relação à locação de espaços para festas e a frequência a bares:

Eu brinco muito porque eu falo que é uma equação: crossdresser igual travesti igual putaria. Acabou. Não se discute. Essas festas que vocês viram aí, se vocês quiserem entrevistar eles, eu levo vocês lá pra falar com umas dez. O pessoal se assusta barbaridade, porque no primeiro momento que você chega lá e contrata uma pessoa do hotel e você fala que vai fazer uma festa de crossdresser, que é uma festa de homem que se veste de mulher, mas é normal, não tem putaria, não tem nada etc. e tal, mas fica todo mundo olhando com aquele “pô, será qual é, o quê? Não sei, deixa vir?”. (Cíntia)


Ao mesmo tempo, as entrevistadas dizem que esta identificação as protege, dado o receio que muitos teriam em relação a uma suposta violência por parte das travestis, o que segundo algumas delas evita que sejam objeto de chacota por parte de transeuntes, especialmente quando saem nos espaços públicos como princesas.

As fronteiras entre as diferentes identidades “trans” para algumas entrevistadas aparecem, porém, de forma menos nítida, o que podemos inferir a partir dos dados, já apresentados, que mostram a presença de membros que se identificam de outras formas (como transexuais, drag-queens ou travestis) no clube para crossdressers pesquisado.

Tem travas no [nome do clube], tem travesti até profissional no [nome do clube], mas falam que é pura sacanagem, não é por necessidade [...] Inclusive é difícil você determinar o que é CD e o que é travesti, o que é transexual, porque tem gente que se acha homossexual e não é, tem gente que acha que é CD e na verdade não é. (Adriana)


Ensinando uma identidade

Como vimos anteriormente, o desejo de vestir roupas femininas apareceu já na infância para a maioria das entrevistadas e foi sempre vivido sob uma atmosfera de culpa. A possibilidade do encontro com outras pessoas com desejos parecidos aparece de forma bastante prazerosa para elas, na medida em que proporciona não somente a saída do isolamento e a troca de experiências, como a afirmação de seu desejo, sem a necessária presença da culpa correspondente. Em seus estudos sobre sociologia de grupos desviantes, Becker (2005) aponta o sentimento de um destino comum, de se estar “no mesmo barco”, como algo comum a esses grupos, elemento que pudemos observar também nos discursos das entrevistadas:

Comprei lingerie pra mim, deixava escondido numa mala com cadeado, mas só quando eu ficava sozinho em casa que eu me montava, me olhava no espelho, aquele negócio todo. Aí, através do [nome do clube], que foi quando eu me montei mesmo, aí fui comprar peruca, roupa, vestido tal. (Débora)

Então conheci o [nome do clube] e encontrei amigos, porque nesse período eu havia me afastado de todos os meus antigos amigos, eu me isolei da sociedade, vivia para o trabalho. (Giulia)


Eu fui em dois só [eventos], no ano passado e neste ano. Quando eu fui no ano passado, eu disse: nunca mais eu falto. É coisa mais fantástica mundo, são três dias que todo mundo deixa a mala fora e lá dentro são outras, culturalmente, financeiramente; em todos os aspectos todo mundo se iguala. Então, para mim, a meu ver, ali acho que não faltou nada. Sabe, é muito gostoso ficar numa rodinha conversando sobre tudo sem ter que ficar se policiando, se controlando. É uma reunião de mulheres. (Beatriz)


Aliás, quando vocês foram [ao evento realizado em um final de semana inteiro], qual é a grande merda que acontece? Acabou! Domingo bateu o almoço, a gente brinca que chegou a síndrome da acetona, que é quando todo mundo começa a tirar o esmalte das unhas, e porque, sei lá, imagino que é mais ou menos igual quando você quer muito uma coisa e depois acaba. Daí você pensa: sabe lá quando que vai ter de novo? Então, a gente conta segunda, terça, quarta, quinta pra chegar logo a sexta e o final de semana pra gente poder se montar... não é muito sexo, sabe? Mas a alegria, o prazer... alegria de... acho que vocês mulheres quando se arrumam são para os outros verem, né? (Cíntia)


