Sexualidad, Salud y Sociedad

REVISTA LATINOAMERICANA

ISSN 1984-6487 / n.1 - 2009 - pp.89-103/ www.sexualidadsaludysociedad.org



Corpo, violência e saúde: a produção da vítima



Cynthia A. Sarti.

Doutora em Antropologia,

Professora Titular na Universidade Federal de São Paulo

Campus Guarulhos

> csarti@uol.com.br


Resumo: Com base em uma pesquisa sobre o atendimento à violência na área da saúde, desenvolvida em um hospital municipal de emergências na cidade de São Paulo, este texto pretende refletir sobre uma “produção da vítima” no atendimento a casos de violência, a partir de considerações sobre a própria construção social da violência como problema de saúde e suas implicações para o desenho de políticas de saúde. O tema da violência nesta área é atravessado pela epidemiologia, que privilegia a incidência do fenômeno. Pretende-se ressaltar que a incidência epidemiológica, que trouxe a violência ao campo da saúde, responde a uma lógica classificatória dos fenômenos do corpo, da saúde e da doença, recortada por uma concepção de gênero que, ao mesmo tempo em que permitiu visibilizar a violência, contribuiu para esconder manifestações que não fossem identificadas com sua lógica de classificação da violência. O reconhecimento de um ato como violento pressupõe atributos previamente identificados na vítima, e a organização do serviço de atendimento segue esta lógica. O artigo busca, então, discutir o que a “produção da vítima” pode dizer de formas contemporâneas de sociabilidade.

Palavras-chave: violência; relações de gênero; políticas de saúde; vítima; sociabilidade


Cuerpo, violencia y salud: la producción de la víctima

Resumen: Basado en una investigación sobre la atención de casos de violencia en el área de la salud, desarrollada en un hospital municipal de emergencias en la ciudad de San Pablo (Brasil), este texto pretende reflexionar acerca de una "producción de la víctima" en la atención de dichos casos de violencia, a partir de consideraciones sobre la propia construcción social de la violencia como problema de salud, y sus implicancias en el diseño de políticas de salud. En esa área, el tema de la violencia está atravesado por la epidemiología, que privilegia la incidencia del fenómeno. Se procura destacar que la incidencia epidemiológica, que trajera la violencia hacia el campo de la salud, responde a una lógica clasificatoria de los fenómenos del cuerpo, de la salud y de la enfermedad, recortada por una concepción de género que, a la vez que ha permitido visibilizar la violencia, ha contribuido a esconder manifestaciones que no son identificadas con su lógica de clasificación de la violencia. El reconocimiento de un acto como violento presupone atributos previamente identificados en la víctima, y la organización del servicio de atención sigue esta lógica. Este artículo busca, entonces, discutir lo que la "producción de la víctima" puede decirnos acerca de formas contemporáneas de sociabilidad.

Palabras clave: violencia; relaciones de género; políticas de salud; víctima; sociabilidad


Body, violence and health: the production of the victim

Summary: Based on a research about the health assistance to violence, developed in a public emergency hospital in the city of São Paulo, this text has the purpose of reflecting on a “production of the victim” in the assistance to cases of violence, considering the social construction of violence itself as a health problem and its implications for the design of health policies. The theme of violence, in this field, is crossed by epidemiology, privileging the incidence of the phenomenon. The text intends to highlight that the epidemiological incidence, which brought violence to the health field, responds to a classificatory logic of the phenomena of the body, health and illness, cut across by a gender conception that, at the same time that allowed giving visibility to violence, contributed to conceal manifestations of violence that were not identified with its logic of classification. Thus, the recognition of an act as violent supposes qualities previously identified in the victim and the organization of health assistance follows this logic. The article, then, searches to discuss what the “production of the victim” says about contemporary forms of sociability.

Keywords: violence; gender relations; health policy; victim; sociability



Corpo, violência e saúde: a produção da vítima 1


Com base em uma pesquisa sobre o atendimento à violência na área da saúde, desenvolvida em um hospital municipal de emergências na cidade de São Paulo, este artigo pretende refletir sobre uma “produção da vítima” no atendimento a casos de violência, a partir de considerações sobre a própria construção da violência como problema de saúde e suas implicações para o desenho de políticas sociais de saúde. Traz questões suscitadas, em particular, pelo acompanhamento de um caso durante o trabalho de campo e busca discutir o que a “produção da vítima” pode dizer de formas contemporâneas de sociabilidade.


