Sexualidad, Salud y Sociedad
REVISTA LATINOAMERICANA
ISSN 1984-6487 / n.1 - 2009 - pp.125-157/ www.sexualidadsaludysociedad.org
A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes
Larissa Pelúcio
Doutora em Ciências Sociais
Bolsista de Pós-Doutorado FAPESP
Richard Miskolci
Doutor em Sociologia
Professor Adjunto do Departamento de Sociologia da UFSCar
Pesquisadores do Núcleo de Estudos de Género Pagu - UNICAMP
Resumo: Este artigo problematiza a visão contemporânea dominante sobre a sexualidade, seus proclamados riscos e formas desejadas, contrapondo a ela discursos contra-hegemônicos que surgiram desde a emergência da epidemia de HIV-aids, mas que foram silenciados ou ignorados em prol dos consensos que atendiam às demandas da saúde pública. Utilizamos discursos dissidentes sobre a doença para analisar dados etnográficos sobre travestis que se prostituem, seus clientes e também homens que se relacionam em segredo com outros homens. Ressaltamos como a saúde pública, por meio da forma preconceituosa que lidou com a epidemia inicialmente, lançou as bases do dispositivo da aids que se mantém até nossos dias. Este dispositivo funciona por meio de políticas públicas de prevenção ao HIV e resulta em controle e normalização das relações afetivas e sexuais segundo padrões heteronormativos.
Palavras-chave: dispositivo da aids; risco; desvio social; sexualidadeñ Teoria Queer
La prevención del desvío: el dispositivo del sida y la repatologización de las sexualidades disidentes
Resumen: Este artículo problematiza la visión contemporánea dominante sobre la sexualidad, sus riesgos declarados y sus formas deseadas, contraponiéndole discursos contra-hegemónicos surgidos a partir de la emergencia de la epidemia del VIH-sida, pero que fueron silenciados o ignorados en pro de consensos que atendían a las demandas de salud pública. Utilizamos discursos disidentes sobre la enfermedad para analizar datos etnográficos sobre travestis que se prostituyen, sus clientes y también sobre hombres que se relacionan en secreto con otros hombres. Destacamos cómo la salud pública, a través del modo prejuicioso con que lidió inicialmente con la epidemia, ha sentado las bases del dispositivo del sida que se mantiene hasta nuestros días. Este dispositivo funciona por medio de políticas públicas de prevención del VIH, y deviene en control y normalización de las relaciones afectivas y sexuales de acuerdo a patrones heteronormativos.
Palabras clave: dispositivo del sida; riesgo; desvío social; sexualidad; Teoría Queer
The Prevention of Deviance: the aids apparatus and the repatologization of dissent sexualities
Abstract: This paper analyses the hegemonic contemporary vision on sexuality, its risks and desirable forms using conter-hegemonic discourses created since the emergence of the HIV-aids epidemic but that were silenced in benefit of those that answered the public health demands. We use dissident discourses about the illness to analyze two complementary ethnographic data: about travesties and their clients and another with men that keep secret relationships with other men. The paper underlines how public health – thorugh its initial prejudice dealing with the epidemic – created the aids apparatus that remains as part of our social life. This aids apparatus works through public policies of HIV prevention and result in control and normalization of love and sexual relations according to heteronormative standards.
Keywords: aids apparatus, risk, social deviance, sexuality, Queer Theory.
A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes
Preliminares
O dispositivo da AIDS não parece dirigir-se (pelo menos da ótica progressista) tanto à extirpação dos atos homossexuais, mas à redistribuição e controle dos corpos perversos (Perlongher, 1987a:76).1
Desde o início da década de 1980, com a emergência da epidemia de aids,2 assistimos a mudanças sociais profundas que configuraram novos comportamentos em uma clara ênfase epidemiológica na saúde pública e nos discursos sobre a sexualidade. A epidemia permitiu o reforço da norma heterossexual que servira como modelo para patologizar as sexualidades dissidentes desde fins do século XIX. Assim, nas últimas três décadas, o dispositivo da aids revelou-se eficiente na conformação dos antigos prazeres perversos em formas moldadas por padrões heterossexuais.
Na atualidade, o discurso preventivo não se circunscreve somente à prevenção da aids; trata-se de um conjunto de normas, parâmetros e diretrizes que permeiam a visão médica, pautando condutas para os indivíduos evitarem agravos à saúde. Inserido nas políticas públicas de saúde, esse discurso está no marco da “estatização do biológico” e, assim, do “biopoder”.3 A biopolítica dos corpos domesticados e docilizados via instituições disciplinares dá espaço hoje para uma ideologia de moralidade da saúde e do corpo (Ortega, 2003-2004, 2005).
A prevenção é o elemento mais discutido e, ao mesmo tempo, o menos estruturado do modelo preventivo, uma vez que é apropriado e ressignificado por distintos segmentos sociais, além de se espraiar através de meios de comunicação de massa de maneira pouco controlada por seus diferentes formuladores: gestores públicos, ativistas políticos e agências internacionais, sendo a principal delas a UNAIDS, ligada à ONU.4 Porém, é exatamente sua plasticidade que o torna eficaz, não no sentido de garantir comportamentos preventivos, mas de instituir novas e vigiadas maneiras de lidar com a sexualidade.
O que chamamos de “modelo oficial preventivo para HIV/aids” é o conjunto de procedimentos e da linha teórica e metodológica adotado pelo Programa Nacional de Aids, que se baseia, por sua vez, em discursos formulados no plano internacional e que, ao ser encampado em nível nacional, vem sofrendo adaptações regionais. Este “modelo” pretende responder às questões suscitadas pelo surgimento da aids e suas consequências. Atualmente, os seus mentores internacionais acreditam que a prevenção é fundamental como estratégia de combate à aids pois, para a sustentabilidade dos programas de assistência, é preciso que haja uma contenção do aumento de casos via prevenção, viabilizando financeiramente o fornecimento de medicamentos antirretrovirais, bem como de outros remédios necessários ao combate das chamadas doenças oportunistas (Parker, 2002; UNAIDS, 2005).
Tido como “exemplar”, o programa de combate à aids no Brasil, distingui-se, entre outros aspectos, pela ênfase conferida à assistência, com distribuição gratuita do chamado “coquetel” desde dezembro de 1996. O modelo preventivo local, entretanto, sempre esteve matizado pelas discussões internacionais e pela conjuntura nacional.
Considerando as particularidades estruturais e conjunturais do país, Jane Galvão (2000) desenvolve a tese da existência de uma “aids brasileira”. Isto significa defender que o “HIV não possui apenas uma ‘história natural’, mas tem seu percurso marcado por fatores políticos e econômicos, assim como pelas relações socio-sexuais presentes em diferentes sociedades” (Galvão, 2000:17). O Brasil que assiste à consolidação de um programa governamental de combate à aids, é um país que se redemocratiza, testemunha o crescimento dos movimentos sociais, mas também responde às mudanças estruturais da economia mundial. Foi neste contexto expressivo que o Programa Nacional de combate às doenças sexualmente transmissíveis e aids (PN-DST/Aids) oficializou-se. O ano era o de 1988,5 o mesmo em que foi promulgada a chamada Constituição Democrática e quando houve a criação do Serviço Único de Saúde (SUS).
Nesses anos, o modelo oficial preventivo brasileiro tem sido a resposta local, muitas vezes corajosa, às questões que envolvem sexualidade, sofrimento e morte. O que não significa que se rompeu com os parâmetros ditados no plano internacional, pois estruturou seu discurso assentado em categorias de viés universalizantes, como “risco”, “vulnerabilidade”, “protagonismo”, entre outras que aparecerão ao longo deste texto, efetivando-se em campanhas que visam às mudanças de comportamento e à incorporação de práticas disciplinadoras.
Ainda assim, é preciso considerar que o Brasil tem marcado sua posição em relação à assistência (distribuição de antirretrovirais) às pessoas que vivem com HIV/aids, apesar da pressão contrária do Banco Mundial, que tem destinado verba para os projetos capitaneados pelo PN-DST/AIDS (Pelúcio, 2002:137). Outro exemplo mais recente da mencionada “coragem” das medidas tomadas pelo Programa Nacional refere-se à recusa do atual governo (abril de 2005) em assinar acordo com o governo Bush, abrindo mão de fundos no valor de US$ 40 milhões, por não concordar com as diretrizes da United States Agency for International Development (USAID) – agência americana de financiamento para desenvolvimento internacional – de exigir de seus subsidiados a não-promoção, ou legalização da prática da prostituição. Esta postura “antiabolicionista”6 reflete certa permeabilidade às pressões dos movimentos sociais, como o das prostitutas e o das chamadas ONGs/Aids, um dos movimentos que mais se estruturaram nas últimas décadas no país. Além disso, o PN-DST/AIDS conta com um quadro significativo de gestores vindos de Organizações Não-Governamentais, teoricamente mais sensíveis às questões da sociedade civil organizada.
Ao enfrentar com respostas locais tópicos moralizantes das diretrizes preventivas transnacionais, governo e sociedade civil organizada apontam para a possibilidade de se abrirem fissuras no discurso disciplinador que estrutura o dispositivo da aids, o que não significa romper de todo com ele, mas sim perceber que ele é histórico e localmente marcado; até mesmo porque para ser eficiente precisa-se desta relativa plasticidade.
Neste artigo tratamos o discurso preventivo como componente principal do que denominamos, inspirados em Néstor Perlongher, de dispositivo da aids. Segundo Michel Foucault, um dispositivo é um “conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, filantrópicas e morais” (Foucault, 2000:138), ou seja, trata-se de uma trama formada por vários discursos e práticas que se materializam em saberes e poderes. O dispositivo raramente proíbe ou nega, antes controla e produz verdades moldando subjetividades. No caso da aids, são subjetividades marcadas pela culpa e pela impureza, sintetizadas nos seus desejos tomados como ameaçadores da ordem social.
