Sexualidad, Salud y Sociedad

REVISTA LATINOAMERICANA


ISSN 1984-6487 / n.2 - 2009 - pp.97-120 / www.sexualidadsaludysociedad.org



Fé racional” e “Abundância”:

família e aborto a partir da ótica

da Igreja Universal do Reino de Deus


Edlaine de Campos Gomes

Doutora em Ciências Sociais

PPGMS/DFCS/UNIRIO


> edlaineg@gmail.com



Fé racional” e “Abundância”: família e aborto a partir da ótica da Igreja Universal do Reino de Deus

Resumo: Este artigo analisa as concepções de família, planejamento familiar e aborto no âmbito da visão de mundo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Duas noções fundamentais orientam suas crenças e práticas: “fé racional” e “vida em abundância”. No discurso institucional, a distinção entre “fé emocional” e “fé racional” é fundante e é constantemente acionada para demarcar a distinção entre a IURD e as demais igrejas. Nesta cosmovisão, a vida abundante é entendida como uma promessa feita por Deus e, portanto, não deve ser somente uma meta, mas também deve ser cobrada, a partir da ideia de um contrato estabelecido entre divindade e indivíduo. O fiel tem obrigação de buscar a abundância em função do compromisso assumido com sua crença. Deste modo, o planejamento do número de filhos constitui fator relevante para a realização dessa conquista. A partir de abordagem antropológica, são discutidas as formas de articulação entre essas diretrizes institucionais, sobretudo no que tange ao posicionamento da IURD, por meio de seu principal líder, em face do debate público contemporâneo em torno da descriminalização do aborto.

Palavras-chave: religião; Igreja Universal; aborto; planejamento familiar; família


Fe racional” y “Abundancia”: familia y aborto bajo la óptica de la Iglesia Universal del Reino de Dios

Resumen: Este artículo analiza las concepciones de familia, planificación familiar y aborto en la cosmovisión de la Iglesia Universal del Reino de Dios (IURD). Dos nociones fundamentales orientan sus creencias y prácticas: las de “fe racional” y “vida en abundancia”. En el discurso institucional. la distinción entre “fe emocional” y “fe racional” tiene carácter fundante y es accionada constantemente para demarcar la distinción entre la IURD y las demás iglesias. En esta cosmovisión, la vida en abundancia es entendida como una promesa hecha por Dios, y por tanto no debe ser sólo una meta, sino que también debe ser reclamada, a partir de la idea de un contacto establecido entre divinidad e individuo. El fiel tiene la obligación de buscar la abundancia, a partir del compromiso asumido con su creencia. De este modo, la planificación del número de hijos constituye un factor relevante para la realización de esa conquista. Se discuten, a partir de un abordaje antropológico, las formas de articulación entre esas directrices institucionales, especialmente en lo referido al posicionamiento de la IURD –a través de su principal líder– frente al debate público actual en torno de la descriminalización del aborto.

Palabras clave: religión; Iglesia Universal; aborto; planificación familiar; familia


Rational faith” and “Abundance”: family and abortion from the point of view of the Universal Church of the Kingdom of God

Abstract: In this article we analyze the concepts of family, family planning, and abortion, within the worldview of the Universal Church of the Kingdom of God (IURD, from its Portuguese acronym). Two fundamental notions guide members’ beliefs and practices: “rational faith” and “life in abundance”. The distinction between “emotional faith” and “rational faith” is a paramount to mark the difference between this and other churches. Abundant life is understood as a promise made by God; not just a goal, but something to be demanded on the basis of a contract established between divinity and individual. By the commitment to their faith, members of the congregation have the obligation to seek abundance. Thus, planning the number of children is a relevant factor in the path to such accomplishment. We use an anthropological approach to discuss the articulation of those institutional guidelines, particularly regarding the decriminalization of abortion, as voiced by IURG’s main leader.

Keywords: religion; Universal Church; abortion; family planning; family



Fé racional” e “Abundância”: família e aborto a partir da ótica da Igreja Universal do Reino de Deus



Introdução


Nos últimos anos o tema aborto vem ganhando maior visibilidade pública. É considerado crime pelo Código Penal brasileiro, exceto em condições específicas – risco de vida para a gestante e em situações decorrentes de violência sexual. A reivindicação de alteração nas leis que regem o assunto tem gerado controvérsias protagonizadas por determinados discursos “religiosos” e pelos movimentos sociais que defendem a autonomia das mulheres. A questão põe em evidência, além de posicionamentos discordantes, a heterogeneidade e a necessidade de exposição pública dos argumentos. Em outro momento (Gomes, 2009), observei que a resposta religiosa à questão do aborto comporta um duplo movimento: por um lado, tende a unir vertentes que, a princípio, apresentam divergências doutrinárias e se confrontam no espaço público; por outro, há posturas religiosas institucionais mais “abertas” ao debate em torno do tema. A premissa “vida é dom de Deus” é consenso: tanto impulsiona as ações dos “religiosos” quanto fundamenta as ações/reações contrárias à descriminalização das mais distintas instituições. No entanto, as respostas religiosas podem variar em intensidade e direcionamento, fato relevante para o diálogo mais amplo sobre a temática.1

Nota-se que manifestações públicas de determinadas igrejas promoveram a necessidade de novas considerações sobre as controvérsias em torno do tema. Três posicionamentos públicos distintos de igrejas evangélicas, em alguma medida favoráveis ao aborto, foram veiculados por diversos meios e parecem complexificar a discussão. Temas críticos como o aborto visibilizam a delimitação de fronteiras entre posições contrastivas. Neste contexto observa-se quase uma obrigatoriedade de manifestação pública dos posicionamentos oficiais das diferentes vertentes religiosas diante da importância da questão nos últimos anos. As igrejas Presbiteriana do Brasil, Metodista e Universal do Reino de Deus desempenharam um papel relevante ao apresentaram argumentos e respostas públicas em torno do tema. Com isto, produziram uma complexificação das posturas das instituições religiosas cristãs acerca do aborto, diversificando aquela pautada no repúdio a este procedimento em qualquer circunstância, sob a alegação de que o “início da vida” se dá desde a concepção (Gomes, 2009).

Embora o discurso majoritário – ou pelo menos aquele mais visível – seja o de oposição às tentativas de descriminalização quanto à “inviolabilidade da vida”, a aparente homogeneidade é desvelada quando há pronunciamento público sobre o tema.2 Sensíveis diferenças se apresentam quanto ao entendimento e à postura adotados pelas respectivas instituições, além das mais distintas posições, assumidas individualmente por seus membros, como é notório inclusive no catolicismo. Esta característica também pode ser referida aos parlamentares-religiosos, que tanto assumem as diretrizes institucionais, as orientações partidárias ou, ainda, seguem disposições pessoais acerca do aborto, desconsiderando posições religiosas oficiais (cf. Duarte et al., 2006).3 O valor moral compartilhado é o que reconhece a vida humana como um bem, mas não como um bem intocável.