A rede de relações formada a partir do grupo permite também o crossdressing em locais de frequência variada, como ruas, avenidas, bares e restaurantes. Este é considerado um passo difícil de ser dado pelas entrevistas, por causa da intensa discriminação que pode ocorrer. A escolha dos locais “corretos” (isto é, menos arriscados) e a vivência desta experiência em grupo são facilitadas pela entrada no clube. O contato com “desviantes” mais experientes é também descrito por Becker (2005) como agente facilitador do comportamento desviante, na medida em que ajuda a combater o medo de possíveis represálias ao desvio:

Meu, a gente brinca com os policiais, a gente sai montado, dá tchauzinho, eles dão tchauzinho, brinca, eles brincam com a gente, é legal. A gente vai em barzinho, restaurante, fica lá; então tem lugar que a gente não vai, por não vão gostar, mas tem lugar que a gente vai, o pessoal aceita na boa. As meninas aqui em baixo do barzinho, somos amigos de todas elas. A dona tá sempre com a gente, bate papo, troca ideia; elas são sapatas, elas adoram a gente. (Adriana)


Aí você já começa a falar: “Quero ir pra rua”. E aí começam os problemas, né?... ir pra rua. Aí você não vê a hora de achar [algum crossdresser]... aí surge o grupo [nome do clube] que dá aquele apoio pras meninas irem pra rua. O primeiro dia que tu coloca o pé na rua, vou te falar uma coisa, viu?, é complicado, muito complicado! (Cíntia)


Os benefícios do pertencimento ao clube, para as entrevistadas, não se resumem, porém, à facilitação do crossdressing. A rede de relações estabelecidas pode ajudar em outros contextos, de forma direta – através de serviços e facilidades oferecidos pelo clube – ou indireta – como parcerias e ajudas no ambiente profissional:

Nós tentamos ajudar, estar perto, dar apoio. Temos psicólogos no [nome do clube]. As vezes problemas de família, doença... (Adriana)

Eu fui em uma audiência em São Paulo há uns dois anos atrás, e o promotor é uma crossdresser; ele olhou para mim e eu tenho certeza que o caso foi visto com outros olhos. Não que ele tenha facilitado ou algo assim, mas foi visto com outros olhos. Então, começa a se formar uma confraria. (Beatriz)


Quando um homem ele é CD, esse é o maior segredo da vida dele e, quando ele conhece uma outra CD, ele partilha esse segredo de uma forma como se fosse um pacto. Então, assim, eu tenho amigos de infância que não sabem que eu sou CD, mas a partir do momento que eu saio numa balada e encontro um CD, esse pacto de reserva é honrado. (Giulia)


Na sociologia do desvio proposta por Becker (2005), um dos elementos fundamentais a serem analisados é como o grupo social que sustenta o comportamento desviante acaba por moldar tal comportamento, na medida em que o ingresso do desviante no grupo ajuda no desenvolvimento de uma justificativa histórica, legal e psicológica para a atividade desviante, suprindo dúvidas e inseguranças daquele que a realiza. O clube de crossdressers pesquisado certamente tem este papel, o que sugere cumprir uma função de “escola de identidade” para crossdressers:

O site da [integrante do clube] e do próprio [nome do clube] são instrumentos para as pessoas aprenderem como se maquiar, como se comportar, como fazer a mão, como se montar, e é um instrumento para ajudar as pessoas que têm essa coisa e não conseguem pôr pra fora, têm medo, não sabem como e tal. Agora, toda vez conforme elas vão aprendendo, quanto mais elas se sentem mulher e se veem como uma figura de mulher, mais elas ficam felizes, satisfeitas. (Adriana)


O pessoal se produz pra ser top, ninguém quer ficar por baixo, ninguém quer ser ridicularizado. Então, aí você começa a busca pela perfeição. Que é como vocês mulheres fazem também. A diferença é que nós, principalmente o nosso grupo, uma ajuda a outra: olha... arruma isso aqui, isso não tá legal etc. Vocês mulheres não, se vocês verem uma mulher ridícula, deixam passar batido, porque ela é que é a ridícula. A mulher evolui... Ela sabe o que é melhor pra ela usar ou não... De acordo com a idade, né? Muda tudo. (Cíntia)


Como em toda escola, há uma pré-seleção dos membros a serem recrutados ou aceitos, ainda que na maior parte das vezes isto ocorra de forma implícita. Além das exigências identitárias descritas anteriormente, um elemento importante a ser apontado aqui é o do critério socioeconômico, recurso de seleção tácito para se pertencer ao clube, o que é também frequentemente observado, conforme já destacamos, nos clubes existentes em outros países.