A partir de dados originários de duas etnografias feitas na cidade de São Paulo, procuramos compreender, na perspectiva dos próprios sujeitos, a forma como o dispositivo da aids criou assujeitamentos, resistências e ressignificações no campo do erotismo não-normativo. Para tanto, o campo se divide entre ruas noturnas, onde travestis se prostituem para uma clientela que se declara “heterossexual”, e as salas de bate-papo, que se anunciam sob a rubrica de “Gays e Afins”. Neste espaço, rapazes que muitas vezes se identificam como “não sendo do meio” procuram relacionamentos amorosos que permitam que eles permaneçam no “armário” e ainda assim vivenciem seus desejos.7
Para os homens que buscam parceiros nos chats, assim como para os clientes das travestis, o “armário”, como um dispositivo de controle da sexualidade, costuma ser um tensionador que faz com que eles experimentem uma dupla vivência: excitante, por um lado, mas angustiante na maior parte do tempo. Embora saibam também como desfrutar do segredo, não escapam facilmente dos sentimentos de vergonha gerados por toda uma ordem heteronormativa que marca tais desejos como ilegítimos.
De outro lado, na visibilidade das ruas, as travestis são alvos não só de manifestações homofóbicas, como dos discursos preventivos feitos pelos agentes de saúde, que as interpelam com técnicas preventivas e prédicas de convencimento. Mas é também nas esquinas, sobretudo nas noites, que as travestis conseguem converter estigma em glamour, o que não significa que suas vidas deixem de ser marcadas por essa constante negociação entre o estigma e o desejo.8
A compreensão desta forma contemporânea de ordenar, classificar e controlar a sexualidade exige retomar o modo como as autoridades de saúde pública reagiram à emergência da epidemia de HIV-aids construindo a doença como sexualmente transmissível, o que permitiu que – por meios agnósticos e “científicos” – se mantivesse a crença em um antagonismo originário entre o desejo e a ordem social. Isto se deu pela eleição do homoerotismo como a grande ameaça, de forma que – por meio de sua associação com um vírus mortal – assistimos à criação do maior pânico sexual da história contemporânea.
A forma como a saúde pública lidou com a epidemia em seu início fez com que emergisse a figura do “aidético”, uma biodentidade9 que, após receber um tratamento político, passou a aglutinar “pessoas vivendo com aids” em demandas por políticas públicas, nas quais o paradoxo foucaultiano da saúde se fez eloquente.10 As identidades epidemiológicas permitem que, através de uma série de procedimentos discursivos,11 se regulem comportamentos (não só os sexuais), conformando assim novas subjetividades marcadas pela “autoperitagem” (Ortega, 2005).
É certo que existem diferentes formas de apreender, ressignificar e mesmo resistir a essas interpelações constantes, mas enfrentar “verdades” instituídas é sempre um desafio e, como tal, dificilmente suportável se feito de maneira individualizada.
Ao tratarmos dos discursos sobre a aids, procuraremos refletir sobre uma história nunca contada: a da constituição subjetiva das sexualidades vigiadas. A própria busca febril por determinar uma gênese para a doença nos revela muito sobre as fantasias e os medos de uma cosmologia cultural própria do Ocidente.12 A homossexualidade é o fantasma de uma cultura que se constituiu – desde pelo menos o terço final do século XIX – como sinônimo de heterossexualidade.
Fantasmas de desejo e morte
“[A aids] foi estudada inicialmente em homossexuais, começou a ser procurada insistentemente em homossexuais e, naturalmente, foi encontrada em homossexuais” (Dr. Jean Claude Nahoum, cit. em Perlongher).
A cultura é a forma como o passado se faz presente na vida cotidiana, por isso a compreensão da centralidade do discurso preventivo no dispositivo da aids exige refazer – de forma crítica – um histórico do contexto de erupção da epidemia, os temores da época e suas imagens privilegiadas.
A epidemia foi identificada quando a geração pós-1968 ainda vivenciava a chamada Revolução Sexual, cujos marcos podem ser resumidos em uma maior experimentação e na separação entre a busca do prazer e a reprodução. Naquele contexto, o casamento tradicional foi repensado e a estrutura familiar começou a sofrer mudanças profundas.
Nesta vaga, em 1973, a Associação Psiquiátrica Americana retirou a homossexualidade da listagem de doenças e, no final da década, era patente o aumento da visibilidade do movimento gay. No mesmo período, sintomaticamente, aumentou a preocupação com doenças sexualmente transmissíveis (DST). E, em 1979, no Centro Médico da Universidade de Nova York, o Dr. Alfred Friedman-Kien identificou um grande número de casos de pacientes com uma forma rara de câncer de pele, conhecida como sarcoma de Kaposi. Desde então, também foram encontrados muitos casos de pneumonia causada pelo protozoário pneumocystis carinii em jovens que viviam em grandes centros urbanos (Perlongher, 1987a:39). A despeito disto, a “data de criação” da aids, foi 1981, quando se descobriu que dois em cada cinco dos pacientes acometidos pelos sintomas eram homens que haviam tido relações sexuais frequentes com outros homens. Nos primeiros meses de 1982, a doença foi chamada de GRI (Gay Related Immudeficiency ou Imunodeficiência Gay Adquirida). Ainda que tenha se optado, no final do mesmo ano, pelo termo aids (Acquired Immudeficiency Syndromme ou Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), por muito tempo a “orientação sexual permaneceu como a característica saliente usada para exemplificar a pessoa vivendo com AIDS” (Gilman, 1991:246). Fantasias de declínio, degeneração e morte encontraram seu alvo nos pacientes, predominantemente vistos como homossexuais, usuários de drogas endovenosas e imigrantes negros.
O pânico da contaminação por meio do sangue adulterado tornava-se secundário diante das fantasias que criavam a doença como produto de contatos sexuais espúrios. Ainda que a transmissão sanguínea tenha sido seguramente apontada, desde o início da epidemia, como uma das formas de contágio, a ênfase não recaiu sobre esta forma de proliferação do vírus. Assim, os cuidados sanitários com o sangue usado em hospitais e centros hematológicos em países como o Brasil, por exemplo, não foram levados a sério. Mas, no imaginário social, o temor do sangue contaminado justificou o banimento de pessoas “suspeitas” de suas comunidades, assim como o isolamento compulsório, como se deu em Cuba (Perlongher, 1987; Daniel & Parker, 1991; Altman, 1995).
De acordo com Sander L. Gilman, enquanto o imaginário da sífilis foi construído associando uma ameaça geral à imagem do doente sofredor, no caso da aids, o aidético unia em si o sofrimento culpabilizador, pois ele era visto como a fonte de sua própria infecção. Além de tudo, o “aidético” era um culpado perigoso, pois a ideia de uma exposição propositada ao vírus sugeria condutas irracionais que o levariam, em sua leviandade, a pôr em risco os “bons” e “saudáveis”.
Usar o próprio sangue como forma, por vezes desesperada, de ameaça funcionou, no caso das travestis, como escudo protetor em situações de violência policial e de prisões arbitrárias. Por outro lado, fomentou a ideia do sangue “sujo”. O sangue como substância impregnada de significados simbólicos determinaria a pureza assim como a sujeira do sujeito, funcionando como um operador das hierarquias de tipos humanos. Assim, ter contato com o sangue contaminado adulteraria o “sangue bom”. A ideia do sangue adulterado (ou seja, do sangue puro que foi “misturado” com o do Outro = ad + alter) remete ao temor da hibridização e da consequente “degeneração” humana presente no imaginário ocidental desde o século XIX.13
Os fantasmas colonialistas foram revividos ainda na ideia de um berço africano da aids. Gilman mostra como, historicamente, as doenças foram compreendidas tendo origem exterior e distante das populações sob ameaça. Na geografia da aids, a terra dos fantasmas e dos medos dos países centrais foi a África e o Haiti, portanto, locais associados ao colonialismo e a um Outro (negro) hipersexualizado. Daí as teorias (ou fantasias) sobre a origem da doença por meio de relações sexuais com o macaco-verde africano (bestialidade), rituais de sangue praticados por haitianos adeptos de seitas vudu, ou por meio do turismo sexual de gays norte-americanos no país caribenho (Farmer, 1992).
Natureza e cultura, barbárie e civilização são pares de oposição classicamente confrontados com intuito explicativo pelo pensamento ocidental moderno e, naquele contexto, cumpriam sua “missão civilizatória”, o que implicava um clamor moralizante na formulação de todo um léxico de culpabilização com forte teor racista, homofóbico e mesmo xenófobo.14 Daí a preocupação crescente com os fluxos migratórios a partir da década de 1980 que também contribuíram para a estigmatização dos haitianos, tidos em certo momento como aqueles que teriam levado o vírus para os Estados Unidos. A evidente racialização da aids envolvia traços culturais na gramática acusatória (Farmer, 2006).
O temor da mobilidade e do rompimento de fronteiras sociais e morais apareceria na composição dos mitos de origem na figura do “paciente zero”. As autoridades norte-americanas de saúde pública buscaram aquele que teria sido o provável responsável inicial pela epidemia, e o corporificaram em um comissário de bordo franco-canadense que, em seus momentos de lazer mundo a fora, frequentava saunas gays. Com essa prática – e por meio de cálculos altamente questionáveis – contabilizaram que ele teria se envolvido em encontros sexuais com milhares de homens e teria contaminando cerca de 250 pessoas.