Em 2007, a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), embora tenha se manifestado contrária à descriminalização, abre um precedente sobre a interrupção da gravidez em casos de risco de morte materna – já prevista no sistema jurídico. Maior abertura é explicitada no pronunciamento proferido, também em 2007, pelo Colégio Episcopal da Igreja Metodista sobre a tramitação do projeto de lei 1.135/91. Este reitera o significado da vida e da família cristã – e nesta, a regulação da sexualidade e da reprodução – mas ratifica práticas referentes ao planejamento familiar promovidas pela medicina. Há também maior flexibilidade em relação aos abortamentos, admitindo a interrupção da gestação em casos decorrentes de estupro, de risco de vida da mulher e em casos de má-formação incompatíveis com a vida extrauterina. Outro posicionamento, também conhecido, é o da Igreja Universal do Reino de Deus – expresso por sua principal liderança – publicamente favorável ao aborto em certas circunstâncias: estupro, risco de morte materna, anomalias fetais e dificuldades econômicas. Tais “aberturas”, contrapõem-se à principal diretriz das “frentes religiosas contrárias à descriminalização, presentes no âmbito do Parlamento, que consideram e propõem nova regulamentação que trate como “crime hediondo” todas as modalidades de abortamento.

Neste artigo, enfoco o posicionamento público da Igreja Universal do Reino de Deus,4 em específico, em torno do tema do abortamento de acordo com a leitura individual de sua maior liderança, o bispo Edir Macedo. Não é possível compreender os nexos entre aborto, família, planejamento familiar e IURD sem uma articulação com sua visão de mundo. No trecho destacado acima, nota-se que Macedo chama a atenção para o uso da “fé inteligente” diante da questão do aborto, desejando a todos que recebam abundância de bênçãos de Deus. Proponho discutir esses temas à luz de elaborações “nativas” centrais que orientam crenças e práticas desta igreja: “fé racional” e “vida em abundância”. A distinção entre fé “emocional” e “racional” é fundante no discurso institucional, sendo constantemente acionada para demarcar a diferença entre a IURD e as demais igrejas.

A vida em abundância e o circuito da conquista


A retórica da IURD enfatiza a superação dos obstáculos, principalmente identificados como perseguições, para alcançar a conquista da “vida em abundância”. Nesta concepção, não há lugar permanente para a perda nem para o sofrimento. Embora esta igreja se considere perseguida por vários segmentos da sociedade – que, em muitas ocasiões, apostaram em seu declínio – não fundamentou seu ideário somente nesta concepção. A ideia central referia-se à perseguição como passagem, o que não impedia o crescimento e a expansão da igreja, enfim, “a conquista”. A condição de excluídos e perseguidos5 não é um elemento novo no campo evangélico. Este tipo de retórica marca um traço de distinção identitária. Neste contexto, a perseguição é imediatamente associada ao sofrimento compartilhado pelos evangélicos, que historicamente se configuram como minoria religiosa, uma “comunidade de sofrimento” (Mafra, 1999:23). Para a IURD, no entanto, a memória das perseguições desempenha um papel importante: sobretudo o de lembrar que elas foram ultrapassadas e, caso ocorram novamente, saberão tratar-se de uma etapa a ser cumprida no caminho da “vitória”.

A “retórica da superação” (Gomes, 2004)6 é de extrema relevância, sendo amplamente acionada na materialização do projeto de consolidação institucional, especialmente após 1995. A partir de então houve maior investimento na concretização do que denominei “circuito da conquista”. Esta elaboração – composta pelas categorias perseguição, revolta, sacrifício e conquista – permitiu compreender o que move a IURD: a vitória e a superação.

Uma característica importante concerne à identificação, na retórica da IURD, de uma preocupação com a filiação religiosa de seus membros,7 envolvendo temas como compromisso e fidelidade. A atitude e o diferencial desta igreja consistem no fato de ela assumir e estimular a prosperidade financeira. O dinheiro atua como mediador-ritual necessário em seu sistema cosmológico, segundo o qual aquele que realmente exerce a “fé em ação” consegue “viver em abundância”. Esta postura é uma marca explícita de sua identidade religiosa, seguindo argumentos bíblicos que justificam a prática de negociar com Deus, como fica claro neste trecho:

Quando nos aliamos a Deus, ficamos compromissados com Ele, e Ele, conosco. Passamos a pertencer a Ele e caminhamos juntos d’Ele da mesma maneira que Adão e Eva faziam antes de desobedecerem, vivendo em abundância de vida e tendo supridas todas as suas necessidades. [...]. Coloque-se à Sua disposição com tudo o que você tem e comece a participar de tudo o que Deus tem também! (Macedo, 1998).


Ao concluir seu artigo, Macedo deixa claro o papel proposto para o fiel, não apenas um coadjuvante, mas sobretudo um agente atuante, integrado ao circuito e responsável por seu próprio projeto rumo à abundância. A questão da posse8 e da conquista de bens materiais não se restringe a estes aspectos: não somente está explícita como constitui parte fundamental do discurso e da lógica da igreja. De fato, trata-se de um de seus principais atrativos, na medida em que os fiéis também podem buscar a saúde financeira. Este discurso é muito significativo, já que a maioria dos integrantes da igreja provém de classes mais pobres,9 embora tal tipo de pregação seja bem acolhido também pelas chamadas camadas médias. As palavras de Macedo reforçam esta direção:

Receba a autoridade, a autoridade, em nome do Senhor Jesus, sobre todo o mal. Recebe o poder de Deus neste momento, que a sua fraqueza se transforme em força, você deixa de ser fraco para ser forte. Seja um vencedor a partir de agora. Em nome do Senhor Jesus. Se você está passando por momentos difíceis, lembre de mim. Eu não fui perseguido? Fui ou não fui? Muitos que me odiavam estão aqui hoje, agora, neste momento. É ou não é? E eu tô aqui. Já pensou a Globo contra a gente? Eu tô aqui! Então, lembre-se de mim, do que eu passei. (bispo Macedo, sede mundial, 07/07/2003).10


A autoridade, o tomar para si a responsabilidade pela condução das próprias trajetórias – evidentemente guiadas pelo compromisso com a instituição religiosa – é o motor central do discurso de Edir Macedo. O sentimento de pertencimento e a participação efetiva nos projetos e campanhas propostas pela igreja vêm ao encontro do discurso oficial da IURD. A instituição investe em sua consolidação, enfatizando a necessidade de os membros assumirem um “compromisso com Deus” por meio de uma ligação mais forte com a instituição religiosa, pela participação no batismo, na oferta, nas correntes e no proselitismo.

A perseguição mencionada na fala do bispo integra o sistema de categorias citado anteriormente que, articulados, dão significado ao que nomeio de circuito da conquista. Um estado permanente de alerta em face das intervenções do “demônio” é necessário, o que justifica a pregação sobre o compromisso e a lealdade àquele que julgam ser mais poderoso: “Deus”. Igreja e fiéis devem compartilhar assim de uma mesma ótica, buscando distinção e conquistas. Esta perspectiva emergiu do discurso pronunciado por Edir Macedo na época da comemoração dos 25 anos da IURD, na sede mundial da igreja, no Rio de Janeiro:

A Igreja Universal do Reino de Deus não nasceu para ser mais uma igreja, mais uma denominação, porque nós não aceitamos ser mais uma, mais uma entre milhões de crentes que estão por aí afora (bispo Macedo, sede mundial, 2003)


No início de sua pregação, destacou que estava ali para “falar para os excluídos”. A partir de seu exemplo, eles jamais deveriam aceitar esta condição. Para o bispo há duas formas, entrelaçadas e possíveis, de tomada de atitude, capazes de transformar uma vida de “excluído” em uma “vida em abundância”. A primeira envolve o “desafiar Deus”, que tem a obrigação de prover os seus “filhos”.