A violência no campo da saúde

O tema da violência na área da saúde é atravessado pela visão epidemiológica, que privilegia a incidência do fenômeno. Estudos epidemiológicos demonstraram que, ao lado do maior controle médico das doenças infecto-contagiosas, o aumento das mortes e das lesões causadas por violência mudou o perfil da mortalidade e da morbidade nas últimas décadas no Brasil e no mundo. No país, as mortes provocadas por violência ou por acidentes (“causas externas”) ocupam o segundo lugar no perfil de mortalidade entre os brasileiros, sendo a primeira causa de óbitos nas faixas etárias de 5 a 49 anos (Brasil, 2005). Assim, a alta incidência de violência, em escala tanto nacional quanto mundial, e o problema de seu impacto na vida de pessoas e coletividades fizeram da questão da violência uma prioridade de saúde pública.2

Os dados epidemiológicos, entretanto, dimensionaram um fenômeno cuja visibilidade e consequente transformação em problema social no Brasil aconteceram no âmbito das lutas sociais por “direitos”, empreendidas, a partir dos anos 80, por movimentos sociais de cunho identitário, que nomearam a violência perpetrada contra mulheres, homossexuais e, mais recentemente, idosos, além das lutas pelos direitos da criança e do adolescente. Esses movimentos, ao se instituírem como locus de exercício de direitos civis e sociais, constituíram forças decisivas no sentido de moldar a forma como a violência se tornou visível e se introduziu no campo da saúde.

Pela forte presença do movimento feminista nesse cenário político, a perspectiva de gênero marcou significativamente a atenção à violência na área da saúde, que se delineou e se efetivou dentro do campo dos “direitos sexuais e reprodutivos”, como demonstra uma ampla produção bibliográfica (Schraiber & D’Oliveira, 1999; Suarez, Machado & Bandeira, 1999; Oliveira, 2000; Ávila, 2003). Desse panorama resultaram ações focalizadas de atendimento à violência na área da saúde, cuja estruturação e implantação responderam a demandas políticas de grupos específicos.3

O desenho recente da violência urbana, no qual aparecem como principais vítimas de homicídios os jovens do sexo masculino, trouxe novas questões para as formulações sobre gênero. Estudos chamam a atenção para a relevância de se considerarem, nas políticas sociais, as características das principais vítimas no Brasil de hoje: jovens pobres e negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos (Soares, 2004), enquanto pesquisas na área da saúde reafirmam a incidência de homicídios entre jovens do sexo masculino, reiterando os homens, estatisticamente, como as maiores vítimas da violência (Souza, 2005).

No âmbito das políticas públicas voltadas para a saúde reprodutiva e sexual, a mulher tem sido, então, o foco das ações (referentes à cesariana, ao aborto, à morte materna, ao câncer de colo uterino, de mamas etc.). A partir dos anos 1990, sobretudo devido ao aumento dos casos de transmissão da epidemia HIV/AIDS por via heterossexual, nos quais, portanto, também a saúde da mulher estava implicada, foi dada uma maior atenção ao homem como objeto de cuidados na área da saúde (Schraiber, Gomes & Couto, 2005). Na esfera do Programa de Saúde da Família, uma das questões discutidas é a predominância de mulheres e crianças entre os frequentadores dos serviços de atenção básica. Os homens procuram os serviços como idosos e não como categoria sexual, marcas reciprocamente alimentadas pelo imaginário social e pela organização dos serviços de atenção primária, que historicamente privilegiaram a saúde materno-infantil (Villela, Monteiro, 2005).

Pretendemos ressaltar, assim, que a incidência epidemiológica que trouxe a violência ao campo da saúde responde a uma lógica classificatória dos fenômenos do corpo, da saúde e da doença, recortada por uma concepção de gênero que, ao mesmo tempo em que permitiu visibilizar a violência, contribuiu para esconder manifestações que não fossem identificadas com sua lógica de classificação da violência.

Para o objetivo deste texto de discutir a produção da “vítima”, resta mencionar que a entrada da questão da violência na área da saúde está associada ainda ao impacto no campo jurídico dos movimentos sociais de cunho identitário, mencionados anteriormente, a partir da noção de “direitos”. Ambas as esferas, do Direito e da Saúde, articulam-se e contaminam-se no processo de produção da “vítima”, fazendo com que seja a partir da construção prévia da vítima, socialmente legitimada, que se reconheça o ato violento e lhe seja dada atenção na área da saúde.