Os discursos morais sobre o “mal sexo” 15 ganhavam uma roupagem científica, agora que a homossexualidade, sobretudo a masculina, podia ser repatologizada em outros termos através de uma doença que chegou a ser anunciada como “o câncer gay”. Quando a aids ganhou, enfim, sua etiologia, esta veio fortemente associada aos homossexuais e às suas práticas eróticas, somando-se a já então longa história de patologização de determinadas sexualidades (Foucault, 2003).
A analogia fácil entre aids e peste negra, gerada pela letalidade de ambas, fez com que nos anos de 1980 os discursos médicos, midiáticos e populares se somassem num coro alarmista, segregacionista e perigosamente ideológico. Como registra João Silvério Trevisan, “ante o fantasma da morte, elegeu-se um bode expiatório, como sempre acontece nas grandes calamidades públicas e nas fobias daí resultantes” (Trevisan, 2004:449). Os eleitos foram os homossexuais, em primeiro lugar; as prostitutas e os promíscuos vinham em geral em seguida. Estabeleceu-se com esta imputação de culpa pela aids uma “hierarquia de respeitabilidade” (Warner, 2000). Os discursos midiáticos, referendados no (parco) saber médico sobre a doença, instituíam no senso comum a ideia de que quanto mais “respeitável moralmente” fosse a pessoa – leia-se, praticante do “bom sexo” – menos risco ela correria.
No seu início, a aids estava marcada por um tipo de sexualidade (a homossexual); por um viés de raça/etnia (negritude e latinidade) e por um gênero (o masculino). O Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos tratou de buscar o nexo dessa relação a partir da racialização e da homossexualização do vírus:
Segundo a primeira suspeita, as excursões de gays americanos para o Haiti teriam voltado aos Estados Unidos trazendo o vírus na bagagem. Se, em vez de se fantasiar sobre os circuitos espermáticos da AIDS, se levar em consideração a transmissão sanguínea do vírus, as hipóteses tornam-se menos festivas. Poderia existir, talvez, alguma possibilidade de o vírus ter entrado nos Estados Unidos desde o Haiti, pela via da transfusão. O Haiti era então um dos principais provedores de sangue humano para o mercado hospitalar norte-americano (Perlongher, 1987:39-40).
Néstor Perlongher, no pouco divulgado O que é Aids, chama a atenção para o discurso médico que procurava construir uma visão da aids pautada em incertezas, mas que eram propaladas com a segurança que só os acostumados ao poder ousam ter. Parecia ter chegado a hora de pagarmos “pelos excessos libidinosos” cometidos em nome do amor livre e da livre expressão das sexualidades não-heterossexuais (Perlongher, 1987a). No limite, a aids constituída como DST foi a resposta médico- moralizante à geração 1968, ao “desbunde” e à Revolução Sexual.
O pânico da aids revelava um novo “desejo coletivo de expurgo” e de “eliminação”. O contaminado tornara-se uma “raça”, uma “espécie”, no sentido empregado por Foucault ao discutir a construção da homossexualidade enquanto fenômeno clínico. Essa “nova espécie” foi aglutinada à categoria clínica do “aidético” (Seffner, 1995:386), sendo-lhe atribuída uma “trajetória moralmente condenável” (Valle, 2002:185). Se, como bem observou Gilman, durante o auge do pânico sexual o paciente de aids permanecia o homem sofredor, ao mesmo tempo a vítima e a fonte de sua própria contaminação (Gilman, 1991:262), então se entende por que a epidemia foi compreendida inicialmente de forma a desculpabilizar a maioria, evocando fantasias de purificação coletiva. O saber epidemiológico, através da retórica do risco e de seu status de cientificidade, tornou-se meio de expressão de medos coletivos anteriores em relação a uma “psicologia do Outro”, em que fantasias de decadência e degeneração do passado se reatualizavam.
A identidade do “aidético”, surgida nesta vaga, transformou-se em uma forma contemporânea do “judeu”. Historicamente perseguidos e acusados de serem disseminadores de pestes, os judeus, dada a acusação de uma suposta impureza contaminante, foram sistematicamente perseguidos em diferentes contextos, dentre os quais, o holocausto nazista representou o ápice do desejo social do expurgo. Para muitos contemporâneos, a aids apresentava-se como uma espécie de Holocausto gay. Ao invés dos campos de concentração, a proposital falta de políticas públicas ou tratamento durante os primeiros anos da epidemia, sobretudo nos Estados Unidos. Ao invés da perseguição política e militar, a marcação da população por meio de políticas de saúde centradas nos testes, no controle e no “tratamento”. Ao invés do encarceramento em campos, a exposição a processos contínuos de estigmatização, solidão e individualização.
Mais tarde, quando os governos aceitaram a existência da epidemia e tiveram que tomar medidas contra ela, as políticas públicas desenvolvidas permitiram usar o temor do extermínio em benefício do controle, assim como o fardo do isolamento seria progressivamente substituído, em alguns países, pelo escrutínio dos prazeres e sua domesticação. Os elementos poluidores poderiam ser “higienizados” e as sexualidades desinfetadas por práticas higienistas que instituíram toda uma hierarquia do risco. Nessa escala de valores sexuais, sintomaticamente não figurou, a princípio, o homem heterossexual (Kippax & Race, 2003:2), posto que o sexo anal foi alçado ao topo da cadeia das práticas de risco. Logo abaixo dele viria o “sexo público”, aquele que não está restrito à privacidade do lar burguês.
Os pesquisadores australianos Susan Kippax e Kane Race, ao analisarem a relação entre os saberes médicos e os das ciências sociais, comentam que para o saber médico o “risco” foi tomado frequentemente como um problema do indivíduo e não das normas socialmente estabelecidas (2003:2). Este enfoque, bastante afinado com a perspectiva neoliberal em relação às responsabilidades do Estado diante da saúde, teve o poder de agravar o rol acusatório que atribuía a disseminação da aids à irresponsabilidade de certos indivíduos agrupados na categoria epidemiológica de “grupo de risco”, pressupondo – com esta ideia um tanto funcionalista de “grupo” – haver convergências, afinidades e homogeneidade nos interesses e, assim, nos comportamentos daquelas pessoas – percepção que autorizava políticas públicas que marcavam certos sujeitos com o emblema incorpóreo da “contaminação”.
A repatologização da homossexualidade em termos epidemiológicos mantém-se dentro de um imaginário biopolítico da coletividade sob ameaça. Fantasma de impureza em que repugnância e desejo se associam na reiteração da norma heterossexual por meios sanitários. Como atenta Ednalva Maciel Neves,
a vigilância sustentada na noção de risco teria como objetivo a antecipação dos loci de irrupções de perigos, localizados estatisticamente e definidos em termos das ocorrências de doenças, anomalias, comportamentos desviantes a serem minimizados, assim como comportamentos saudáveis a serem maximizados (2004:16).
O risco, mesmo que de maneira inconfessável, ainda guardaria uma associação com a ideia de perigo, sujeira e poluição, imputando culpa e acusação àqueles que escapam às normas.16 Nas palavras de Robert Castel, “prevenir é primeiro vigiar” (1987:126), pois “trata-se menos de afrontar uma situação já perigosa do que de antecipar todas as figuras possíveis da irrupção do perigo” (Ibidem:127) – um processo que exige também evitação, que por sua vez pede uma cuidadosa diligência sobre os próprios atos, resultando em subjetividades vigiadas.
Corpos e afetos
Com a AIDS, o abraço médico vai pousar nos esfíncteres, seu ponto de apoio. A “analidade” entra em jogo. Os olhos da ciência voltados ao ânus!
“Como o olho do poder penetra nas mucosas, nos esfíncteres, nas ondas dos espasmos nas irisações do gozo?”. Para Perlongher, seguindo as sugestões foucaultianas de uma analítica do poder, isto se torna possível, em primeiro lugar, pela incitação médica em se falar prolixa e exaustivamente de sexo, resultando numa sistemática ordenação dos corpos e dos prazeres capaz de abranger todo o regime de vida do sujeito. Desta forma, o discurso preventivo que veio sendo elaborado pela biomedicina, mas também por grupos de ativistas gays, depositou especial atenção no uso dos corpos e de seus prazeres, considerando alguns gozos mais legítimos que outros. O “risco”17 foi o termo estruturador da hierarquia dos deleites do sexo, fossem eles hetero ou homossexuais. Prevenir-se do risco pressupunha a possibilidade de se adotarem condutas racionalizadas.
Ao sexo arriscado passou-se a oferecer o “sexo seguro”, iniciativa que nasceu mais da criatividade dos grupos gays organizados do que de formuladores de políticas públicas em saúde, mas que foi incorporada, adaptada e difundida por equipes multidisciplinares ligadas aos diversos programas de prevenção em várias partes do mundo.18
A ameaça da doença mortal foi convertida pelos discursos moralizantes em uma estratégia de convencimento para que os “desviantes” adotassem condutas não-arriscadas. Assim, de forma muito distinta das propostas regulamentaristas do final do século XIX, relativas ao controle da sífilis a partir da higienização e da vigilância sobre as prostitutas (Carrara, 1994), na era da aids elaborou-se um discurso mais eficiente de responsabilização do sujeito visado; este pode se autorregular em prol de sua saúde, ou ser culpabilizado caso falhe, leia-se, caso seja contaminado. As técnicas preventivas pressupõem uma determinada “organização do organismo (funções hierárquicas dos órgãos): a boca para comer, o cu para cagar, o pênis para a vagina etc. Os usos alternativos do corpo costumam ser considerados prescindíveis, sobretudo o coito anal” (Perlongher, 1987:83).
