O Naturalismo e a moral ou o poder da literatura

Autores

  • Maria Helena Jacinto Santana Universidade de Coimbra, Portugal

DOI:

https://doi.org/10.12957/soletras.2015.19104

Resumo

Num estudo de referência sobre a vida privada no século XIX, Michelle Perrot explica a construção ideológica de um alto conceito de família em torno do qual gravitarão os discursos dos políticos, dos moralistas, dos intelectuais e cientistas[1]. Considerava-se a instituição familiar um esteio da sociedade moderna e os agravos contra ela atentados ao progresso civilizacional. Conservadores ou progressistas, todos convergem na vigilância dos costumes domésticos, principal garantia da moral social. Por essa razão, os casais e a educação das crianças estarão cada vez mais no centro das atenções: os puritanos defendem os valores da “castidade” conjugal em nome da moral cristã; já nos sectores mais avançados da época (vindos sobretudo da filosofia positivista), a insistência na fidelidade dos cônjuges justifica-se por razões de ética cívica e de higiene social:

A família é assim submetida a movimentos contraditórios. Por um lado, os papéis que constantemente se lhe descobrem ou atribuem acentuam a sua densidade, a sua força, os seus poderes, e levam-na a fechar-se sobre os seus terríveis segredos. [...] Por outro lado, a consciência crescente do lugar que a família tem no xadrez demográfico e social conduz o poder – filantropos, médicos, Estado – a envolvê-la de solicitude, a querer desvendar os seus mistérios e a penetrar na fortaleza. (Perrot, p. 116)

Este tipo de preocupações tende a materializar-se num discurso centrado na transgressão sexual que tem o seu ponto focal na burguesia. À primeira vista, pareceria mais produtivo fustigar a aristocracia libertina ou o povo urbano sem princípios; mas são as classes intermédias, pela sua própria dinâmica ascendente, as que mais convém disciplinar: trata-se, em grande medida, da auto-afirmação de uma classe – em que se iclui a maioria dos ideólogos e dos leitores – que aspira a tornar-se dirigente e a apresentar-se como modelar.

Querendo estar do lado certo da História, os escritores naturalistas adotaram idêntico discurso ético para enquadrar os romances em que denunciam as disfunções familiares. Promoviam assim o poder literatura, atribuindo à sua própria escrita a capacidade de intervir na regulação social.  Defender a “limpeza” dos costumes não implica para esses autores o catecismo cristão nem a salvação da alma: faz parte de um programa que tem por fundamento a morigeração da família, pilar laico em que assentava a doutrina social do Positivismo. Citando ainda Perrot, «Templo da sexualidade comum, a família nuclear erige normas e desqualifica as sexualidades periféricas. O leito conjugal é o altar das celebrações legítimas.» (Perrot, p.115). Nas páginas que se seguem procurar-se-á refletir sobre alguns tópicos privilegiados pelos escritores deste período (as décadas de 70 a 90 do século XIX) em França, em Portugal e no Brasil.


[1] Cf. “A família triunfante” e “Funções da família”, História da Vida Privada. Vol. 4 (trad.), 1990, p. 93 e ss.

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Dossiê: Naturalismos