A violência contra a criança e o adolescente é emblemática neste sentido. A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, o Código Penal brasileiro e um decreto especial do Ministério da Saúde, de 1999 (Brasil, 1990), determinam a exigência legal de notificação dos casos de violência. Segundo os Artigos 13 e 45 do ECA e o Artigo 66 da Lei de Contravenções Penais, a notificação de casos de violência e de maus-tratos é um dever legal, mesmo em casos suspeitos. Entre as implicações de notificar os casos de violência contra a criança está o fato de que, mesmo tendo alta clínica, a criança não pode sair do hospital sem autorização judicial. Se ainda não tiver sido encontrada uma solução judicial para o caso, a criança permanece no hospital (ocupando um dos escassos leitos hospitalares, o que envolve conflito de várias ordens entre as equipes na instituição). Assim sendo, o médico passa a responder, além do cuidado desses pacientes, pela questão judicial que tais situações, entendidas como crimes, envolvem (Minayo, Souza, 1999).


O atendimento à violência

Esse cenário, que fez da violência um problema de saúde por sua politização através de movimentos sociais e por sua entrada na arena jurídica, leva os casos de violência para serviços de atendimentos à saúde, em particular hospitais de emergências, contextos cujas práticas são moldadas por uma organização que se baseia no modelo biomédico centrado na dimensão biológica da doença e que reafirma este modelo.

Os hospitais de emergências (pronto-socorros) sempre foram a porta de entrada dos casos de violência no sistema de saúde, sem que a questão da violência fosse problematizada como tal. A inteligibilidade da violência, que sempre chegou aos serviços de emergência como fenômeno que incide sobre o corpo, dá-se na medida da possibilidade de sua tradução pelos profissionais nos termos da doença, fragmentada em suas dimensões biológicas, psíquicas e sociais. Como problema de saúde, a violência continua a ser construída de forma a tornar-se inteligível na lógica da biomedicina e da assistência à saúde que dela decorre.4 Para os médicos da emergência entrevistados, sua atribuição é curar o ferimento e recuperar as funções vitais, em seus aspectos fisiológicos, independente da razão que levou o paciente ao hospital: um ato violento, um acidente ou uma doença. Entre as razões alegadas pelos médicos, está a dificuldade subjetiva de prestar assistência quando se sabe a história do paciente: “É melhor não saber, é uma defesa”. Esta questão é frequentemente destacada diante do atendimento recorrente a criminosos, alcoólatras, tentativas de suicídio, sequelas de aborto e outros casos que envolvem conflitos morais de várias ordens para o profissional (Deslandes, 2002).

Qual o sentido, então, de uma atenção especializada a casos de violência?

A leitura dos médicos entrevistados sobre o que são casos de “violência” não se confunde com aqueles classificados como agressões (“lesões por causas externas”) nos protocolos da área da saúde em geral, que seguem a Classificação Internacional das Doenças (CID-10). No discurso médico, violência remete sobretudo à violência doméstica e familiar. Esta categoria delimita-se pela identificação de alguma fragilidade na figura da vítima: mulher, criança, idoso. A tendência é reconhecer na figura da vítima alguém passível de sofrer o ato violento, por corresponder a um lugar definido de antemão como de vulnerabilidade. As vítimas de ferimentos por armas de fogo ou armas brancas não se enquadram na categoria de vítimas de violência que requeira algum encaminhamento especial. Ainda que se reconheça um aumento da incidência dessas formas de agressão, estas não são necessariamente problematizadas na acepção de violência, tanto por configurarem desde sempre ocorrências identificadas com a própria razão de ser da emergência – tendo, portanto, um sentido de problema social estrutural – como porque as vítimas, em sua maioria, homens e jovens, não são representadas como tais (Sarti, 2005:114).

Ecos da “biologização” de identidades? De qualquer forma, cristalização de uma característica constitutiva de uma identidade – a vulnerabilidade – em determinados grupos sociais, recortados por gênero e idade (mulheres, crianças e idosos), cuja contrapartida necessária é sua ausência em outros grupos sociais que não são assim reconhecidos como passíveis de sofrer atos violentos.