O advento da epidemia da aids provocou o alargamento do modelo tradicional para a elaboração de uma completa estratégia de cuidados e responsabilidades individuais, exigindo o “protagonismo” político dos sujeitos em face da doença. A vigilância epidemiológica, sob esse aspecto, não seria mais externa, tampouco proveniente do aparelho estatal de saúde, mas estaria instalada no interior mesmo dos grupos, principalmente daqueles considerados “vulneráveis” na forma de bioascese. Nas palavras de Ortega, “trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna” (2003-2004:15).
O “problema”, então, não é mais o de ser prostituta, gay ou usuário de drogas injetáveis, desde que o sujeito exerça a autoconsciência de “querer ser” saudável, exibindo-a “de forma ostentosa, construindo um princípio fundamental de identidade subjetivada” (Ortega, 2003-2004:14). Esse processo de subjetivação foi acionado via discurso preventivo, promovendo todo um processo de “SIDAdanização” desses sujeitos.
A “SIDAdanização”19 implica um processo de “conversão” que pressupõe a adesão a princípios tipicamente modernos, como a “individualização” e a “racionalização”, que sugerem mudanças ideológicas profundas nas populações visadas. No caso da prevenção, de maneira específica, faz parte dessa conversão a “responsabilização” do sujeito no que se refere à saúde, à forma de lidar com o corpo e aos vínculos que passaria necessariamente a ter com o sistema oficial preventivo. A politização dos indivíduos almejada pelo modelo preventivo visa constituir bioidentidades, num processo sutil e sofisticado de controle, internalizando a vigilância sobre o corpo e os cuidados a partir dessa “nova consciência política”, como propõe David Armstrong (1993).
O termo “risco”, por sua polissemia, encontrou no senso comum um espaço de sentido, fazendo da locução “grupo de risco” um cordão sanitário-moral mais do que um delimitador biomédico. Ainda que este conceito tenha sido alvo de inúmeras críticas e questionamentos, ele deixou marcas indeléveis no imaginário social no qual as sexualidades dissidentes ainda são sinônimo de perigo. Neste sentido, são sintomáticas as notícias veiculadas em revistas semanais de grande circulação e em jornais de expressão nacional alardeando os perigos de práticas como barebacking,20 termo que estigmatiza o velho, conhecido e sempre predominante sexo sem preservativo. Em termos mais específicos, o termo bareback refere-se ao temido coito anal entre homens, que foi – e ainda é – a principal prática perseguida desde a ascensão da epidemia de HIV-aids. Se, da perspectiva do discurso preventivo, ele é inadmissível, na perspectiva dos sujeitos é ressignificado como eroticamente poderoso e praticado segundo uma ética de segurança negociada, na qual o risco de contrair alguma DST é compartilhado sem detrimento do prazer e da intimidade reduzida desde a década de 1980.
Desta forma, a perigosa “irracionalidade” é implicitamente atribuída aos rapazes que gostam de outros rapazes e àqueles/àquelas que buscam prazer sexual fora dos preceitos heterossexistas. Na perspectiva moralizante e culpabilizadora da mídia, apenas estes seriam os “irresponsáveis”, que em nome do prazer e do perigo buscariam satisfação sem levar em conta os riscos sociais de sua (leviana) sexualidade. Em nenhum momento se questionam os efeitos de décadas de discurso culpabilizador e higienista sobre sexo, e de como práticas como a penetração sem preservativo podem ser lidas como respostas não muito sistematizadas – e mesmo pouco conscientes – de subjetividades conformadas por essas prédicas, que têm demandado uma grande racionalidade das pessoas que não se identificam com os padrões heteronormativos, embora nunca se tenha realmente exigido o mesmo em relação aos heterossexuais.21
John Gagnon registra que a associação entre sexo e risco procura se apresentar como neutra. Curiosamente, o sexo não aparece vinculado ao risco justamente onde ele tem se mostrado mais arriscado: nas relações de mulheres heterossexuais com seus parceiros, fixos ou não:
As mulheres ficam intermitentemente em perigo por causa dos homens nas situações sexuais, desde a adolescência até a velhice. Quando crianças e meninas, correm risco com homens heterossexuais que as molestam; quando adolescentes são expostas ao perigo por rapazes e homens que as obrigam a praticar o sexo, ou que mantêm relação sexual com elas sem protegê-las da gravidez ou de doenças; e quando adolescente e adultas são postas em perigo por homens que as agridem por motivos sexuais e não-sexuais. [...] Todas essas afirmativas são fáceis de documentar, mas nenhuma delas é interpretada pelos cientistas como significando que a “heterossexualidade” seja uma forma de sexo de risco para as mulheres (Gagnon, 2006:323, nota 7).
Arriscado parece ser, aos olhos dos formuladores de políticas preventivas, o sexo não-procriativo (sobretudo se feito por dois homens), o que envolve múltiplos parceiros, em síntese, as relações que visam, antes de tudo, ao prazer.
Qual seria, então, de fato, o alvo das políticas preventivas: a disseminação do HIV ou o sexo público? O sexo invisível e doméstico – supostamente “normal”, “limpo” e “seguro” – só se torna alvo da prevenção quando esta trata de regular as práticas das classes populares, alvo histórico das campanhas sanitárias no Brasil (Carrara, 1994; Rago, 2005; Miskolci, 2005).
A prevenção do desvio
Nas políticas de combate à AIDS, o discurso médico parece considerar os órgãos e os corpos como coisas perfeitamente reguláveis. No entanto, enfrenta uma incontornável resistência: o desejo.
O discurso preventivo sobre a aids é parte de um dispositivo que analisaremos de forma a sublinhar os modos pelos quais ele se efetiva e, concretamente, é apropriado e ressignificado por certos segmentos sociais. Ainda que abordemos o impacto do dispositivo sobre homens que procuram parceiros sexuais pela internet – assim como sobre os clientes de travestis que se prostituem – daremos ênfase, neste artigo, às travestis, pois elas são – assim como outras sexualidades públicas – alvo preferencial deste discurso.22
Segundo Foucault (2001; 2003), regrar a sexualidade considerada promíscua tem sido interesse da medicina e do Estado desde o início do século XIX. As campanhas daquele período visaram levar a moral burguesa até os segmentos populares, a fim de regular suas práticas. Guardadas as distâncias de enfoque e de tempo, propomos que os projetos preventivos, ao se voltarem para outras populações que não aquelas que foram identificadas inicialmente como “de risco”, o fazem tendo como foco os grupos que organizam sua sexualidade a partir de valores distintos daqueles que orientam os valores hegemônicos da sociedade contemporânea.
A pesquisadora mexicana Ana Amuchástegui procura problematizar o enfoque heteronormativo das políticas públicas de saúde valendo-se do exemplo mexicano para embasar suas reflexões. Ela mostra a associação limitadora, e por isso problemática, que essas políticas ainda fazem entre saúde sexual e procriação no caso das mulheres; a invisibilização da sexualidade quando se trata de jovens e idosos; e a centralidade da ereção/penetração para a sexualidade dos homens, com pouca discussão sobre outras práticas eróticas que possibilitem relações também prazerosas, onerando os homens com a exigência do “desempenho sexual”, leia-se capacidade de ereção para penetrar uma vagina. Por esta perspectiva, a insistente associação sexo/risco aparece como “ameaça velada contra o verdadeiro inimigo: o prazer erótico, que nem por acaso é considerado como elemento para a saúde” (Amuchástegui, 2006:212. Tradução dos autores).
Amuchástegui traz para o debate das políticas de saúde um conceito já difundido nos estudos recentes de gênero e sexualidade: o de heteronormatividade. Segundo Lauren Berlant e Michael Warner, a heteronormatividade é um conjunto de “instituições, estruturas de compreensão e orientações práticas que fazem não só que a heterossexualidade pareça coerente – isto é, organizada como sexualidade – como também que seja privilegiada” (2002:230). Esses privilégios vêm materializados nos discursos jurídicos, médicos, educativos, midiáticos, nas produções culturais, como filmes e romances, estabelecendo hierarquias que não se pautam explicitamente pela sexualidade ou só por ela, mas que regulam as relações sociais a partir do pressuposto da heterossexualidade como um estado natural e moralmente desejável. Para Richard Miskolci,
dois microdispositivos complementares formam a heteronormatividade. Em termos macro, no heterossexismo institucional que mantém a hegemonia pública hetero por meio da subalternização dos desejos homo que aloca no privado. No nível individual, o heterossexismo costuma ser bem-sucedido em criar subjetividades homofóbicas de maneira a fazer com que até pessoas que se interessam por outras do mesmo sexo identifiquem-se com a cultura normativa (Miskolci, 2008:11).
É neste registro que o dispositivo da aids opera e faz sentido, tendo a prevenção como estratégia de normalização materializada em uma espécie de imposição, em uma teleologia heterossexista que aponta para uma compreensão futura da vida como monogâmica, reprodutiva, familiar, em suma, privada e sob controle.23 Assim, o discurso da prevenção foi sendo construído ignorando a abjeção como fundante da experiência homoerótica (especialmente clara, como veremos, no caso das travestis, mas também de gays e – em menor grau – dos clientes, como pretendemos demonstrar). A centralidade da experiência da abjeção é assim descrita por David M. Halperin:
A subjetividade gay é dividida contra si mesma, formada no estigma, na rejeição pelos outros – especialmente por aqueles que alguém deseja – e por si mesmo. Nossos próprios amores e prazeres são constituídos em relação a partes de nós mesmos que são causas de uma vergonha irredimível em nossa experiência social delas (Halperin, 2007:69).