Eu acho que poderia existir em todos os segmentos da sociedade, mas o clube, hoje, o alicerce é para pessoas de um determinado nível cultural sabe? Eu acho que o financeiro é em decorrência do cultural. (Beatriz)


Não sei se é bom vocês saberem, mas é o seguinte. É uma brincadeira muito cara, vocês olham pra mim, aqui tem mil reais [...]. Aqui em São Paulo o pessoal é top. Custa caro: 600 uma peruca, calcinha, sandália etc. E é interessante, porque é interessante o que é sonho. Paguei 3 mil num vestido, todo mundo perguntou pra que tudo isso? Não é o vestido, é a rua São Caetano, é a alegria de poder ir na loja e falar que quero um vestido pra mim e as mulheres tirarem minhas medidas e tal. É a alegria. (Cíntia)


Uma hipótese já desenvolvida por um de nós em outro momento (Garcia, 2009) – importante de ser aqui retomada – é a identidade “crossdresser” servir como um marcador de classe dentro das identidades “trans”. Enquanto as travestis brasileiras são predominantemente oriundas de segmentos de renda mais baixo, como apontam Kulick (1998) e Benedetti (2005), outras identidades “trans”, como é o caso das transexuais (Benedetti, 2005) e das drag-queens (Vencato, 2005), parecem atrair indivíduos de segmentos de renda médio e alto, realidade semelhante por nós observada entre crossdressers. É possível se pensar, neste sentido, que a diferenciação identitária realizada pelas crossdressers de si mesmas em relação às travestis se dê não somente em função de algo da esfera subjetiva – como os desejos existentes e os comportamentos considerados aceitáveis – mas também como uma tentativa de se manterem os espaços de classe bem definidos no universo “trans”. A forte correlação existente no Brasil entre classe (de maior renda) e cor da pele (mais clara) foi também observada por nós entre as crossdressers pesquisadas.

Outro aspecto fundamental que mostra o clube pesquisado como uma “escola identitária” foi o das regras – implícitas e explícitas – a respeito das formas adequadas de se comportar, principalmente em relação ao controle da sexualidade nos encontros. Na abertura da página do clube na Internet, um recado parece deixar isto claro: Este NÃO é um site de conteúdo erótico. Nas entrevistas, além das regras vinculadas especificamente ao ato de crossdressing, outras foram citadas, em especial aquelas ligadas ao controle do que pode ou não ocorrer nos encontros:

Porque eles descobrem que a gente é gente, que a gente não faz nada errado, que ninguém aqui cheira, fuma maconha, ninguém faz putaria no meio da rua [...] Porque a vida individual de cada um é de cada um. Agora, dentro da gente [do grupo], a gente não deixavim nada dessas coisas de droga, nada. (Cíntia)


O [nome do clube] não tem nada de festa, nem pode, inclusive aqui não pode rolar nada, tem um monte de regras, porque o [nome do clube] é uma confraternização de pessoas que têm uma coisa parecida. Então, não pode ter um local pra você procurar sexo, nem nada disso. A finalidade do [nome do clube] é um local pra gente se encontrar, sair junto, vai em balada juntos, faz festas, vai em encontro. (Adriana)


A preocupação com a criação de um ambiente “respeitável” foi observada de forma clara nos eventos por nós observados. Nestes, havia a evitação de demonstração explícita de afeto, fosse entre as crossdressers e suas esposas, fosse entre elas próprias. Tal controle, porém, era desafiado pela figura do “papa-CD”, objeto de comentário em inúmeras falas. Trata-se da crossdresser que, geralmente enquanto sapo, mantém relacionamento afetivo/sexual com outras crossdressers, usualmente enquanto princesas. Em diversos momentos foram feitas acusações, em tom quase sempre de brincadeira, a algumas delas que seriam “papa-CDs”.