No hospital estudado, entre as experiências de atenção à violência que lograram se institucionalizar de alguma forma bem-sucedida, estão os serviços dirigidos às mulheres, às crianças e aos adolescentes. Em 1989, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina, foi criado neste hospital um serviço de atendimento a casos de violência sexual contra as mulheres, que se tornou referência no município de São Paulo. Recentemente, em 2005, foi criada uma comissão de atenção à criança e ao adolescente vítimas de maus-tratos, composta pelas distintas categorias profissionais envolvidas nessa atenção (pediatras, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e funcionários técnico-administrativos); ela visa à sistematização desta atenção específica e a notificação, por meio da implantação de uma ficha, que integra os laudos do médico, da psicologia e da assistência social. São os casos de violência que têm inteligibilidade na área da saúde.

A violência contra a criança mostrou ser aquela que recebe maior atenção por parte dos profissionais. Se os profissionais do hospital nem sempre reconhecem a violência contra a mulher (um adulto) como problema de saúde, no que se refere à criança, a violência, seja sob a forma de agressão física ou emocional, abuso sexual ou negligência é inquestionavelmente vista como uma forma de abuso que requer atenção especial. Um cirurgião entrevistado expressa este ponto de vista: "

A criança é diferente, porque se a gente não lida com a violência, ela não vai fazer por conta própria. Adulto não, adulto procura a delegacia, faz a denúncia, a queixa, não precisa de um atendimento em saúde diferenciado".

O pressuposto de um princípio “politicamente correto”, implícito na forma como é introduzida e organizada a atenção à violência por grupos específicos identificados como “vítimas”, a partir da noção de “direitos”, evidencia-se no reconhecimento por alguns profissionais da obrigatoriedade da notificação dos casos de violência, inclusive dos suspeitos, como um problema (Gonçalves, Ferreira, 2002). Segundo esses profissionais, a obrigatoriedade da denúncia é problemática, uma vez que, apesar de a notificação poder salvar a vida de uma criança ao evitar a reincidência de violência potencialmente fatal, pode também resultar em situações não apenas constrangedoras, como também danosas, que dizem respeito aos casos difíceis de identificar e, sobretudo, ao modo de abordar os implicados. Nas palavras da psicóloga, são “os casos que às vezes parece que é, mas não é”, envolvendo reações de tipo paranóico entre os profissionais.


Uma vítima invisível

O acompanhamento de um caso durante o trabalho de campo permitiu, à maneira clássica de Durkheim, evidenciar a regra, o “normal”, pela análise da sanção, do “anormal”. A partir da perplexidade causada por um caso excepcional que fugia à “normalidade” do atendimento à violência, pudemos entender as regras que presidem esta forma de atenção. O caso foi analisado em artigo anterior feito a seis mãos (Sarti, Barbosa, Suarez, 2006) e será retomado aqui, tal qual, para a análise do lugar da vítima.

Um homem, descrito como jovem e branco, apresentou-se ao hospital dizendo-se vítima de violência sexual. A funcionária da recepção, encarregada do registro dos pacientes, dispensou-o, alegando que o serviço de atendimento a casos de violência sexual era voltado apenas às mulheres. Ciente do fato, a assistente social buscou localizar o jovem por meio das informações registradas na recepção. Ao encontrá-lo, solicitou que retornasse ao hospital. Chegando lá, o jovem foi atendido por médicos e pelo serviço social.

O problema que este caso suscitou no hospital diz respeito à dificuldade de se identificar um homem como vítima de violência sexual e não como agressor. Sua demanda de atenção surpreendeu os profissionais e os funcionários e, diante da perplexidade causada, insinuou-se uma inadequação da organização do serviço de atendimento à violência sexual. Quem poderia atendê-lo? Qual especialidade médica atenderia o jovem, já que o serviço de atenção às vítimas de violência sexual, existente na instituição, é formado por uma equipe médica composta por ginecologistas e obstetras?

A psicóloga, interrogada sobre o assunto, em um momento posterior às entrevistas com os médicos e com a assistente social, nos disse que

Foi uma situação assim... nova para a gente, porque chegam poucos [casos] masculinos. A procura ainda é pequena, não que não exista, é que eles não procuram. Assim como a mulher ainda não chega, o homem chega menos ainda. Porque tem uma questão moral aí na história.