Ou ele é ou não é. Se ele é meu pai, então, vai ter que mostrar que é. Se não é, então, está errado comigo” (idem).


A segunda atitude consiste na ação racional do membro da IURD, com uma percepção de si próprio como o centro das mudanças a serem realizadas. Embora se trate de uma atitude individual, o discurso formulado – não apenas o divulgado nesta pregação – é permeado pela ideia de que o meio para alcançá-la é a adesão religiosa, a atuação como membro efetivo e praticante, pelo “compromisso com Deus”. Nesse sentido, há uma articulação entre a capacidade subjetiva e de reflexividade do crente e a objetividade do discurso de racionalidade empregado pela igreja.

Como estratégia retórica foi utilizada uma metáfora, na qual o crente era posicionado ora no lugar do “sol”, ora no da “lua”. Para Macedo, aquele que se coloca diante do mundo como coadjuvante, “vivendo na luz de outra pessoa” – como a lua – não está pronto para “conquistar”. É um perdedor, pois não coloca em prática os ensinamentos e o poder de Deus. Já aquele que busca uma “luz própria”, acreditando ser o sol, consegue estabelecer um contato direto com Deus, sem intermediação, e assim pode alcançar a conquista. Este indivíduo-sol só estará completo quando praticar a “fé em ação”, assumindo a autoridade concedida por Deus à época da criação.

Mas você não tem que ser a lua, nem lua cheia. Mas você tem que ser o próprio Sol. Ter luz própria. Viver com suas próprias pernas. Conquistar pelo seu próprio mérito, pelo seu próprio esforço. Independentemente de fulano, de cicrano ou beltrano. Não depender, não depender de político, não depender de patrão, de empregado, não depender de marido, não depender da mulher, nem do pai, nem da mãe, nem do filho. Não depender de ninguém! Depender somente de Deus. Isso é ser o Sol (Macedo, sede mundial, 2003)


O princípio da autoridade (Durkheim, 1975) é resgatado como fonte essencial para o combate às barreiras produzidas pela “vida no mundo”, processo que deve ser superado para que se atinja uma “vida em abundância”. Nas entrevistas realizadas, esta ideia foi referida repetidamente. Como exemplo, um relato no qual uma entrevistada declara ainda se defrontar com barreiras em sua casa devido à sua conversão: todos acreditam que, por ter se tornado “crente”, deva se comportar como um “carneirinho”, repetindo “aleluia!” e “amém!” para tudo. Contudo, não foi isto que aprendeu na IURD: “Ela [a IURD] ensina que as pessoas têm que ter um lugar no mundo e serem respeitadas. Temos que andar de cabeça erguida” (membro da igreja, entrevista concedida em 2002).

O discurso de Macedo evidencia o processo de conquista desse “lugar no mundo”. O primeiro passo para a transformação, para o caminho da prosperidade, segundo o bispo Macedo, é o sentimento de revolta.

Espírito santo eu te peço. Eu te suplico. Plante no coração de cada uma dessas pessoas a semente da revolta. A revolta. A ira. Espírito põe revolta dentro desses corações para não aceitar essa situação desgraçada, decadente, mesquinha, em que estão vivendo (bispo Macedo, sede mundial, 2003).


A revolta é uma tomada de atitude, contraponto da acomodação, da emoção e da contemplação. Ela somente terá um sentido quando o indivíduo adquirir a autoconsciência relativa à sua condição no mundo, mediada pela certeza do batismo no espírito santo, principal mecanismo de reconhecimento da conversão. Em certo momento de sua pregação, Macedo chama a atenção para o perigo de uma vida contemplativa: não se vai à catedral para contemplar. Seu maior desejo era que todos saíssem da igreja contagiados pela revolta e pela “ira”; embora ambos os sentimentos sejam provocados pela emoção, o discurso institucional da IURD refuta sua importância. A ênfase está centrada em uma “fé racional”, destituída de qualquer influência emocional.

A outra etapa é o sacrifício, tema de um capítulo do livro de doutrinas da IURD (Macedo, 1999). O autor retoma seu significado bíblico: o caminho mais rápido para alcançar o objetivo de todo crente: a “vida em abundância”. Sua narrativa foi ilustrada por três passagens bíblicas retiradas do Antigo Testamento. Na primeira, o sacrifício de um animal, realizado por Deus, para cobrir Adão e Eva, por sua desobediência. Eles se encheram de vergonha. A seguir, discorreu sobre as ofertas de Caim e Abel a Deus: a que “mais agradou a Deus” foi a de Abel, pois ele ofereceu um animal em sacrifício. O terceiro exemplo foi o de Abraão: a oferta de seu filho único a Deus.

Estas ilustrações invocam a necessidade de mediação entre os homens e a divindade por meio de rituais sacrificiais, que contam com atitudes de obediência e desprendimento. Críticas as mais variadas são expressas às demais igrejas cristãs pela “acomodação” diante das intempéries do mundo, suscitada pela crença no livramento dos pecados através do sacrifício do filho de Deus. Elas não realizariam mais suas obrigações e, portanto, não crescem tanto quanto a IURD.11 Em suma, o sacrifício consiste em um ritual de passagem, sem o qual não é possível a conquista. A partir da ótica da IURD, a obrigação de cada fiel para manter a salvação é renunciar e pagar dia a dia por ela. Acreditar que se está livre de realizar um sacrifício seria uma “acomodação da fé”, o contrário do pregado pela igreja: a “fé em ação”. Nas palavras do bispo Macedo:

Você vai aprender quem você é a partir do momento que você é levado ao sacrifício. Você só vai se conhecer, ou conhecer as suas forças, se você for levado ao sacrifício. Só vai conhecer a si próprio, a sua fé, seu relacionamento com Deus, quando você for levado a uma situação que vai requerer de você a expressão daquilo que está dentro de você. Entende onde eu quero chegar: sim ou não? Enquanto a sua vida está boa, um dia as coisas vêm, em outro não, vai vivendo mais ou menos, vai empurrando com a barriga, você não conhece a sua força, você não conhece a si próprio. Eu digo força em relação às situações da vida. Mas quando você é levado a uma situação crítica, extremamente crítica [...] entende o que quero dizer, sim ou não? É aí que você vai manifestar, é justamente naquele momento de profunda angústia, aflição é que você vai manifestar o seu verdadeiro caráter, ou a sua verdadeira fé12 (bispo Macedo, sede mundial, 2003).