O Miguel, que vem sempre aí, ele é um papa-CD desgraçado [...] Ele já tem quatro anos de [nome do clube], mas é assim, ele gosta de se vestir de mulher, mas no [evento realizado pelo clube], por exemplo, a gente ficou três dias e ele ficou 5 horas montado, o resto ele ficou de homem. (Adriana)


Conclusão

As características do clube pesquisado mostraram-se semelhantes às descritas na literatura acerca do modo de funcionamento dos clubes para crossdressers em outros países. Entre as principais semelhanças, encontram-se a construção de um eu feminino por parte dos membros, escolaridade e renda elevadas e a constante troca de informações apropriadas ao processo de montagem, o que envolve “dicas” sobre o uso de roupas, adereços, maquiagem e depilação necessários à construção do eu feminino. Esta semelhança e o fato de utilizarem termos em outros idiomas, comuns na literatura produzida pelo movimento crossdresser internacional, indicam que se trata de uma identidade “importada” de outros países, ainda que no caso do clube pesquisado possamos detectar certas particularidades. Outra influência observada sobre a construção de sua identidade foi a da literatura médico-psiquiátrica, especialmente aquela voltada à definição do travestismo enquanto distúrbio, assimilada por parte das entrevistadas juntamente com a estigmatização a ela inerente.

Se a entrada no clube significou para as crossdressers pesquisadas a saída do isolamento do ato de crossdressing vivido privadamente sob uma atmosfera de culpa, ao mesmo tempo o clube tem uma função normativa em relação à construção dos modos viáveis e aceitáveis de se ser crossdresser, o que nos levou a considerá-lo uma “escola de identidades”. Algumas das regras implícitas e explícitas deste “ensino” foram, porém, objeto de questionamento por parte dos integrantes do clube. Uma delas refere-se à necessidade de a crossdresser conseguir ficar dentro do limite entre o que se considera necessário para a construção da princesa – ou seja, que esteja construída de forma apropriada – e o que se considera possível para não se ter a vida enquanto sapo prejudicada. Em relação ao primeiro limiar, são incentivados procedimentos como depilação adequada e uso de roupas tidas como compatíveis com a idade, para não se construir uma princesa que possa ser vista ridícula. Em relação ao segundo, é questionada a hormonização realizada por alguns membros do clube, pelo fato de as modificações corpóreas que acompanham seu uso serem visíveis quando estiverem incorporando o sapo.

A aceitação do relacionamento afetivo/sexual das crossdressers com homens também é objeto de questionamento por parte de algumas, que tomam este comportamento como inaceitável – na linha da Tri-Ess, maior organização de crossdressers norte-americana – enquanto outras aceitam este relacionamento plena ou parcialmente (neste último caso, desde que movidas por um desejo de se sentirem desejadas enquanto mulheres, e não por um desejo homossexual propriamente dito).

As regras de convivência destacadas pelo clube mostraram também a busca pela criação de um ambiente ”respeitável” que pudesse facilitar tanto a presença das companheiras e dos filhos das crossdressers nos eventos realizados, quanto o reconhecimento social devido a elas. A diferenciação por parte das crossdressers em relação às travestis, feita por meio de atribuição às últimas de características como violência e promiscuidade, parece acompanhar a procura pela construção de uma identidade trans “respeitável” que, no entanto, é desafiada por membros do clube que mantém relacionamentos afetivo/sexuais uns com os outros, o que mostra que estão abertas as portas para a reinvenção da identidade crossdresser e para a aceitação de múltiplas subjetividades nela.

Recebido: 11/agosto/2009

Aceito para publicação: 15/janeiro/2010

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1 As definições destes termos nos manuais médicos e psiquiátricos contemporâneos, como o da Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças e de Problemas Relacionados à Saúde (CID 10) e o Manual de Diagnóstico e Estatística de Doenças Mentais, produzido pela American Psychiatric Association, revelam de forma clara a compreensão essencialista da sexualidade e a estigmatização desses indivíduos. Entre os elementos presentes nestas definições, conforme análise feita por um de nós anteriormente (Garcia, 2007), estão: a atribuição de um lugar de anormalidade para eles (a partir de sua consideração como doentes ou portadores de distúrbios); a presença de um forte determinismo psíquico, em que o desejo aparece como um elemento primordial na definição de tais quadros e é entendido em uma perspectiva a-histórica, sem referência ao seu processo de construção social; a uniformização das condutas e a tipificação dos indivíduos, o que leva o(a) transexual e o(a) travestido(a) a serem entendidos(as) como tipos específicos de indivíduos, iguais entre si e diferentes dos demais, negando-se a possibilidade de comportamentos e constituições subjetivas diversas para além destas prescrições. Discussão mais aprofundada desta questão, em estudo com transexuais brasileiros(as), é feita por Bento (2006).