Estudos anteriores, como o de Suárez et alii (1995) sobre o imaginário popular relativo a crimes sexuais, mostraram igualmente que a vulnerabilidade aparece como um atributo da vítima de violência sexual. Nessa perspectiva, o homem é visto como o agressor, e não como objeto de violência. Não é o ato em si que configura a violência, mas a definição prévia de quem é a vítima. Um mesmo ato pode ser considerado violência ou não, conforme a representação que se tem da vítima. Cabe ressaltar ainda estudos sobre o sistema judiciário, que mostram o quanto sua visão sobre crimes sexuais está vinculada à imagem que se faz da vítima e de seu comportamento. Neste sentido, é exemplar a pesquisa ironicamente intitulada “Estupro: crime ou ‘cortesia’? Abordagem sociojurídica de gênero”, no qual se analisa precisamente esta associação (Pimentel, Schritzmeyer, Pandjiarjian, 1998).

A organização do serviço de atendimento segue então uma concepção de violência que define previamente quem é vítima. Mulheres, crianças ou idosos são reconhecidos como vítimas de violência e podem ser tratados como tais, enquanto a perplexidade caracteriza a reação à presença masculina como vítima de violência sexual. Esta aparece como algo fora de lugar, ou seja, que só pode ter acontecido com alguém que não é reconhecido como “homem”, ou seja, um homossexual.

A identificação feminista do homem como agressor resultou, paradoxalmente, numa naturalização dos lugares de homem e mulher (Schraiber, Gomes, Couto, 2005) – armadilhas nas quais parecem cair movimentos sociais que tanto esforço fizeram para desnaturalizar o sexo e construir culturalmente, por meio da categoria gênero, o homem e a mulher. Perdeu-se a dimensão relacional tanto da categoria gênero, pela ênfase na vitimização feminina (Gregori, 1993), quanto do próprio fenômeno da violência, pela cristalização dos lugares de vítima e agressor. Badinter (2005), ao se referir à vitimização da mulher pelo feminismo, abre seu texto com a afirmação de que “toda militância esbarra numa dificuldade: levar em conta a diversidade da realidade” (p. 71) e argumenta que, em nome da assimetria estatística, essencializa-se a violência como atributo da masculinidade.

A problematização de violência e gênero ampliou a perspectiva dos estudos, que passaram também a ouvir os agressores (Machado, 2004; Segatto, 1999), mostrando que os homens, em seu lugar de agressor, são parte (neste sentido, igualmente vítimas) de uma configuração social das relações de gênero que os enreda em relações violentas. Torna-os agressores e agentes da violência, forçando-os a provas de masculinidade. Esta construção social acabou por naturalizar-se em muitas análises sobre a violência contra as mulheres, diante de relações de poder essencializadas como domínio masculino, tornando logicamente inconcebível, ou dificilmente assimilável, a ideia do homem como vítima de um ato violento ou ocupando um lugar submetido numa relação violenta.

Entre os suportes que sustentam simbolicamente a identificação entre violência e masculinidade já referida (Machado, 2004; Cechetto, 2004; Schraiber, Gomes & Couto; 2005) e que aparecem no discurso dos profissionais da saúde entrevistados, o mais evidente é a associação da vítima de violência sexual com a homossexualidade. Homossexuais do sexo masculino são (e podem ser) penetrados, portanto, violentados. O que faz um corpo masculino passível de violência sexual é a suposta homossexualidade de seu portador, mas não se reconhece o corpo masculino de um homem heterossexual como um corpo penetrável por um ato violento, ainda que contra sua vontade e desejo.

As questões que suscita a ideia do homem como vítima de violência sexual traduzem uma interdição simbólica: trata-se de algo impensável. Este tabu refere-se à impossibilidade ou, no mínimo, à dificuldade de se pensar o homem como alguém que é acometido sexualmente por um ato contrário à sua vontade. Recorre-se a um desejo inconsciente: ele deve ser homossexual. "Um homem, que é homem, resiste", como foi dito. O impensável é que o homem seja vítima, submetido a um ato contrário à sua vontade. É necessário recorrer a um suposto desejo inconsciente de ser penetrado, homossexual, para justificar a ocorrência da violação quando se trata de um homem. Ele não queria, mas desejava, recorrendo à diferenciação entre querer e desejar, como a formulou Forbes (2003).

Afirma-se, assim, um lugar de controle absoluto próprio da masculinidade. Em contrapartida, em muitos casos de estupro feminino, atribui-se à mulher uma suposta provocação, por sedução, um lugar ativo admitido a uma mulher neste imaginário. Considerar que um homem estuprado é, no fundo, um homossexual é o mesmo que dizer que uma mulher estuprada, no fundo, provocou o ato. A ambos é negada a violência do ato do qual foram vítimas.