Desta forma, o crente só consegue perceber o significado do sacrifício para a transformação de sua vida quando está exposto a uma situação-limite,13 expressa de forma mais acentuada na principal campanha da IURD, a “Fogueira Santa de Israel”, na qual aquele que “sacrifica o seu tudo” ingressa em um circuito de desafios. Neste ritual, o grande desafio proposto pela igreja é romper com os limites, o que demanda o desprendimento de sacrificar tudo aquilo que se tem em confiança na transformação da vida. Neste caso, o sacrificante expressa não apenas o desprendimento e a certeza de sua fé, como também a confiança em todos que integram o ritual do sacrifício. Por outro lado, é preciso um desafio interno daquele que entra no circuito, com a atitude de dar “seu tudo”. O circuito se completa com o desafio a Deus, para cumprir sua “promessa de vida em abundância”.

A partir da perspectiva da IURD, a emoção é capaz de intervir negativamente no percurso daquele que ingressa no circuito da conquista. Um combate a atitudes emocionais deve ser efetuado. Tanto a racionalidade quanto a emoção foram acionadas nas críticas direcionadas à igreja: a razão financeira associada aos dirigentes e a emotividade como chamariz para os fiéis. O discurso institucional, por mais paradoxal que pareça, baseia-se na ideia de “fé em ação” nos moldes weberianos. Sacrificar só é possível mediante uma conduta racional. A racionalidade corresponde à certeza da fé, portanto, o que é certeza não pode ser emocional. Retomando a pregação do bispo Macedo, pronunciada na comemoração do “Jubileu de Prata”:

Preste atenção: qual é o segredo da conquista? Preste atenção. Você tem que (agir racionalmente). Você tá emocionado? (discordando dessa postura). Com sua mente funcionando, não é verdade? Com sua razão em pleno direito da razão, não é verdade? Então, preste atenção. Nunca mais na sua vida conte para quem quer que sejam os seus planos. Nunca conte da sua riqueza. Porque se você conta da sua fraqueza, dos seus problemas, você está buscando com a emoção. Você está buscando que a pessoa tenha pena de você. Se você está buscando isso, então você não vai conquistar. A sua fé Deus tem conhecimento, só que ela é sua. [...] A emoção não leva a nada. Não me importa sentir se Deus está aqui presente ou não, porque eu tenho certeza disso (bispo Macedo, sede mundial, 2003).


Sabe-se da importância do testemunho nos rituais da IURD. No entanto, nesse plano argumentativo, o testemunho público perde seu sentido pedagógico e exemplar, assumindo um papel secundário no processo de conversão, que estaria centrado apenas no indivíduo. A certeza conduzirá à conquista. É preciso se concentrar no que se almeja e ter confiança de que será recompensado. Este circuito da conquista consiste em estímulo à elaboração de uma autoconsciência, na qual aquele que participa dessa dinâmica reelabora sua postura, de forma ampla, em relação à instituição e aos outros membros da igreja – em relação ao mundo. Somente a partir desta tomada de consciência, descrita na leitura nativa como um processo racional, será possível uma determinação, que é necessária para a conquista. Emerge, desta forma, a autoridade individual de conduzir as ações no mundo.14



O alicerce familiar”: casamento e planejamento familiar


Sem família, não há igreja, não há sociedade, não há país. Por isso, para pregar a Palavra de Deus, a condição, depois da conversão ao Senhor Jesus, é Ter uma família estruturada, com base no casamento (IURD, Jubileu de Prata, 2003:69).


Em observação etnográfica da chamada “Corrente da Família”, que ocorre às quintas-feiras, foi possível notar que as pessoas que participam da reunião levam retratos, roupas, objetos de uso pessoal dos seus familiares e outros itens para os representarem diante de Deus durante as orações. A “corrente” objetiva a restauração familiar e a busca de “harmonia” por intermédio de orações. Tais metas seriam fruto da experiência religiosa de toda a família, de maneira que cada membro da igreja deve orar para a conversão de todos integrantes do grupo familiar, pois somente desta forma a verdadeira “harmonia” poderá ser conquistada. Assim, é preciso manter o casamento vivo, já que o relacionamento conjugal é o termômetro que mede a espiritualidade do homem de Deus” (Crivella & Rodrigues, 1997:60). Para que isto ocorra, “o homem de Deus tem que ter o seu leito imaculado, mas sempre em atividade, para não cair na cama do diabo” (idem:57).

No discurso institucional, duas categorias são acionadas quando se trata de família: casamento15 e planejamento familiar. No primeiro caso, os membros são orientados a encontrar parceiros no interior da própria igreja ou entre as demais igrejas evangélicas. Não é proibida a união entre pessoas de religiões diferentes, mas o que fica claro é que aquele que pertence à IURD deve colocar “sua fé em ação”, para que o parceiro “aceite Jesus”. Entretanto, a força da família e a “harmonia familiar” devem ser mantidas, inclusive em detrimento da igreja, o que pode ser ilustrado pela orientação dada a uma fiel na seção “O bispo responde”, do Jornal Folha Universal (08/08/1999:3A).

Dúvida sobre o dízimo

Bispo, sou membro da IURD e gostaria de tirar uma dúvida sobre o dízimo. Meu esposo ainda não vai à Igreja e não aceita que eu pague o dízimo. Eu não trabalho e ele entrega o salário em minhas mãos para as despesas. O que devo fazer se o dízimo é 10$ de tudo o que ganhamos? Ajude-me, pois não quero roubar de Deus.


Amiga duvidosa

A Bíblia diz que a mulher sábia edifica a sua casa. Sabemos que o ato de dizimar é uma questão de fidelidade e fé, entretanto, no seu caso, seria mais importante você obedecer ao seu marido e lhe ser submissa do que sacrificar, dando o dízimo escondido e mais tarde dar vazão a discussões e desentendimentos entre vocês. A Bíblia diz que o marido incrédulo é santificado pela esposa convertida (leia 1 Coríntios 7.14). Ore, para que Deus quebrante o coração dele e ao mesmo tempo o abençoe.


Tanto a pergunta quanto a resposta indicam tensões: o duplo caráter da mulher, submissa ao marido, mas portadora do papel de santificação da família; e a fidelidade conjugal, com maior preeminência em relação à fidelidade institucional. A IURD elaborou perfis distintos para a “esposa do homem de Deus” e para o “homem de Deus”:

O ministério da mulher de Deus é cuidar do marido, dos filhos e da casa, como se estivesse servindo ao Senhor. O ministério do marido é servir ao Senhor como se estivesse cuidando da mulher, dos filhos e da sua própria casa, dos filhos, onde realmente deve começar o seu ministério (Crivella & Rodrigues, 1997, p.51).


Embora a submissão das esposas a seus maridos se trate de uma orientação importante, alguns autores, como Machado (1996), ressaltam a questão da autonomia e da valorização da mulher nesta igreja. É inegável a tensão entre autonomia e papel feminino na família. Há reconhecimento e investimento em relação à inserção da mulher no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que se ratifica sua posição de ordenamento da casa, esta como lugar da família.