2 Utilizaremos aqui o termo “crossdressers” em lugar de transvestites ou travestidos por ser este o termo de autoidentificação para o grupo e por demarcar o entendimento desta experiência a partir de um rompimento com o referencial médico-psiquiátrico presente nos termos citados, como propõe Garber (1992).

3 Embora assumamos esta nomenclatura, a organização identitária das crossdresssers mostra os limites de utilização da categoria “orientação sexual”. Assim, por exemplo, se uma crossdresser em seu eu masculino se sente atraída afetiva e sexualmente por mulheres, e em seu eu feminino por homens, ela é considerada como bissexual, ainda que esteja em posições imaginárias heterossexuais. Da mesma forma, uma crossdresser em seu eu feminino que se sinta atraída por mulheres é considerada heterossexual, ainda que a fantasia envolvida na relação possa ser homo ou bissexual. Neste sentido, concordamos com Garber (1992), para quem as crossdressers acabam por questionar não somente o binarismo homem/mulher, mas também o hetero/homo.

4 A ideia de que as crossdresers seriam em sua maioria heteossexuais é defendida por Bullough, Bullough & Smith (1983), Peo (1988) e Docter & Fleming (1993), dentre outros.

5 O alto nível educacional é apontado como comum a crossdressers por Docter & Fleming (1993; 2001).

6 Será omitido o nome do clube para manter o anonimato.

7 Embora dois crossdressers de mulher para homem já tenham se associado ao Clube anteriormente, não havia no momento desta pesquisa nenhum associado nesta situação.

8 No Brasil, a sigla S/O é referida como “Supportive Other” ou “Supportive Opposite”, tendo o mesmo sentido, contudo.

9 A utilização do termo “transgeneristas”, mais comum em língua espanhola do que em português, nos mostra o quanto a categoria transgênero, embora tenha as vantagens de possibilitar o diálogo entre as identidades trans, não se encontra ainda enraizada na realidade brasileira.

10 A pesquisa realizada foi desenvolvida a partir de duas disciplinas do curso de graduação em Psicologia da Universidade Paulista (UNIP).

11 O estudo da autora (Kogut, 2006), apresentado como tese de doutorado em Psicologia Clínica na PUC-SP, foi o único que pudemos encontrar voltado especificamente para esta população no Brasil. Seu foco, direcionado a compreender as origens psicológicas do crossdressing, a partir de um referencial psicodinâmico, difere bastante, porém, da abordagem e dos objetivos da presente pesquisa.

12 Embora o intuito inicial fosse o de pesquisar também a relação das companheiras (S/Os) com as crossdressers, houve dificuldade maior na abordagem das primeiras. Aquelas que foram realizadas o foram na presença das crossdressers com quem mantinham relacionamento, o que prejudicou o levantamento de alguns temas. Por isso, não será feita aqui uma análise específica dos dados destas entrevistas. Eles servirão, contudo, para complementar algumas análises propostas a respeito das entrevistadas.

13 Os Termos de Consentimento encontram-se com o pesquisador responsável pela pesquisa (Marcos Garcia). Uma intercorrência frequente na negociação do consentimento informado foi em relação ao nome com o qual se identificaram. Algumas delas, especialmente aquelas que não conhecemos em sua persona masculina, assinaram o termo com seu nome feminino. Após negociação, o Comitê de Ética para o qual o projeto foi encaminhado (CEPPE / UNIP) aceitou o argumento de que o consentimento com o nome feminino implica respeito à escolha de gênero das entrevistadas.

14 O conjunto de dados citados poderia facilitar a identificação da entrevistada. Por este motivo, será relatada a faixa etária, a presença de filhos e o ramo profissional, mas não a idade exata, o número deles e a ocupação específica, por exemplo.

15 Algumas participantes associaram sua participação na pesquisa e seu auxílio no contato com outras pesquisadas com o intuito de contribuir para diminuir o preconceito relacionado ao crossdressing. É possível também que este movimento corresponda ao desejo de sair do isolamento das reuniões voltadas apenas para crossdressers e seus familiares.

16 É importante retomar a questão de que a maior parte destes estudos foi realizada segundo um paradigma médico-psiquiátrico que vê tal característica como algo interno aos indivíduos, e não como algo que se constrói a partir de uma relação com um grupo social, o que está implícito no conceito de identidade.