Uma criança do sexo masculino é reconhecida como vítima de violência sexual porque ela ainda não é um “homem”, seu lugar é o da criança, portanto, reconhecida como vulnerável, o que nos remete à formulação de Braz (2005) sobre a construção social da masculinidade que se faz com base na contraposição a ser mulher, a ser homossexual e a ser criança.

A violência, em particular a sexual, evidencia a vulnerabilidade humana diante do outro, aquela a que homens e mulheres estão expostos. Nesta configuração de gênero, que identifica na masculinidade um lugar absoluto consubstanciado em poder e controle, não há espaço para o reconhecimento no homem desta vulnerabilidade presente no humano.

A discussão sobre o reconhecimento de que qualquer corpo humano, independente do sexo ou da opção sexual de seu portador, pode ser objeto de atos violentos reveste-se de importância especial diante da questão do direito universal à atenção em saúde, base do Sistema Único de Saúde (SUS), que norteia a política pública de saúde no país. Remete a problemas éticos (Braz, 2005) do atendimento à saúde focalizado em determinados grupos sociais, apontando para dificuldades a serem pensadas na busca de se equacionar o princípio da universalidade e o da equidade, ambos preconizados pelo SUS.


A vítima se faz ver

A atenção à violência, ao se organizar com base numa prévia identificação da vítima – construção social e política – contribui assim para novas divisões perigosas, que simultaneamente fazem aparecer e escondem sujeitos da violência.

Segundo Wieviorka (2006), a “violência muda, e a mudança está também nas representações do fenômeno” (p. 1.148). Desta forma, chama a atenção para a identificação da violência, hoje, com aquilo que afeta existências singulares, pessoais ou coletivas, em comparação com aquilo que afeta a ordem social e política, o Estado que se supõe dela deter o monopólio legítimo.

Trata-se assim de problematizar o próprio processo de construção social da violência, em particular por uma invisibilidade que permanece na mesma medida em que se dá visibilidade à violência, quando esta é construída como fenômeno particular. Esta particularização está nos fundamentos da própria organização da atenção à saúde, que focaliza grupos populacionais específicos ou “patologias” específicas com base na noção do maior “risco” a que estão expostos os grupos sociais priorizados. Se, diante de recursos limitados, é necessário priorizar o atendimento às políticas de saúde, não se pode deixar de problematizar a lógica social e política que preside a definição das ações em saúde.

No momento em que uma questão socialmente relevante, como a violência contra mulheres, crianças e idosos, se torna visível e é circunscrita a estes grupos sociais, algo permanece escondido, como um movimento pendular que acompanha a visibilidade dos fatos sociais, quando estes são pensados exclusivamente em termos das particularidades dos sujeitos sociais envolvidos, negando caráter universalista à atenção à saúde.

O problema diz respeito à relação entre mim e o outro, em termos sociais, na delimitação do que os constitui como sujeitos particulares. Que lugar tem o outro quando se delimita um grupo social? Particularmente nas situações em que estão implicadas relações de poder, em que há vitimização de um pelo outro, como no caso da violência, há o risco implícito de se cristalizarem conteúdos culturais associando as características da vítima ou do agressor a um determinado grupo ou sujeito, essencializando-os. Escapa assim à analise as dimensões relacional e contextual de tais fenômenos, que lhes conferem uma dinâmica própria.

Perde-se a dimensão ética e política que ultrapassa o plano das particularidades, uma vez que as questões relativas à violência não podem se resolver apenas nesse plano, mas implicam a negociação entre grupos particulares, o que requer uma linguagem comum através da qual as partes se reconheçam como interlocutores legítimos. Elude-se, no limite, a própria diversidade da realidade ao se essencializar o social como experiência particular.


O lugar da vítima na contemporaneidade

Finalizo com a indagação sobre o que o lugar atribuído às vítimas diz da sociedade. Como a “produção da vítima” – que supõe, segundo os argumentos aqui expostos, a visibilidade da violência associada à cristalização de identidades particulares – se torna um instrumento eficaz do sujeito contemporâneo, já que, de acordo com Eliacheff e Larivière (2007), vivemos na era das vítimas?