A mulher desempenha um papel importante na família. Ela educa os filhos para serem homens de fé, cuida do marido, da casa, ajuda muitas vezes no sustento do lar, enfim, vive um dia-a-dia agitado. Porém, o diferencial da mulher de Deus é que ela faz tudo com a direção do Senhor. Lares que seguem os planos de Deus são lares que prosperam e usufruem das bênçãos divinas. Sabendo disso, a mulher que teme a Deus está sempre em comunhão com o Senhor, pedindo sabedoria para alcançar o sucesso familiar [...] A mulher temente é uma mãe atenciosa, uma esposa que preza e honra seu marido, que dá bom testemunho mantendo limpa e em ordem sua casa, e que ainda consegue ir para o trabalho e executar bem suas tarefas. A Bíblia sempre exaltou a mulher que age corretamente. (http://www3.arcauniversal.com.br/mulher/integra.jsp?codMateria=114170&codCanal=104, acesso em 08/07/2009).16


O desempenho da “mulher de Deus” engloba sustento, comunhão, cuidado (casa, marido, filhos). Extrapola os domínios da casa, no sentido puramente tradicional, vai além desse lugar, para o espaço público (mundo do trabalho). No entanto, essas características múltiplas somente conduzirão a família ao sucesso e à prosperidade se a mulher estiver em consonância com os princípios religiosos: ser temente a Deus, mãe atenciosa e esposa honrada.

A preocupação institucional com o planejamento familiar17 entre seus membros constitui outro elemento significativo, estimulando e orientando no que tange à necessidade do uso de métodos contraceptivos, como DIU, pílula, preservativo etc. Esta postura é tão significativa a ponto de possuir registro no livro comemorativo dos 25 anos da IURD.

A IURD orienta os casais a programarem o número de filhos e, em alguns casos, a terem consciência de que é melhor não tê-los (Jubileu de Prata, 2003, p.72).


O tipo de orientação que estimula o uso dos métodos contraceptivos18 entre seus membros representa um aspecto significativo a ser aprofundado, uma vez que demonstra uma postura distinta da leitura fundamentalista do texto bíblico. Na mesma medida, cabe observar que a questão do planejamento familiar é inerente à noção de “harmonia familiar”, aparecendo em seus registros oficiais desta maneira. Na seção do jornal Folha Universal, denominada “O bispo responde”, assinada por diferentes bispos da igreja, com frequência há perguntas realizadas por mulheres integrantes da igreja sobre uso de DIU e outros métodos contraceptivos, além de masturbação, namorar pessoas de fora da igreja, infidelidade, distinção entre amor e paixão, entre outras. Em geral, as respostas relativas ao uso dos métodos contraceptivos conferem relevância ao caráter médico da situação, com a sugestão de busca por informações profissionais. Evidenciam, no entanto, que não se trata de ato pecaminoso o uso de métodos relacionados ao planejamento familiar.



Aborto e a “vida em abundância”: considerações sobre o posicionamento iurdiano


Sobre o aborto: Eu sou a favor do aborto. Não é que eu ache que toda grávida deveria abortar, mas acho que nem toda grávida tem condições de ter um filho. Podemos considerar esse assunto sobo ponto de vista socioeconômico, do ponto de vista da fé ou do ponto de vista emocional. E como quase tudo na vida se esclarece ao perguntar… eu pergunto: Qual a camada da sociedade [em que] o índice de crescimento populacional é mais acentuada e por quê? A quem interessa a multiplicação desordenada de seres humanos? Quem ganha e quem perde? Por que muitos são contrários ao aborto dos outros enquanto eles mesmos o promovem às ocultas? Por que a mesma consciência que condena o aborto despreza os filhos gerados à revelia? Qual a chance de uma criança abortada perder a salvação de sua alma? Qual a chance de uma criança chegar à idade adulta perder a salvação de sua alma? Quando somos sinceros ao responder essas perguntas, a questão sobre o aborto não parece mais tão errada como se pregam. Dizer que o aborto é gerado pela falta de temor a Deus, nem sempre é verdade, pois e em casos de estupros, ou defeito etc.? Com ou sem aborto a promiscuidade continuará. Ora, vamos usar a nossa fé inteligente – é muito confortável para os que têm condições serem contra o aborto, mas e aqueles que passam fome, o que será deles com mais um filho para sustentar? Deus abençoe a todos abundantemente (bispo Edir Macedo – http://www.bispomacedo.com.br/blog/ – postado 10/10/2008)


Ainda sobre o aborto: Não é minha intenção propagar aborto. Embora a Bíblia ensina que: Se alguém gerar cem filhos e viver muitos anos, até avançada idade, e se a sua alma não se fartar do bem, e além disso não tiver sepultura, digo que um aborto é mais feliz do que ele (Eclesiastes 6.3), ainda assim, não sou a favor do aborto indiscriminado. Mas sou a favor da preservação das mães que, por falta de temor a Deus ou infantilidade, entregaram seus corpos ou foram estupradas e acabaram engravidando sem nenhuma condição de ser mãe. Isso sem falar das crianças que, ao invés de curtirem a infância com bonecas, acabam sendo vítimas de pedófilos dentro de casa. Além disso, as mães que têm usado suas crianças para se prostituírem por míseros reais… Isso sem falar daquelas que têm sido usadas por traficantes e formadas bandidas para tirar a vida de inocentes e têm tornado nossa sociedade num risco constante de vida. Quando uma criança é gerada sem pai já é um problema grave. Imagine essa criança, sem mãe e sem pai? Certamente vai crescer com ódio da sociedade e se voltar contra tudo e contra todos. Ora, nesses casos específicos não seria melhor o aborto oficial amparado pelo Estado sem risco de vida para as mães? Porque o feto abortado já é salvo. Mas e a mãe? E se ela morre numa clínica de fundo de quintal por causa do aborto? O que será de sua alma diante de Deus? Portanto, entre um aborto seguro e o risco da perda de vida da mulher numa clínica clandestina, eu prefiro que haja o aborto oficial. É esse o tipo de aborto a que me refiro e que não fere minha fé! Mas quem tem interesse contrário ao aborto? O Clero Romano que vive da miséria alheia, abarcando enormes somas de dinheiro público para suas “santas casas” e afins, em nome das obras sociais. Eles têm sido contra o aborto até de crianças sem cérebro… Sob o pretexto estúpido de que o sofrimento purifica o ser humano, conforme declaração do obstetra católico dr. Dernival Brandão no STF. E o argumento de que a criança vem de Deus é uma tremenda heresia. Se assim fosse, então Deus seria um monstro. Pois quando a criança nasce de um estupro, por exemplo, essa criança veio da vontade de Deus? E o que falar do anticristo que nascerá de uma mulher? Seria ele de Deus ou do diabo? Minha gente, vamos usar a fé com inteligência e não na base de emoção, do contrário nunca seremos um país de primeiro mundo. Deus abençoe a todos (bispo Edir Macedo – http://www.bispomacedo.com.br/blog/ – postado 13/10/2008).