Historicamente, esta experiência está ligada à forma como o sexo passou a ser moralizado pela medicina. Foucault mostrou como discursos médicos foram ocupando o lugar daqueles formulados pela Igreja Católica e pelo Direito Canônico, a fim de apontar com o seu saber “neutro” e científico os perigos das sexualidades não-normalizadas,24 associando-as à doença mental. Esse domínio, segundo o filósofo francês, amplia-se tanto a partir do século XIX que a medicina se sobrepõe à esfera jurídica, descobrindo, por trás de infrações à lei, taras, vícios e desvios sexuais. Discursos colhidos pelos juízes, reivindicados por médicos, psiquiatras, sexólogos e psicólogos, tornaram as “sexualidades periféricas” espécies catalogáveis, portanto, identificáveis e, quiçá, tratáveis.
O sexo posto em discurso, como afirma Foucault, produz efeitos sobre os corpos e conforma subjetividades, produzindo verdades sobre o que as pessoas são. Os efeitos desses discursos são, assim, controladores e formam dispositivos eficazes que, antes de proibir e fazer calar, incitam as falas e internalizam o controle. Desta forma, desenvolve-se a experiência da abjeção, ou seja, por meio de uma profunda desidentificação em que o desejo homoerótico é encarado como impuro e contaminador. Aqueles e aquelas que o sentem são socialmente ensinados a senti-lo como abjeto, portanto, como algo de impuro em si mesmo pelo qual a pessoa sente profundo nojo e horror (Halperin, 2007:68).
A compreensão sociológica do discurso da prevenção que pauta os diversos modelos nacionais de saúde no que toca à epidemia de HIV-aids exige que ele seja historicizado. Não por acaso, ele emerge com força a partir do pânico sexual criado pela epidemia no início da década de 1980, cristalizando uma resposta moralizadora ao contexto de profunda transformação dos comportamentos sexuais, das relações amorosas e familiares pós-1968. Aos poucos, passa a fazer parte do que denominamos de dispositivo da aids, o qual se caracteriza pela seletividade no que concerne à aplicação de meios de controle e normalização dos comportamentos. Nesta economia-política do desejo, as regras sociais têm sido aplicadas mais a alguns do que a outros. Exige-se de alguns maior controle e racionalização no que toca a seus desejos, enquanto a outros é atribuída uma inerente normalidade que os libera do mesmo grau de pressão e demanda em relação às suas vidas e aos seus amores.
Segundo Howard Becker (2008), o desvio é socialmente criado pela imposição de certas normas a determinadas pessoas, valendo a pena investigar o processo de acusação do rompimento de regras e interrogar: quem acusa quem e de que no dispositivo da aids?
Acusação, Prevenção e Controle
Uma campanha como a da AIDS exige como pré-requisito que tudo o que diz respeito à corporalidade possa ser dito, mostrado, exibido, assumido; a partir disso é que se pode diagnosticar e regulamentar. Antes os anormais estavam fora: fora da família e fora do consultório: Agora já podem entrar e receber conselhos.
No contexto brasileiro, a despeito dos diversos graus em que o dispositivo da aids tem atingido as diferentes culturas sexuais, algo em comum pode ser encontrado em todas elas: a aids permeia os encontros, as conversas e se insinua nas práticas, mas ainda é uma questão de vergonha e, assim, atribuída a um Outro leviano, irresponsável, poluidor.
A eficácia do discurso preventivo pode ser questionada, mas o que nossos dados etnográficos mostram é que ele tem sido bem-sucedido em moldar como travestis e homens que nutrem afeições homoeróticas compreendem seus desejos e vivenciam sua sexualidade, o que não significa uma postura acrítica diante de inscientes recomendações e a culpabilização a que certos segmentos estão permanentemente expostos.
No início da epidemia, ainda que vigorasse alguma culpabilização dos infectados, a novidade e a falta de informação justificavam – em parte – o HIV como uma fatalidade. Hoje em dia, após décadas de campanhas de prevenção e da incorporação de seu discurso à vida cotidiana, a contaminação apresenta-se como injustificável e prova de irresponsabilidade social. Assim, não é de se estranhar que rapazes gays, clientes e profissionais do sexo partilhem da estratégia do silêncio sobre sua condição.25
Para as travestis, a aids tem sido termo de acusação e, como tal, é atribuída para sujar, comprometer, desvalorizar a/o acusada/o. Pode ser também experimentada como culpa ou consequência de uma vida desregrada, marcada por uma sexualidade exacerbada e pelo rompimento das normas. Ainda que haja entre elas uma visão que tenda a endemizar a aids como própria das travestilidades, não há passividade diante desta acusação. “Não que a gente que passa, todo mundo tá sujeito a pegar, qualquer um” – explica Thais, travesti que na época da entrevista vivia em São Carlos (SP). Em seguida conclui: “na verdade são os homens que passam pros travestis”, e não o contrário. Ela reverte a acusação: a aids seria a doença que os heterossexuais levam para as travestis, pois elas “se cuidam”. Um “cuidar-se” que se distancia daquele pretendido pela prevenção à AIDS, como veremos.
Cláudia Wonder, travesti que fez parte da cena artística paulistana dos anos 1980, comenta que as acusações que circulam pela intrincada rede de sociabilidade da noite têm relação com o ambiente competitivo da prostituição, somado à trajetória de vida das travestis, quase sempre associada à exclusão e à marginalização (entrevista concedida em 03/11/2006).
A subjetividade travesti se constrói também a partir desses discursos. Talvez por isso, muitas de nossas colaboradoras não hesitem em apontar falhas morais tidas como próprias da travestilidade: a competitividade acirrada, a falta de solidariedade e certa irresponsabilidade consigo mesmo e com os outros, o que sustenta a ideia de aids como constituinte. Assim, a aids pode ser silenciada e até mesmo negada, sendo quase um tema tabu sobre o qual as travestis se calam, tornando-o impronunciável, a não ser por meio de uma tática de familiarização que se expressa na forma como denominam a doença de “tia Lili”, ou simplesmente “tia”.
Por outro lado, o “viver com aids” torna-se discurso para travestis agentes de prevenção26 e para as ativistas dos movimentos sociais. Propomos que é a aproximação com o discurso médico preventivo e com a linguagem do movimento social que as faz ordenarem a experiência desestabilizadora de se descobrirem soropositivas. Assim, o engajamento tem efeito terapêutico. Uma terapia que inclui o “falar sobre”.
Paradoxalmente, a informação médica, com seus princípios racionalizadores e aparentemente neutros, tem sido instrumentalizada como arsenal capaz de minimizar a acusação, de ressignificar a imputação de culpa pela doença e pela sua disseminação. Ainda que muitas vezes acabem assimilando a culpa, elas tendem a reverter a acusação quando se vêem acuadas e apontadas como disseminadoras da aids, não mais aceitando serem apontadas como vetores da doença. Não cansam de repetir: “Eu me cuido!” – um cuidado que está fortemente assentado na dedicação ao corpo, pois dele dependem serem travestis. Esses tratos começam com medidas epidérmicas, cotidianamente reiteradas; envolvem ingestão de hormônios e de vitaminas; abrigar-se nas noites frias sem perder o apelo de sedução; autovigiar-se, a fim de modelar a voz e suavizar os gestos; manter-se bronzeada; aprender a tomar bebidas alcoólicas e não se embebedar; dominar técnicas sexuais para lidar com a clientela e garantir mais conforto corporal para si; observar como estão pênis e ânus; fazer a chuca (lavagem anal); cuidar da dieta, garantir a diária.27 O “cuidar-se” das travestis abrange ainda as relações que devem ser mantidas na casa, na rua e “na noite”. Como se vê, esse conjunto de cuidados pouca relação tem com aquele apregoado pelo sistema oficial preventivo.
Ademais, as travestis, em geral, mostram que têm uma série de informações sobre aids: sabem como se pega, o que se deve fazer para evitar, onde obter insumos preventivos, buscar medicamentos e fazer exames.28 Aliás, a maioria das travestis ouvidas garante já ter feito o exame de HIV pelo menos uma vez.
Porém, o modelo preventivo brasileiro estabelece uma rotina de três exames, que devem ser feitos com o espaçamento de três meses. Só depois da realização do terceiro exame o/a usuário/a poderia ter alguma confiança nos seus resultados, desde que, nesse período, não tenham tido qualquer “comportamento de risco” (leia-se: sexo sem camisinha e/ou compartilhamento de seringas), o que é bastante improvável para alguém que trabalha com sexo. Além disso, seguir à risca esse agendamento envolve um comprometimento com o sistema de saúde de pelo menos seis meses, durante os quais a travesti não deve mudar de cidade, pois os exames precisam ser feitos na mesma unidade de saúde. Isto não se coaduna com a realidade de muitas delas, uma vez que é comum mudarem-se com frequência. Não é factível também com a dinâmica do trabalho sexual, que não tem a rigidez de horários e a previsibilidade de outras atividades profissionais.
Ser “sorointerrogativa” pode ser mais tranquilizador do que saber-se portadora do vírus. Até porque muitas travestis não acreditam que viverão muitos anos. Este sentimento vem referendado pela rotina de violência que as cerca,29 somado ao uso sistemático que muitas fazem de drogas lícitas e ilícitas.
A rotina da prostituição, somada ao estigma suscitado pela publicização de seus corpos e desejos, é muitas vezes descrita a partir da categoria “pressão”, como Márcia, travesti agente de prevenção descreve:
Você tá ali na rua, já tá numa pressão danada, você pode levar um tiro, fica na pressão de correr da polícia, você tá na pressão de levar uma ovada, você tá ali na pressão de um cara vir e jogar um extintor na sua cara, você tá na pressão de você entrar dentro de um carro e o cara colocar uma faca e te furar (Entrevista concedida em 14/11/2005).