Reproduzo aqui a argumentação destes autores que apontam um caminho fértil para se pensar aonde pode levar a tendência à vitimização, de cunho particularista, na sociedade contemporânea,5 sustentada por uma articulação entre direito e saúde, para responder à exigência de bem-estar e ausência de sofrimento.

Os autores mostram como a noção contemporânea de vítima está associada à experiência da guerra (campos de concentração, Guerra do Vietnam etc.) e adquire um novo estatuto a partir da criação nos anos 1980, pela psiquiatria, de uma categoria clínica, a de PTSD (Post Traumatic Stress Disorder), nos marcos do que foi a terceira versão do Diagnostic and Statistic Manual for Mental Disorders (DSM III). Os psiquiatras, dispondo desde então de ferramentas de identificação e qualificação da vítima, puderam universalizar esta noção (que se estendeu para qualquer gênero de perturbação, acidentes de carro, assaltos, catástrofes naturais, ferimentos por bala etc.). Segundo a orientação geral da DSM III, se a vítima vivenciou o evento “traumatizante” e apresenta traços clínicos de PTSD, então, trata-se de uma autêntica vítima. Assim, os algozes, porque estavam lá, tornam-se igualmente vítimas!

Exclure le context et n’envisager que les symptômes permet donc d’étendre plus les frontières des phénomènes victimaires” (Eliacheff & Larivière, 2007:43)

Passa a haver uma relação de legitimidade moral entre uma categoria diagnóstica – o stress pós-traumático – e uma categoria social – a vítima – que dá ao psiquiatra um lugar indispensável por ser ele quem afirma a condição da vítima. Desta forma, segundo os autores, a psiquiatria no final do século XIX não apenas modifica seu sistema de classificação das doenças, como amplia consideravelmente seu campo de aplicação. O sofrimento psíquico não se reduz à doença mental, mas diz respeito à exigência de bem-estar.

Dans ce contexte, toute personne qui souffre peut se revendiquer ‘victime’ et être considerée comme telle: la souffrance est une injustice, ne pas souffrir devient un droit” (p. 45).

Assim, a vítima ganha reconhecimento e se afirma por meio de seus “direitos”. Na mesma linha, Koltai (2002) aponta para a possibilidade de a vítima se tornar a representação dominante da subjetividade contemporânea, em uma sociedade de “reparação generalizada”. “Vivemos numa sociedade que parece não suportar indivíduos que sofrem, razão pela qual o sujeito contemporâneo, ao tentar sarar dessa doença mortal que é a vida, cada vez mais se transforma em vítima” (Koltai, 2002:35).

Eliacheff e Larivière (2007) fazem a citação, lapidar segundo os autores, de um americano, John Taylor, que sintetiza:

Si vous pouvez établir un droit et prouver que vous en êtes privé, alors vous acquérez le statut de victime” (p. 46).6

Está aberto o campo para demandas infinitas de um sem-número de identidades particulares que lhes dão a base, todas ancoradas no que reivindicam como seus “direitos”. E onde fica o outro?


Recebido: 05/12/2008

Aceito para publicação: 14/03/2009



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1 Trabalho originalmente apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho de 2008, em Porto Seguro, Bahia, Brasil, sob o título: "Corpo, dor e violência: a produção da vítima".

2 Segundo resoluções tanto da Organização Pan-Americana de Saúde, de 1993, quanto da Organização Mundial da Saúde, em sua 49ª Assembléia, em 1996 (Guerrero, 2000).

3 Em 1999, o Ministério da Saúde elaborou um documento que normatiza a atenção à saúde das mulheres vítimas de violência, “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: normas técnicas”. Não é de se estranhar, portanto, que profissionais da saúde, que atendem a casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, tenham expressado dificuldades diante da ausência de normas para lidar com a violência sexual contra crianças e adolescentes do sexo masculino.

4 A associação entre violência e doença, implícita na introdução da questão da violência na área da saúde a partir do discurso epidemiológico, evidencia-se na declaração do epidemiologista João Yunes: “a violência deve ser monitorada como as doenças infecto-contagiosas”, no jornal A Folha de São Paulo, em 10/2/2002.


5 Basta lembrar o exemplo, que nos é muito próximo, do abuso em torno das indenizações às “vítimas da ditadura militar” no Brasil, recentemente noticiado nos jornais.

6 Taylor, John. Don’t blame me. New York, 3 june 1990, apud Eliacheff e Larivière, 2007:276.

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