Diversos autores vêm analisando a IURD e seu papel na sociedade brasileira contemporânea, sua postura pública e as controvérsias públicas em que atua como protagonista, marcadamente a partir dos anos 1990 em diante (Freston, 1996; Almeida, 1995; Mafra, 1999; Birman & Lehmann, 1999; Giumbelli, 2002; entre outros).19 Vista como controversa, mas também reconhecendo sua importância na reconfiguração do campo religioso,20 tal literatura aponta como características fundamentais desta igreja: participação na política; investimento na mídia; “guerra santa” com as religiões afro-brasileiras e com a Igreja Católica; centralidade do dinheiro. Em se tratando do posicionamento específico da IURD sobre a temática do aborto, há grande ênfase na contrastividade com a instituição católica como principal motor de sua postura favorável à descriminalização (Machado, 2000; Machado & Fernandes, 1999). Acrescento que há enfrentamento sim, mas não se trata meramente de uma oposição que segue o fluxo da visibilização do embate. Sugiro que seu posicionamento público repercute as ideias centrais constantes no rol das orientações institucionais fundantes. Parece incompleta a explicação do discurso da IURD sobre planejamento familiar e aborto como produto de sua busca de oposição pública à Igreja Católica. O entendimento de que as identidades são construídas na dinâmica com os “outros”, como enfatizam distintos autores (Oliveira, 1976; Pollak, 1992), não induz a uma redução das elaborações específicas dos grupos em questão.

No que concerne à IURD, apresenta-se a adoção de uma postura fortemente norteada pelas noções de “fé racional” e “vida em abundância”. O planejamento familiar destoa dos discursos tradicionais, já que está previsto inclusive na orientação institucional, sendo adotado como recurso racional para o alcance dos objetivos de uma família plena. A visibilização do posicionamento favorável à descriminalização do aborto adotado pelo líder da IURD ganhou força em 2007, embora este tenha ficado notório já nos anos 1990 (Machado, 1998). Vale lembrar que esta igreja foi fundada no final da década de 1970, em pleno movimento de redemocratização do país que culminaria com a promulgação da Constituição de 1988. Com crescimento vertiginoso desde então, vem desempenhando papel de liderança, com expressiva influência sobre as igrejas evangélicas, ainda que isto não signifique ampla aceitação de suas práticas – muitas vezes tidas como “impuras” pelo próprio campo religioso no qual está inserida.

A opinião de Edir Macedo sobre o aborto é mencionada na análise dos dados da pesquisa “Novo Nascimento” (Fernandes, 1998), empreendida por Cecília Mariz (1998). Apesar de constar como uma opinião pessoal, com peso significativo, uma vez que se trata do principal líder de uma das igrejas que mais crescem no país, tal postura parece não ser discrepante quando comparada aos 60% dos evangélicos entrevistados pela investigação referida, os quais aceitavam este procedimento, ainda que apenas em casos especiais. Mariz (1998:219) também apontou, ao comparar o grau de instrução com a aceitação ou a recusa do aborto, que “quanto maior a instrução menor a rejeição ao aborto em geral” (1998:219). Neste ponto é possível realizar uma conexão, ainda que imprecisa, com a ideia iurdiana de que:

a consciência da necessidade do planejamento familiar é fruto de um padrão de vida e nível educacional mais elevados, na mesma proporção que a desinformação leva as famílias a terem muitos filhos, mesmo sem condições de cuidar deles (Jubileu de Prata, 2003:72).


Um dos principais elementos do discurso da IURD consiste nas noções de que a vida deve ser abundante e que seus membros não podem se conformar com a pobreza. Não é possível desconsiderar que a maior parte dos membros da IURD pertence às “classes populares” e que a igreja prega a “vida em abundância”. Mas também não se pode desconsiderar que o discurso da prosperidade está diretamente relacionado à capacidade de superar as barreiras, principalmente as de classe, processo empreendido por meio da contenção, da vida regrada, da disposição para o trabalho, da constituição formal e moral de uma família (Weber, 1992).21 A articulação entre estas diretrizes e a necessidade de planejamento familiar é visibilizada com a incorporação do tema nos documentos institucionais. A informação concernente aos métodos de controle reprodutivo emerge como meta política, extrapolando os limites das orientações institucionais internas. Assuntos atinentes à reprodução podem ser amplamente encontrados em revistas, jornais e sites da igreja.

Indo além, repercussões na esfera política apresentam-se, por exemplo, o PLS 284/2006, proposto pelo senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), que sugere, dentre outras indicações, tornar obrigatório o ensino de educação sexual e “reduzir a idade mínima para o exercício da opção pela esterilização cirúrgica”.22 Embora tais projetos incorram em polêmicas, demonstram a relevância do tema para a IURD. Crivella, apesar de sustentar em seu discurso o caráter não segmentado de seu mandato – em entrevista (Astuto, O Dia, 27/09/08) afirmou não se considerar um “senador evangélico”, nem “candidato bispo” – não defenderia posicionamentos em oposição ao que prega a IURD.

Em outro momento, Crivella, em consonância com o discurso da liderança da igreja em relação ao planejamento familiar, defende que este seria um meio legítimo de combate à pobreza. Esta posição não contradiz o posicionamento da IURD. O público iurdiano pertence, em sua maioria, a camadas mais baixas, mas o discurso institucional destaca a possibilidade de ascensão social daqueles que se integram ao corpo da igreja. Espera-se que o “pobre” que se converte assuma a autoridade sobre sua própria vida, atitude ressaltada por Edir Macedo em discurso já mencionado. Esse processo de conquista da prosperidade, que supõe o afastamento da pobreza ou, ao menos, a possibilidade de conquistar ascensão social, tem como característica essencial revoltar-se contra a situação de pobreza vivenciada.23 No entanto, vale frisar que esse processo ocorre, necessariamente, com o vínculo à igreja: ser membro efetivo, congregante.

A posição favorável de Edir Macedo à legalização do aborto é amplamente conhecida pelos membros da IURD. Houve extensa divulgação – Folha Universal, Revista Plenitude, sites oficiais da igreja, blog pessoal de Macedo, entre outros – do documento por ele assinado que expressava, por perguntas e respostas, suas justificativas. Ao assumir esta postura pública, ele abriu caminho para manifestação de apoio e contestação. Em seu blog constam duas mensagens sobre o tema: “Sobre o aborto” e “Ainda sobre o Aborto”, alocadas na categoria “sociedade”. Estas repercutem o documento lançado por Macedo, “A fé e o Aborto”, no qual argumenta com passagens bíblicas que “o mandamento ‘não matarás’ não se aplica ao aborto de um ser que ainda não está formado. A Bíblia considera o feto como uma “substância informe” (Disponível em http://www.iurdportugal.com/mensagensdetalhe.php?textosid=143).