Esse cotidiano de “pressão”, no qual a violência não assume um caráter de excepcionalidade, mas de rotina, leva algumas travestis a diagnosticarem em si mesmas traços de “depressão”. Esta aparece em algumas falas identificada como doença, um sofrimento resultante do acúmulo de “pressão” que pode desaguar em uma depressão fatal.
A “pressão” vivida pelas travestis, assim como as aflições manifestadas por seus clientes e pelos rapazes em seus armários virtuais, demonstram como os microdispositivos da heteronormatividade funcionam, pois a experiência do sofrimento de compreender a si mesmo como impuro e poluidor torna compreensível a centralidade da abjeção na constituição de suas subjetividades e das relações paradoxais que possam vir a ter em relação a seu corpo, e até mesmo em relação à vida. O que esperar do trágico confronto de subjetividades marcadas pelo segredo constitutivo da abjeção diante da heteronormatividade? O espectro de opções é restrito e vai da pura e simples autoaniquilação a formas contraditórias e dolorosas de manipulação do estigma.
Associadas ao risco e ao perigo, no sentido de serem “ameaçadoras” para a sociedade, as travestis vivem em risco e perigo justamente pelo rechaço que sofrem por parte daqueles e daquelas que as veem como ameaçadoras. Viver em risco faz parte do cotidiano de muitas travestis, sendo o HIV apenas mais um, e nem sempre o mais premente ou preocupante. Até mesmo porque, muitas vezes, para (sobre)viver é preciso mesmo se arriscar.
Márcia analisa a relação entre racionalidade e risco a partir de uma lógica própria que, ainda assim, está marcada por anos de exposição ao dispositivo da aids. Diz ela: “Quando a gente ama, o corpo castiga. Acho que ninguém se arrisca de pegar aids”. Ela atenta para o fato de a maioria das travestis não usar camisinha com seu “amor”, pois isto não teria “lógica”.
Eu como profissional [do sexo], eu sou nota dez, entendeu? Mas eu como namorada, amante, esposa: zero! Porque você confia no outro, entendeu? Você tem aquele momento, poxa! Cê fala, “ah, fui profissional a noite inteira...” (Entrevista concedida em 14/11/2005).
O comportamento tido como lógico e racional pelo discurso preventivo é, para Márcia, algo “ilógico”, porque não condiz com a realidade das travestis. A lógica não está numa mecânica homologia com a rua/esquina/pista, isto é, com os espaços de prostituição, onde os formuladores de políticas públicas esperam condutas baseadas em uma racionalidade instrumental. O que a maior parte dos/das gestores/as públicos não considera é que a avenida pode ser um dos poucos lugares onde a travesti se sinta bonita e desejada, além de ser um espaço de intensa sociabilidade e aprendizado. É ali também que muitas têm encontrado homens que não se identificam com o universo gay, aqueles tidos por elas como “homens de verdade”.
Quanto aos aspectos preventivos, é justamente com os “homens de verdade” que as travestis acabam fazendo sexo sem camisinha: ou porque é com eles que irão ter relações afetivas, ou por serem eles os clientes gostosos, como a eles se refere Gladys Adriane, travesti que vive neste momento na Itália. A fixidez de suas performances num dos polos do binarismo de gênero faz desses homens pessoas menos perigosas, porque passíveis de definição e alocação.
Talvez por isso a categoria “maricona” seja uma das mais problemáticas dentro do sistema de gêneros rigidamente binário que as travestis, ao menos no nível discursivo, acionam. Entre elas, o termo “maricona” virou uma espécie de xingamento, de ofensa dirigida a certos tipos de homens: aqueles que até passariam por “homens de verdade” na vida pública, mas que na privacidade das práticas sexuais escapariam para o desprestigiado polo feminino. Na tentativa de se invisibilizarem e de negarem publicamente seus desejos,30 deslocam-se da zona moral da masculinidade: não têm coragem ou honra.
Se são os “homens de verdade”, os bofes, que acabam incitando o desejo das travestis a ponto de fazê-las “perder a cabeça”, são as mariconas que ficam loucas por elas e acabam deixando de lado o chamado “sexo seguro”. Mylena Toledo diz que há clientes que “vêm pedindo pra gente gozar na boca deles. E depois de tudo, aí sim, vão perguntar se a gente tem alguma coisa” (Em conversa via MSN, em 10/06/2005).
Algo similar se dá entre os rapazes que, em segredo, procuram relações com outros homens na internet.31 Muitos dizem não utilizar preservativos com mulheres e priorizar seu uso nas relações homoeróticas, nas quais revelam sentir um misto de culpa e desejo pelo contato com o sêmen do parceiro. O discurso nem sempre condiz com as práticas concretas. O que a maioria das falas deixa entrever é que – nas raras relações mais duradouras ou nos contatos ocasionais que se realizam em meio a muita ansiedade e restrições sociais – negociam-se os limites de “segurança” com o parceiro de forma a maximizar o prazer. Este é fortemente associado à visualização, ao toque e até a ingestão do sêmen.
O sêmen é um líquido impregnado de significados simbólicos, associado à masculinidade, à força, à reprodução e à vida. O contato com esta substância, ainda segundo alguns relatos, aponta para “intimidade” entre os parceiros, estabelecendo uma aliança pela troca de fluidos.
Se o contato com fluidos corporais (sangue, saliva, leite, sêmen) são vias condutoras privilegiadas de contágio do HIV/aids, assim como substâncias carregadas de erotismo e do poder de estabelecer vínculos entre parceiros sexuais – principalmente quando se trata de práticas não-convencionais de sexo – como trabalhar a questão preventiva? Qual a força do discurso preventivo, higienista e normativo nesses meios? Até mesmo porque, para esses homens, as práticas “transgressivas” são ocasionais, esporádicas, e assim a prevenção/evitamento de contato com o sêmen não é uma preocupação constante deles em relação às suas vidas sexuais.
O disciplinamento preventivo tem dado pouca ênfase às formas como os homens que se entendem como heterossexuais – como é caso dos clientes das travestis – conduzem sua vida sexual.32 No conjunto de valores que estrutura a sexualidade desses homens, visões psicologizantes os informam na avaliação que fazem de seus desejos, práticas e orientação sexuais. Estariam eles, assim, supostamente mais afeitos ao discurso oficial preventivo, que traz em suas diretrizes conceitos mais familiares, como “cidadania”, “protagonismo do sujeito”, entre outros, próprios de uma matriz individualista.
Há, entre os homens que procuram as travestis para sexo e entre os rapazes que frequentam os chats, uma assimilação das informações e das recomendações veiculadas pelo discurso preventivo, sobretudo aquele que marcou as campanhas iniciais. Ainda assim, a incorporação destas normas disciplinadoras do sexo esbarra em determinantes outros: as angústias da vida dupla, o medo da emasculação, ou a excitação proveniente do contato com os fluidos corporais, numa relação que mescla prazer e perigo. A aids é, desta maneira, encapsulada pelos medos internos e apagada publicamente pela masculinidade marcada nos corpos:
Os homens heterossexuais não se consideram “minorias” nem se sentem discriminados. [...] Ao mesmo tempo, também não se percebem como “grupo de risco” – muito embora muitos tenham relações sexuais com numerosas pessoas diferentes [...]
Devemos considerar, ainda, que categorizações como “grupo de risco” e “minorias” sexuais são construídas a partir do pressuposto da existência de uma categoria “sem risco”, majoritária, frequentemente associada ao casal heterossexual, em que o homem tem ampla liberdade para exercer sua sexualidade. Assim, a própria lógica subjacente à categorização a tornaria, em princípio, impermeável à absorção de grupos tidos como “normais”, como a população masculina heterossexual (Villela, 1998:130).
Como discutem Dagmar Meyer et al. (2004), a sexualidade masculina é tratada pelos programas preventivos como pouco variada e mesmo imutável, pois estaria determinada por imperativos biológicos que levam esse homem (com H maiúsculo) a buscar relações sexuais múltiplas, extraconjugais (comerciais ou não), permeadas por um impulso sexual incontrolável que faz dessa sexualidade voraz um estilo de vida capaz de atestar a sua masculinidade. Fica implícito na forma como os programas preventivos são elaborados e, sobretudo, para quem são dirigidos que os “homens de verdade” não precisam mudar.33
Políticas e saberes do pós-aids
Seria preciso, talvez, conceber uma política sexual diferente que não desconhecesse a multiplicidade dos desejos eróticos nem tentasse disciplinar pedagogicamente os perversos e seus prazeres.
Na segunda metade da década de 1980, muitas foram as vozes dissonantes que denunciaram a construção do pânico sexual a partir do HIV-aids e as consequências sociais prováveis da expansão da preocupação pública em termos epidemiológicos. Nos Estados Unidos, Rubin (1984) e Gilman (1987), entre outros, desconstruíram as visões correntes sobre a doença e explicitaram a construção do que, no Brasil, Perlongher compreendia como uma nova onda conservadora que engolfaria o Ocidente, apontando o dispositivo da aids como um dos elementos expressivos desse processo. Talvez tenha sido esta mesma onda que tenha submerso seu O Que é Aids (1987) em um mar de esquecimento, alçando à superfície textos mais afeitos às expectativas moralizantes largamente difundidas nos meios científicos.