À primeira mensagem, postada em 10/10/2008, foram anexados 63 comentários de membros da igreja e de outros, e à outra, de 13/10/2008, 41. Em sua grande maioria, demonstram concordância de opinião sobre o aborto e apoiam a coragem de Edir Macedo, por defender publicamente tal posicionamento. As discordâncias também surgiram, em geral em mensagens de integrantes de outras denominações. No entanto, um interlocutor evidenciou sua insatisfação e afirmou que estava se desvinculando da igreja em decorrência de sua oposição a esta postura, até que houvesse uma revisão do posicionamento diante do aborto. O que importa é o fato de que a visibilização das opiniões sobre o aborto dessa liderança acarreta debates (e controvérsias), tanto entre os próprios membros da instituição, quanto entre outros segmentos sociais. Vale referir que, nesse contexto, o maior investimento no planejamento familiar emerge como ação significativa para o “combate” à prática do aborto. No entanto, este procedimento não é tido como solução final.

A consideração de que se trata de uma escolha privada e não passível de intervenção das instituições religiosas consiste em argumento relevante. Em Duarte et al. (2006), demonstrou-se que a presença do subjetivismo – preeminência da opção e da liberdade individual – perpassa distintas instituições religiosas, em especial o catolicismo e as igrejas evangélicas:

A suposta prevalência de um crescente subjetivismo nas atitudes religiosas, em todos os domínios confessionais, sublinha não só o subjetivismo genérico, subjacente ao processo de escolha, flutuação e trânsito inter-religioso, como também este outro, mais específico, de uma gestão da vida privada relativamente independente dos ditames religiosos, mesmo durante períodos de forte adesão (2006:19).


Ao se tratar de decisões consideradas individuais – sobretudo concernentes à reprodução e à sexualidade – em oposição às regras institucionais, o cultivo do segredo atua como estratégia primordial para o exercício da autonomia, especialmente quanto experimentadas além das fronteiras do grupo religioso em questão.24 A preocupação é dirigida no sentido de manter tanto o caráter individual quanto o pertencimento religioso e familiar (Gomes & Natividade, 2006). Mariz (1998) observa, no que tange ao aborto, que a religião não se configura como a única ou a mais importante variável na formação de opiniões dos evangélicos e de outros sobre o tema, o que indica a forte presença da dimensão da escolha individual no que concerne às decisões relativas ao corpo. Tal avaliação pode ser estendida a outras vertentes religiosas, como no caso de católicos com atitudes distintas das orientações oficiais (Ribeiro, 1994).

O discurso da principal liderança da IURD evidencia o caráter individual, fundado na noção de “fé inteligente”. A “substância informe” não suplanta o valor da vida da mulher. Neste sentido, a fundamentação dos movimentos sociais favoráveis à descriminalização do aborto é acionada, em especial a que define a questão como pertencente à saúde pública e não à esfera criminal, com ênfase na magnitude dos abortos efetuados e na morbimortalidade materna devido à sua ilegalidade. Outro ponto forte e polêmico dos argumentos de Edir Macedo refere-se à relação entre aborto e pobreza.

Não sou contra a concepção, por questão de fé. Mas, pela mesma razão, não sou contra o direito que a mulher tem de interromper o desenvolvimento do feto se suas condições não atenderem às necessidades básicas de uma criança [...] Do ponto de vista emocional, os argumentos são ainda mais fortes, principalmente por parte daqueles que conseguem criar os próprios filhos de forma adequada, isto é, sem deixar faltar-lhes pão, casa, educação e tudo o mais que é necessário ao desenvolvimento saudável da criança (Macedo, http://www.iurdportugal.com/mensagensdetalhe.php?textosid=143)


A busca pela “vida em abundância”, individual e familiar, é condição necessária à edificação da fé, assim como a transmissão desses valores. Ao questionar os aspectos socioeconômicos, religiosos e emocionais inscritos no debate sobre o aborto, Edir Macedo e outras lideranças da igreja utilizam categorias constitutivas da cosmovisão iurdiana, o que marca a distinção desta igreja no campo religioso, inclusive entre as neopentecostais. Nesta perspectiva, a efetividade do planejamento familiar e a descriminalização do aborto estão em consonância com a boa conformação da “família de Deus” concebida pela IURD.


Recebido: 06/dezembro/2008

Aceito para publicação: 29/abril/2009




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1 Nos anos 2000, a discussão sobre a descriminalização do aborto, com linhas de força favoráveis e contrárias, emergiu por meio de acalorados debates públicos. Alguns acontecimentos marcaram e conferiram ainda mais destaque e visibilidade à controvérsia. A visita do papa Bento XVI ao Brasil, em 2007, foi percebida, em parte, como integrante da estratégia de evidenciar o posicionamento católico oficial em relação à temática do aborto. Vale referir, também, o caso das controvérsias que cercaram o nascimento de Marcela de Jesus Galante Ferreira, inicialmente considerada anencefálica, que sobreviveu por 1 ano e 8 meses, entre os anos 2007 e 2008 (ver em Gomes & Menezes, 2008; Luna, 2009).

2 O mesmo não pode ser dito em relação aos temas concernentes à homossexualidade. Na tramitação dos projetos de lei no Congresso Nacional identificou-se ora o uso retórico de argumentos centrados em uma leitura literal da Bíblia (acima dos direitos dos homossexuais está a palavra de Deus), ora argumentos laicos (inconstitucionalidade da proposta), para apresentar ou rejeitar proposições, como na criminalização da homofobia. O que ficou evidente é que não há brechas institucionais para a discussão quando se trata da homossexualidade (cf. Natividade, 2009).

3 Outro aspecto em destaque refere-se ao fato de que os argumentos também se pautam pela mediação do religioso com a linguagem científica e jurídica. No caso do aborto, emergem possibilidades de diálogo, ainda que de modo indireto, quando as instituições religiosas, principalmente as protestantes, explicitam seus posicionamentos oficiais (Gomes & Menezes, 2008; Gomes, Menezes & Natividade, 2009). Vale lembrar que nessa dinâmica surgem alternativas no próprio campo religioso evangélico, como é o caso das igrejas inclusivas (Natividade, 2008).

4 O posicionamento Igreja Universal em relação à temática do aborto está sendo analisado neste artigo a partir de distintos documentos que abordam não somente esta temática propriamente dita. A proposta é analisar de que maneira a retórica pública produzida pela IURD está inserida em sua visão de mundo. Privilegio documentos institucionais – Estatuto, jornal Folha Universal e sites – pronunciamentos públicos de Edir Macedo e suas repercussões. Além dessas fontes, utilizado material coletado em etnografia realizada na Sede Mundial da Igreja, especialmente no período de comemoração dos seus 25 anos, em particular a fala proferida por Macedo em reunião especial. Para uma boa análise sobre a dinâmica do discurso de Edir Macedo, ver SwatowskI (2007).

5 Victor Turner observa que os atributos do período limiar do sujeito individual ou coletivo são ambíguos: “as entidades liminares não se situam nem aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais” (1974:117).

6 Na tese de doutorado A era das catedrais da IURD: a autenticidade em exibição (2004), apresentada no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UERJ, analiso como esta igreja investiu no fortalecimento e na consolidação de seu projeto institucional, materializado em investimentos materiais, especialmente pela chamada “era das catedrais”.