Em comparação com os Estados Unidos (cf. Warner, 2000; Kippax & Race, 2003), no Brasil se deu um melhor e mais profícuo intercâmbio entre ciências sociais, sociedade civil organizada e saberes médicos, o que contribuiu para que nosso programa nacional se destacasse internacionalmente e fornecesse, para além de informação, acesso universal a tratamento. Infelizmente, o que permitiu o diálogo foi a adoção – em graus diversos – da gramática moralizante, que fez com que os inicialmente chamados “grupos de risco” viessem a ser investigados sob a forma de estudos de minorias. Isto contribuiu para reforçar o cerne da heteronormatividade: o axioma da heterossexualidade como a própria ordem natural do sexo.34
O pânico sexual que forjou o dispositivo da aids com o protagonismo do discurso preventivo começou a arrefecer com a invenção do tratamento por meio do coquetel. Desde então, passamos a vivenciar o que alguns denominam de momento pós-aids, quando a eficácia do tratamento somada a campanhas que procuraram minimizar o preconceito, disseminaram a percepção de que a aids não é uma doença que aflige exclusivamente as pessoas de condutas “suspeitas”, mas está também no seio das relações heterossexuais, familiares e monogâmicas. As políticas de prevenção – mesmo que sem intencionalidade – vivem o paradoxo de se tornarem expressão de reinvestimento no pânico sexual originário, já que a luta contra o estigma ainda carece de uma crítica aos axiomas biopatologizantes e, sobretudo, de uma problematização da ordem social como um todo, ao invés do foco em “grupos”, “minorias” ou “culturas sexuais dissidentes”.
Em nossos dias, a aids perdeu seu caráter de sentença de morte e adquiriu contornos definidos por alguns como de “doença crônica”. Assim, adentramos em outro imaginário sobre a doença, menos pautado pelo pânico sexual e mais pela “marcação” de uma parte da sociedade com o carimbo da soropositividade – esta condição paradoxal em que não se é doente ou tampouco sadio. O soropositivo é um problema para si próprio e uma nova encarnação do estigma da homossexualidade para os outros.
Além disso, neste momento pós-aids, deparamo-nos com tentativas de distinguir os/as arrazoados/as que teimam em não “se cuidar” daquelas e daqueles que, aceitando sua condição sorológica, incorporam as prescrições disciplinares. Para tanto, novas formas de controle não cessam de ser criadas e outras são reiventadas. O “fantasma” que rondou os leitos lascivos das décadas de 1980 e 90 não perdeu de todo o seu poder de assombro, mas desdobrou-se em muitas fobias materializadas em monstros sociais. Se a homossexualidade foi higienizada, em boa medida controlada em suas expressões mais rebeldes no modelo monogâmico-familiar, agora se avança na patologização de outros comportamentos, dentre os quais se destacam o barebacking e a pedofilia. A crescente fixação nestes temas aponta para tentativas de aproximação entre saberes psi e direito, de forma a retomar não apenas a repatologiação epidemiológico-psi da homossexualidade, mas também a criminalização do desejo e não mais do ato (caso cristalino na pedofilia).
Não por acaso, é a partir do final dos anos 90 – em meio à adoção do coquetel e do engajamento do movimento social em torno da luta pelo casamento – que ressurge a figura do pedófilo nas preocupações cotidianas publicizadas pela mídia. Assistimos, assim, a “demonização” do desejo homoerótico de molestar as crianças, símbolo da pureza ameaçada da coletividade.
No que toca à normalização das sexualidades dissidentes a partir de um modelo heterorreprodutivo, é visível o avanço da “higienização” das relações homoeróticas por meio de um crescente controle de gênero em relação aos corpos e às subjetividades. Isto não se deu sem contradições, já que os homo-orientados do presente celebram a masculinidade hegemônica em seus ideais eróticos e na construção de seus corpos, ao mesmo tempo em que aceitam um processo crescente de “vaginização” do ânus progressivamente depilado, alvo de lavagens internas e motivo de apelidos feminilizantes.
O sexo anal entre homens (incluindo neste espectro as travestis) continua a ser o alvo de controle e a fonte de temores imemoriais sobre os usos alternativos do corpo para o prazer. O discurso de prevenção trata o sexo heterorreprodutivo através de um prisma rígido de gênero, em que aspectos culturais não são de fato problematizados. Mesmo que se assente em valores como o da diversidade, de fato o que vemos é a busca pela homogenização das práticas e dos desejos. Assim, a heterossexualidade reprodutiva é a perspectiva não-explicitada que constrói a prevenção como eixo central do dispositivo da aids. Em uma ironia mortal, o foco preventivo no sexo público e não-heterossexual deixou escapar onde provavelmente se dá a maioria das contaminações, ou seja, as relações privadas, estáveis e possivelmente reprodutivas.
O dispositivo da aids é histórico, e como tal terá um fim. Sua substituição se dá com a transformação e a expansão do discurso preventivo de sua origem epidemiológica na década de 1980 para formas contemporâneas de controle e normalização do desejo.
Permanece na ordem sexual contemporânea a fixação social na sexualidade e no desejo, uma mistura de repugnância e atração pelo Outro que constitui a heteronormatividade. É a instável hegemonia heterossexista, construída em contraste com o polo homo (mas também dependente de sua manutenção) que ainda faz desta ambivalência o motor das políticas e dos saberes.
Recebido: 08/01/2009
Aceito para publicação: 10/03/2009
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1 Todas as epígrafes foram retiradas do livro O Que é Aids, de Néstor Perlogher (1987).
2 Usamos a sigla “aids” em minúscula seguindo as orientações de Castilho (1997 apud Silva 1999). Ele argumenta que nomes de doenças são substantivos comuns, grafados com minúscula. Além disso, aqui o uso em minúsculas se deve a uma perspectiva crítica em relação ao pânico sexual criado em torno da aids. Como não há uma uniformidade na forma de grafar a referida palavra, nas citações reproduzidas ao longo deste trabalho respeitaremos a forma escolhida por cada autor.
3 Um processo que, segundo Michel Foucault (1972; 2003), tem seu início no século XVIII com a consolidação da sociedade burguesa.
4 O Programa Conjunto de Aids das Nações Unidas (UNAIDS) reúne seis órgãos da ONU: a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Fundo de População das Nações Unidas (FNUAP), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Banco Mundial (Parker, 2000:124).
5 O Programa Nacional de DST/Aids foi criado em maio de 1985 (Portaria 236, de 02/05/85), mas só se consolidou em 1988 (cinco anos após ter sido implantado o primeiro programa do gênero no Brasil, o do estado de São Paulo) dentro da estrutura do Ministério da Saúde. O Programa Nacional de Aids reproduziu o modelo paulista, no qual a questão da aids estava alocada na Divisão de Hanseologia e Dermatologia, conduzido sob forte influência do movimento de médicos sanitaristas, de tendência mais à esquerda, que foram mais sensíveis às pressões de integrantes do então denominado movimento homossexual, assim como dos hemofílicos (Pelúcio, 2002).
6 Referimo-nos à posição política que pretende regularizar e garantir os direitos das/os trabalhadoras/es sexuais, em contraposição àqueles que julgam que a prostituição é sempre opressiva e fruto de relações patriarcais, e por isso lutam por aboli-la.
7 A etnografia entre travestis realizou-se de 2003 a 2007, resultando na tese de doutorado de Pelúcio (2007) sobre o modelo preventivo de aids, sua circulação e ressignificação por parte de travestis que se prostituem na cidade de São Paulo e de sua clientela. O campo foi dividido (esquematicamente) em cinco frentes: as casas de “cafetinas”; os pontos de prostituição; as reuniões e os trabalhos preventivos junto a agentes e técnicas de saúde; os encontros de clientes (o chamados Dia T); e os ambientes virtuais, tais como fóruns, plataformas de sociabilidade, MSN e blogs, nos quais tanto clientes como travestis se fazem presentes. A incursão etnográfica feita a partir das salas de bate-papo “Gay e Afins”, voltadas para usuários da cidade de São Paulo, realizou-se entre dezembro de 2007 e junho de 2008 e se constituiu em análise da plataforma e de como ela é utilizada em conjunto com sites de relacionamento e procura de parceiros sexuais e amorosos além de Messenger, em mais de 100 entrevistas feitas no próprio bate-papo e 13 em profundidade via Messenger. Esta pesquisa originou artigo publicado na revista Gênero (Miskolci, 2009a).
8 Michael Warner distingue vergonha de estigma de forma a explicitar como nossa sociedade lida de forma diversa com sexualidades fora da norma heterossexual. Enquanto gays e lésbicas monogâmicos e de classe média vivenciam a vergonha, as demais sexualidades que rompem mais radicalmente com padrões sociais enfrentam cotidianamente o estigma. Os estudos queer exploram de forma crítica a hierarquia de respeitabilidade em que se inserem as diversas sexualidades (ver Warner, 2000:37).
9 Francisco Ortega propõe que na contemporaneidade temos constituídos bioidentidades, fruto de relações apolíticas entre sujeitos individualizados que se agrupam em torno de questões relativas à saúde, performances corporais, doenças específicas (como a aids), longevidade, entre outros. Esses sujeitos se deixam orientar por conjuntos de ações pautadas em uma “ideologia da saúde”, expressas em um vasto léxico médico-fisicalista. Todos esses elementos, conjuminados, compõem espaços de biossociabilidade, onde se formam as bioidentidades (Ortega, 2005:30-31).
10 O paradoxo foucaultiano refere-se à tensão entre direito e controle. Foucault discute que o direito à saúde não pode se realizar sem o controle sobre os corpos dos que usufruem tal acesso (Foucault, 1972:97).
11 Seriam procedimentos discursivos as orientações sistemáticas para as práticas de sexo “seguro”, articuladas em espaços de lazer, como nos destinados aos cuidados da saúde; o incentivo à filiação em ONGs; a responsabilização dos sujeitos em face de sua saúde, entre outros que implicam um processo de “sidadanização”, conforme trataremos ao longo deste texto.
12 Como nos lembra Denis Altman, “a linguagem da AIDS e seu controle derivam dos conceitos ocidentais de virologia, imunologia e psicologia” (1995:79).
13 Robert Young, ao problematizar as teorias coloniais sobre hibridização das “raças”, escreve que em qualquer destas teorias, “o hibridismo, como descrição cultural, encerrará sempre uma política implícita da heterossexualidade. [...] A razão para essa identificação sexual é óbvia: a ansiedade do hibridismo refletia o desejo de se manterem raças separadas”. Ansiedade que poderia ser diminuída no caso das relações homo-orientadas, uma vez que estas não implicariam geração, porém, elas também se colocam no marco das “degenerações”. Homossexualidade e hibridismo se encontrariam aí. “A identificação da degeneração racial com a sexual era sempre claramente sobredeterminada naqueles cujos subversivos corpos bronzeados davam testemunho de um ato transgressor de desejo perverso” (Young, 2005:31).
14 Gilman sugere em seu artigo “Seeing the Aids Patient” (1991) que a disseminação do modelo de medicina ocidental no continente africano é que pode ter espraiado o vírus pelo continente, já que a inoculação foi introduzida em uma região pobre, o que levou à reutilização indiscriminada de agulhas e seringas. Na mesma linha, este historiador também sugere que norte-americanos possam ter contaminado os haitianos, causando a epidemia no país caribenho. Portanto, os mitos sobre as origens africanas ou haitianas da aids seriam, sintomaticamente, uma inversão fantasiosa dos fatos mais prováveis, a qual visava manter uma hierarquia em que o Primeiro Mundo é advertido pela periferia imaginada como fonte de ameaças impuras, como doenças ou sexualidade fora das normas.
15 Rubin, em Pensando sobre Sexo (2003), defende que a ideologia sexual popular mescla a ideia de pecado à de inferioridade psicológica, histeria de massa, acusações de bruxaria e xenofobia. A mídia, segundo ela, corroboraria esse sistema de estigma e preconceito, favorecendo e fixando uma hierarquia de valor sexual, na qual caberiam, à “ralé sexual”, a segregação e o infortúnio. No sistema de valores sexuais, o sexo “bom” seria aquele feito entre um homem e uma mulher, preferencialmente casados, monogâmicos, visando a fins procriativos e, assim, fazendo um sexo não-comercial (2003:26-27).
16 É preciso atentar, como fez Perlongher, para o fato de que os conselhos preventivos sobre como se proteger do contágio nunca foram inocentes, pois “partem de um certo modelo médico de prática corporal que tem uma relação conflitiva com os usos concretos e históricos do corpo” (Perlongher, 1987:37).
17 Para uma arqueologia do risco como categoria do pensamento estruturadora do indivíduo moderno, e uma larga e profunda discussão sobre epidemiologia e risco, ver Neves (2004).
18 Autores como Douglas Crip (1987 apud Berlant & Warner, 2002:246) defendem que o “sexo seguro” foi uma estratégia criativa que nasceu da sexualidade gay justamente pela sua experimentação, pelos usos diversos do prazer sexual e da exploração do próprio corpo e do corpo do parceiro. Já Perlongher (1987) e Pollak (1984) representam aqueles que vêm o “sexo seguro” como uma forma domesticada e higienizada de os gays responderem às acusações que pesaram sobre eles no início da epidemia.
19 Fazemos aqui alusão ao processo de cidadanização discutido por Luiz Fernando Duarte et al., 1993.
20 Uma matéria publicada na revista Veja, em 04 de setembro de 2002, traz a seguinte chamada de capa: “Eles escolheram entregar a vida e a morte” (Coutinho, Leonardo. 2002. Revista Veja. Disponível em http://veja.abril.com.br/040902/p_076.html).
21 Basta que nos detenhamos nas chamadas de capa de revistas como Nova Cosmopolitan para nos depararmos com a insistente associação entre sexo e entrega sem limites, sexo e irracionalidade, expressas em frases como “Como fazer um strip-tease – Confira nossa aula de strip-tease e enlouqueça seu homem ainda mais!” (http://nova.abril.com.br. Grifo nosso). Aqui se tem quase um dever moral de “enlouquecer” em nome do prazer hetero, prerrogativa negada e condenada quando se trata de sexo entre pessoas do mesmo sexo.
22 Em relação aos homens com práticas homoeróticas, nossa abordagem centra-se nos discursos neopatologizantes, cada vez mais presentes na grande imprensa, e que têm contribuído, a partir de falas que assentam sua legitimidade de “neutralidade” científica, para a repatologização da homossexualidade, conformando subjetividades marcadas pela percepção da doença e da impureza.
23 Sobre esta imposição de uma temporalidade heterocêntrica consulte Halberstam (2005) e Halperin (2007:46).
24 Isto é, heterossexuais, procriativas, conjugais e não-comerciais.
25 O contexto norte-americano, por exemplo, é diverso devido à falta de campanhas governamentais explícitas de prevenção e de amplo espectro, a ausência de um programa nacional de provimento de tratamento gratuito, além de também ser marcado pela existência – em vários estados – da exigência legal de disclosure (revelação do sorostatus) para o parceiro ou a parceira. Nos Estados Unidos, o dispositivo da aids ainda opera trazendo ao discurso a “verdade” sobre os sujeitos, o que é visível na grande importância atribuída à condição sorológica por sites de busca de parceiros. A política do teste não apenas divide com um cordão sanitário os “saudáveis” dos “contaminados”, mas também incentiva a seleção sorológica de parceiros, a qual frequentemente se caracteriza também pela evitação dos “positivos” pela grande maioria de “negativos” – ou melhor – “sorointerrogativos”, já que um status sorológico quase nunca é definitivo.
26 Durante sua pesquisa de doutorado, Pelúcio acompanhou o trabalho preventivo desenvolvido pelo projeto Tudo de Bom, alocado junto à agência pública de saúde DST/AIDS Cidade de São Paulo, da Secretaria Municipal de Saúde, e voltado para trabalhadores do sexo que atuam na capital paulistana, valendo-se da “educação entre pares” como recurso metodológico de intervenção.
27 Valor que deve ser pago à cafetina referente à moradia e à proteção na rua.
28 Em nossa cultura somática, a medicina é a responsável por uma nova ontologia de nós mesmos, forjada em uma associação em que o visível é o real e se crê o verdadeiro, daí a ascensão progressiva das tecnologias de imageamento.
29 Sobre a violência cotidiana da vida de travestis que se prostituem ver Benedetti, 2005; Pelúcio, 2007; e Carrara & Vianna, 2006.
30 Em O Negócio do Michê, de Perlongher (2008), o termo “maricona” aparece relacionado ao cliente “enrustido”, aquele que não “assume” sua homossexualidade, o que o estigmatiza e deprecia. Relação semelhante se vê nas classificações que as travestis desta pesquisa fazem à clientela.
31 Antes da popularização da internet, Fernando Seffner desenvolveu pesquisa sobre a formação de relações entre homens por meio de contato postal. O pesquisador mostra em seu estudo como o advento da aids e a pauta preventiva contribuíram para a emergência da identidade do homem bissexual no contexto brasileiro (vide Seffner, 2004).
32 Os clientes das travestis só se tornam alvo da prevenção quando tidos como “corpos nômades”: caminhoneiros e garimpeiros, por exemplo. Estes dois segmentos, definidos pela atividade laboral, são homens que vivem um distanciamento da casa e vivenciam uma sexualidade não controlada nos espaços convencionais, o que poderia eventualmente levá-los a práticas consideradas como “de risco”: sexo com prostitutas e travestis; sexo anal e oral; sexo precedido de ingestão de bebida alcoólica. Todas estas práticas, se não reguladas por campanhas e discursos disciplinadores, sugerem o sexo sem camisinha, justamente por serem vivenciadas em contextos de exercício da masculinidade, no qual o preservativo é visto como barreira ao prazer e à espontaneidade do ato (Medeiros, 2003; Tamayo et al., 2001).
33 Uma técnica de prevenção do projeto Tudo de Bom relatou ter conhecido uma travesti que por estar tomando muito hormônio feminino estava produzindo leite. O fato desta travesti ser soropositiva preocupava a técnica pois, como ela já havia ouvido falar muitas vezes, os clientes gostam de sugar os seios das travestis durante a relação, o que trazia a necessidade de se pensar em mais uma prática preventiva que, como se percebe pela fala que se segue, deveria ficar a cargo exclusivamente da travesti: "Lembro que ela, muito dolorosamente, deixou de tomar hormônio pra ver se evitava um pouco a produção de leite. Esse aí foi um outro problema, porque aí ela ia mudar o corpo dela rapidamente, por causa do HIV, porque teve de parar com os hormônios" (Durante reunião de supervisão técnica, ocorrida em 04/04/2005. Grifos nossos).
34 Curiosamente, a ausência deste diálogo, de políticas governamentais mais articuladas e o retorno poderoso de discursos reacionários sobre a sexualidade criaram as condições propícias para a emergência, nos Estados Unidos, da teoria queer. Desde o seu aparecimento no final dos anos 1980, o queer constituiu-se em resposta crítica aos estudos socioantropológicos sobre minorias sexuais, ao denunciar como estes mantinham intocado o pressuposto da heterossexualidade como natural e as normas heterossexistas como sinônimo de ordem social. Sobre a questão consulte Miskolci, 2009.