7 Os dados analisados pelo Atlas da Filiação Religiosa e indicadores sociais no Brasil (Jacob et al., 2003) indicaram que a maior parte dos 2,1 milhões de adeptos da IURD no Brasil está localizada nas capitais dos estados, principalmente no Rio de Janeiro, com 350.000 pessoas, e em São Paulo, com 240.000. Apontam também que somente nestas cidades há uma presença tão acentuada de adeptos, o que reflete uma grande dispersão geográfica na implantação nacional (Idem:42-43). A partir destes dados, conclui-se que a centralidade da noção de crescimento, presente em seu discurso de institucionalização, fundamenta-se na expressão: “cresço mesmo sendo perseguida”.

8 Sobre a questão da posse na IURD, Gomes ressalta que “a categoria mais fundamental da filosofia e teologia implícitas no discurso e práticas da Igreja Universal do Reino de Deus é a posse. E seja bem claro que posse, nesse caso, não implica posse mística ou transe, mas a detenção de bens em vista da sua fruição. Esses bens são geralmente descritos como elementos indispensáveis para aquilo que se pode qualificar de uma vida digna e feliz: saúde, prosperidade e amor” (Gomes,1994:230).

9 Segundo dados do Censo 2000 do IBGE, 45% dos evangélicos são pobres, incluindo aqui os pentecostais; católicos e ateus somam 38% cada um dos grupos.

10 Trecho extraído da pregação do bispo Macedo na sede mundial, no culto celebrado em comemoração aos 25 anos da IURD.

11 Esta lógica é explicada em detalhes no livro O Perfeito Sacrifício: o significado espiritual do dízimo e das ofertas (1996), do bispo Macedo. Em um trecho explicita que: “O sacrifício vicário do Senhor Jesus Cristo satisfaz toda a necessidade de sacrifícios expiatórios, não sendo estes, portanto, mais necessários. Mas isso não significa que não haja mais necessidade de outros tipos de sacrifícios. Todos os cristãos devem continuar praticando, principalmente, os sacrifícios espirituais, conforme orientação do Espírito Santo” (1996:58).

12 A finalidade de todo ritual de sacrifício é aumentar a religiosidade do sacrificante. “É preciso que o sacrificante, mesmo de volta à vida profana, guarde alguma coisa daquilo que adquiriu no decurso do sacrifício” (Mauss, 2001:189).

13 Eliade reflete sobre o simbolismo das situações-limite: “essas diversas perspectivas (de situação-limite) têm certos pontos em comum: em todos os lugares, o objetivo final do homem é libertar-se das “amarras” (1996:115). O estudo de Victor Turner (1974) sobre o período de liminaridade também aborda este tema.

14 A “certeza na conquista” não é um dado novo no debate sobre a IURD – ou do chamado neopentecostalismo – e pode ser inserida nas suas características básicas, calcada na Teologia da Prosperidade, como uma “etapa avançada de secularização da ética protestante” (Freston, 1996:146). A Teologia da Prosperidade preza a confissão positiva do desejado, não demonstrando fraquezas e antecipando mentalmente a meta a ser alcançada.


15 A pesquisa “Novo Nascimento: os evangélicos, em casa, na igreja e na política” (Fernandes, 1998) evidenciou que 68% dos membros da IURD eram casados, sendo 44% casais em que ambos, marido e mulher, pertencem à igreja, e o restante era casado com pessoas de outras denominações evangélicas ou de outras religiões.

16 Trecho retirado do site Mulher (“o site da mulher de Deus”), integrante do portal Arca Universal.

17 A pesquisa “Novo Nascimento” (Fernandes, 1998:105) apontou os seguintes dados sobre o número médio de filhos entre as igrejas protestantes e evangélicas: outras pentecostais 3.7, Assembleia de Deus 3.5, Renovadas 3.2, Batista 3, IURD 2.9, Históricas 2.8. A sugestão para a diferença entre a IURD e as demais pentecostais consiste na possível aceitação dos fiéis das campanhas “antinatalistas”, sistematicamente efetuadas por esta igreja.

18 Para o quesito “métodos utilizados pelas mulheres em idade fértil”, a mesma pesquisa apontou que as pertencentes à IURD se destacam como as que mais utilizam métodos anticoncepcionais, com 64% de respostas positivas, sendo 58% as que optaram pela ligadura, 36% pela pílula e somente 3% utilizando camisinha e tabela. Estes números distinguem consideravelmente as mulheres desta igreja em comparação com as integrantes das demais igrejas pentecostais, e aproxima-as das igrejas protestantes históricas.

19 Sobre as mudanças no campo religioso brasileiro nas últimas décadas, ver Mariz & Machado, 1998.

20 Os dados do Censo 2000 (IBGE) tornaram públicas as mudanças marcantes no panorama religioso brasileiro, como o crescimento e a pluralidade no chamado campo evangélico, principalmente pentecostal. Em Jacob et al. (2003), a IURD é citada como a igreja que mais cresceu na década de 1990 (índice de 25,7% ao ano), sendo a terceira maior igreja evangélica no Brasil. A visibilidade, conquistada pelo uso contínuo dos meios de comunicação, a participação política e a característica de apropriação do espaço urbano foram confirmadas. No entanto, os dados demonstraram que visibilidade não significa liderança, em termos da quantidade de adeptos. A IURD aparece como terceira igreja evangélica pentecostal em número de membros – 2,1 milhões – sendo a Assembleia de Deus a primeira, com quase 8,5 milhões de integrantes, e a Congregação Cristã a segunda, com cerca de 2,5 milhões de membros. No âmbito do campo evangélico mais amplo, ocupa a quarta posição, atrás da Assembleia de Deus, da Igreja Batista e da Congregação Cristã. Estes dados apontaram um crescimento significativo destas duas últimas igrejas, com distintas estratégias de implantação do trabalho evangelístico. Estes fatos ratificam a importância da apreensão das particularidades das instituições religiosas e, consequentemente, a diversidade de posicionamentos públicos diante de temas críticos como o aborto.

21 Para uma discussão específica sobre a relação trabalho e prosperidade na IURD, ver Lima, 2007.

22 Outro PLS apresentado foi o 312/2004, que postula a inclusão da permissão de abortamento em casos de anencefalia. Atualmente há uma intensa discussão sobre esta questão, incluindo debates com a presença dos distintos atores sociais envolvidos (juristas, cientistas, religiosos) em Audiências Públicas promovidas pelo Supremo Tribunal Federal. O debate contemporâneo e as controvérsias sobre a interrupção da gravidez em caso de anencefalia são analisados por Luna (2009).

23 Para a discussão sobre processos de individualização, individuação e autoafirmação na “cultura ocidental moderna” nas classes populares, ver Duarte & Gomes, 2008.

24 Em pesquisa recente, considerou-se “a ideia de que as alternativas religiosas disponíveis nas sociedades ocidentais modernas estão indissociavelmente relacionadas às ideologias estruturantes da modernidade, sobretudo o ‘subjetivismo’ e o naturalismo [...] Propôs-se também verificar a hipótese de que os sujeitos sociais se vinculam às confissões religiosas mais adequadas às suas disposições de ethos, seja por meio de processos de conversão, seja da reelaboração da relação mantida com a religião originalmente atribuída pela família” (Duarte et al., 2006:192; cf. Duarte, 2005).